CARAVANAS

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CHICO E A ARTE DAS ELEVADAS CONTEMPLAÇÕES

Vertigem. Acaso me fosse dada a oportunidade de, em palavra única, resumir o disco “Caravanas”, de Chico Buarque, essa seria a conclusão linguística condensada: vertigem. O CD foi lançado pela Biscoito Fino em 25 de agosto de 2017 e impulsionou a turnê musical desde dezembro do ano passado, com início em Belo Horizonte, a se encerrar em Fortaleza em setembro próximo. Nesse trabalho, Chico, propositadamente, nos retira do lugar-comum, em seu notável intuito de deslocamento do confortável, ao integrar magníficas letras com encantadoras músicas e arranjos extraordinários, conduzido-nos por caminhos surpreendentes, a mostrar a vitalidade do artista em seu momento de plena maturidade como compositor.

Ouvir as nove músicas de “Caravanas” me causou – e ainda me causa – um certo desequilíbrio, esse quase “desconforto sensitivo”, tendo como eixo o fator tempo, que permeia todas as canções, de modo sutil ou escancarado.

Tua Cantiga inaugura essa caravana lírica, certamente por ser a que esparrama de maneira mais dramática todos os sentimentos decorrentes do tempo: esperança, angústia e finitude. É o tempo dos amantes, sobretempo acima dos relógios convencionais, mas que deles também é escravo. O tempo que há de vir (Quando te der saudade de mim), o tempo que pode chegar (Se o teu vigia se alvoroçar) e o tempo que chega a seu ponto final (Quando eu não estiver mais aqui). As palavras se e quando  entrelaçam-se ao longo da canção, num misto de certezas e dúvidas.

E assim o tempo desfila por entre as canções, a nos envolver com suas sutilezas. O tempo condicional e imaginário do admirador que não sabe ao certo a reação da admirada (Blues pra Bia). O tempo dos sonhos, de relógios que rodam pra trás (A Moça do Sonho), música interpretada por Chico de modo impecável, em contraponto à melódica forma de cantar na gravação original (por Edu Lobo no CD Cambaio). Nessa nova versão percebe-se o artista no auge de sua experiência como intérprete, a entoar uma angustiada voz, quase seca, de quem acaba de despertar do sonho que se quer retornar. Temos também o tempo visto num relance em Jogo de Bola. Ali, expressões usadas antigamente no futebol se misturam com o linguajar da atualidade, mas graças ao espírito jovial de todo apreciador daquele esporte, cada jogo é um mergulho na infância.

Eis o saboroso tempo da meninice (Massarandupió) e o impossível desejo: “Devia o tempo de criança ir se / arrastando até escoar, pó a pó”. O tempo do amor que há de superar até mesmo o destino que por acaso insista em separar os amantes (Dueto), nessa antiga música, de 1979, feita para a peça teatral O Rei de Ramos, de Dias Gomes. Agora vem com um sopro de modernidade das novas linguagens do mundo virtual e suas ferramentas. Interessante notar que Massarandupió e Dueto representam a ligação do Chico com a terceira geração a partir dele. Os talentosos netos, Chico Brown (parceiro na composição de Massarandupió) e Clara Buarque (com sua doce voz em Dueto), nos mostram que os palcos da música brasileira haverão de continuar a ser preenchidos por grandes artistas.

E o que dizer daquele tempo que não volta jamais? Em Casualmente podemos lembrar da antiga advertência do filósofo grego Heráclito: Para o homem que se banha no rio, se caso ali retorne, não terá o mesmo rio e nem ele próprio será o mesmo. A música se revela mais enigmática ao reconhecer que o sentimento decorrente da música, casualmente ouvida nas ruas de Havana, nunca mais se repetirá… Tal como o mar, que é sempre o mesmo, porém jamais será igual (Hasta el mar de La Habana es lo mismo, pero / No es igual).

Chegado então o tempo inadequado do nascimento, em Desaforos. Eis que o genial e refinado homem que toca boleros, chega a ser humilhado por ser “mulato”. E ainda na humildade presente apenas nos grandes príncipes (tal como Buda), acaba por concluir que aquela dama jamais olhará para um “vagabundo” como ele. Pela linguagem utilizada na música, o drama se passa quando ainda havia esse fosso de convivência entre as raças. Parece coisa do passado, mas não é. Na verdade, essa música nos prepara para a crônica social vertiginosa da última canção do CD (As Caravanas), dos tempos atuais da intolerância; nesse ponto em nada se diferenciam dos tempos pretéritos (Crioulos empilhados no porão / De caravelas no alto mar). Caravanas e Caravelas, palavras tão próximas em grafia e em sentido. Propositadamente, Chico entoa a música com interjeições delirantes ao dar rodeios no modo de cantar alguns trechos (sol / a culpa deve ser do sol); a gerar um desconforto não só auditivo, uma sensação de delírio, mas a percepção de que somos de fato responsáveis por esse abismo que se coloca na divisão de territórios e de convivência na sociedade.

Esse CD do Chico me fez lembrar Jules Verne, que dizia por um de seus personagens: “é preciso tomar lições de abismo!” (il faut prendre des leçons d’abîme!). A frase está no romance Viagem ao Centro da Terra (Voyage au Centre de la Terre). Nessa história, Axel e seu tio, o professor Lidenbrock, sobem um campanário muito alto da Igreja Vor-Frelsers-Kirk, em treinamento à viagem que fariam ao centro da terra. E diante da pergunta de um Axel assustado sobre a vertigem, seu tio lança o precioso conselho: “Olhe, e olhe bem! É preciso tomar lições de abismo!”. Com esse “exercício vertiginoso”, o próprio Axel confessa que progrediu sensivelmente naquilo que ele denominou “a arte das elevadas contemplações”.

Chico, em Caravanas, nos presenteia com a arte das elevadas contemplações.  Aprendamos que a sensação de desequilíbrio é uma das funções da arte, espécie de trapézio em salto no escuro. E diante desse abismo profundo de tantos e tantos detalhes, haveremos sempre de apreciar a deliciosa vertigem buarqueana a qual nos entregamos por vontade e prazer.

ARQUIVO 21/08/2017 CADERNO2 / CADERNO 2 / C2 / USO EDITORIAL RESTRITO / O CANTOR E COMPOSITOR CHICO BUARQUE, QUE LANÇA NOVO DISCO, CARAVANAS, NESTA SEMANA. FOTO LEO AVERSA
Foto: Leo Aversa

OLHARES

Este BLOG foi criado para encher de luzes e cores as diversas miradas que se pode ter em relação ao maior artista brasileiro: Chico Buarque. Atrevo-me a jogar meus olhos por sobre as miradas dos olhos cor de ardósia, para conduzir o leitor deste blog a interpretações muito pessoais da vasta e riquíssima obra literária e musical daquele que embala meus sonhos e minha realidade desde a juventude. Penso que o Artista compreenderá esta miragem a ser construída aos poucos nesta página, pois toda edificação lírica é acolhedora às diversas perspectivas dos olhos de quem a admira. Convém ressaltar que este blog não tem qualquer viés comercial, sob nenhum aspecto; é simplesmente um deleite de quem se confessa apaixonado desde todo o sempre pelo inesgotável universo buarqueano.