A VOZ QUE RESTA
Uma das coisas que mais impressionava Joana enquanto aguardava o ônibus naquela calçada esfarelada de cimento e pedra – talvez o lugar mais decente do conjunto habitacional em que morava – eram as pequenas flores que escapavam pelas frestas daquele chão. Sustentadas em caules verdes finíssimos, elas eram alçadas para fora, sem que ninguém tivesse lançado ali sementes ou derramado uma gota d’água sequer. Era o solo infértil dando a luz.
“A vida que se tem me parece mais teimosa do que a vida que se leva”, era o que ela pensava. Achando um tanto quanto inteligente essa frase, ela duvidava ter saído de sua cabeça, preferindo acreditar que guardou esse pensamento de alguma cena de novela, mesmo não lembrando exatamente em qual delas ouviu isso.
As flores miúdas a deixavam intrigada, desviando sua atenção do calor escaldante naquela parada de embarque ao coletivo, onde o mormaço testava a paciência dos usuários do precário serviço de transporte público. Esse clima insuportável justificava o nome do desbotado, imenso, mas apertado, conjunto habitacional “Vila do meio-dia”. Dizem os mais antigos que o nome foi dado numa mesa regada à champanhe, entre risadas e comemorações dos empreiteiros que fizeram fortuna ajuntando tijolos fajutos, construindo poleiros sob a pretensão de serem apartamentos, e diante de relatos dos operários de que lá o sol parecia estar sempre a pino. Pronto. Fez-se ali o batismo do local, as ratazanas de cartola não dispensariam um momento daqueles para extrapolar o senso sádico sob pretexto de ironia.
A sensação que Joana carregava no peito, porém, era de um imenso alívio. Tudo aquilo em breve seria passado. Um passado sem saudade, pois morrer é não mais lembrar. Ela sofria com lembranças, no final de cada dia ficava a revisar na cabeça o que aconteceu no correr das horas, parecia reviver cada instante à noite, e isso lhe dificultava o sono. Apenas uma recordação ela guardava como a joia rara da sua conturbada mente. O dia em que conheceu Jasão. Ela quase estourou numa gargalhada quando ele disse o nome esquisito. Nem para ser João; era Jasão de Oliveira. O riso dela foi contido pelo brilho dos olhos dele, que pareciam marejados. Não eram lágrimas, mas era como se um agitado oceano ficasse a orbitar seus olhares. “A paixão está para a vida assim como as ondas estão para o mar” foi o que ela pensou imediatamente, sendo para sempre refém daquele homem.
Joana tinha esses rompantes de frases, mas não dizia a ninguém. Mulher tendo ideias era visto como algo perigoso não só na Vila do meio-dia, mas em todo o imenso país, mergulhado numa espécie de bruma cinzenta de vigilância. Ninguém sabia quando a pessoa ao seu lado era um informante, o clima era de medo, ainda que discreto. Os anos 1960 anunciavam movimentos de liberdade e cores, os hippies, porém na nossa década de 70, o que pautava a moral era a estética dos militares, que estavam no poder. Por isso mesmo, Joana não entendia a euforia das pessoas, a dizer aos quatro cantos que agora teriam suas casas próprias. Pagando por mês uma prestação, um dia seriam donas de alguma coisa ali. Nessa Vila; era onde estava o futuro daquela gente, mas ela só conseguia enxergar o proprietário de todos os cubículos abrindo a boca escancaradamente ao receber os aluguéis. Creonte era dono de tudo e assim sempre seria.
O ônibus não chegava, e lembrar Creonte fez subir um ódio pelo seu corpo, que quase estremeceu. Jasão a abandonou, com os dois filhos, para se casar com a filha do todo poderoso. “Aquela esquálida, se não for alma penada é desalmada, até o nome é de dar medo”, pensava Joana. Alma Vasconcelos, assim se chamava, e doía imaginar que Jasão fora interesseiro, estava de olho na boa vida que teria por causa do dinheiro de Creonte, vindo da exploração da pobre gente da qual ele um dia fez parte.
Ela entregou-se em tudo por Jasão, essa era a sensação maior do abandono. Ela passou às suas mãos a alegria, era uma mulher radiante antes de transferir todos os instantes de felicidade para o bem do homem que tanto precisou dela, até para fazer sucesso com um samba, que era dela. Dizem as más línguas que Creonte encheu de dinheiro os donos das rádios para tocar a música toda hora, chamavam isso de jabá, mas o fato é que a cantiga era contagiante, e Jasão fez fama de bom sambista. O que ninguém sabia, é que Joana dedilhou cada nota e costurou todas as palavras daquela música, mas nunca alegou publicamente essa autoria, nem jogou na cara do vaidoso homem que parecia acreditar ser o inspirado autor da canção. Ele mal sabia o que estava sendo dito nas linhas, que dirá nas entrelinhas.
Joana não deu apenas a alegria a Jasão; mais do que isso, ela colocou sua mente, espírito, sua arte, as ideias, tudo nas mãos dele. Ela não via mais serventia no próprio corpo, já que todo sopro de vida que a movia, estava agora por refrescar Jasão. Certa vez ela até achou que isso era parecido com as casas da Vila do meio-dia. Ele se apossou de Joana como se fosse um inquilino, a pagar o aluguel com seu falso amor, e sabia que nunca seria de fato dono dela, ainda que mostrasse com veemência que mandava em tudo, alma e corpo, daí passou a maltratá-la, surrando-a, subjugando-a, humilhando-a, dia após dia, até ela dizer, “toma meu corpo, ele já não me serve mesmo, você já carregou minha alma há tempos”.
O ônibus chegou, pessoas subiram, Joana ficou inerte. Não iria a lugar nenhum, só queria findar em paz seus derradeiros momentos, ali, no meio da rua, ficaria como uma estátua imóvel para servir aos comentários e espanto de todos. E se o que não era assim bem visto, não era enfim bem quisto, jamais a perdoariam pelo que fez. O veredicto de seu julgamento já se dera antes mesmo do ato final. Ela não se importava. Ninguém acreditaria que ela comprou aquele veneno de rato para de fato tentar dizimar a praga noturna a invadir sua casa em busca de comida. Ela não fez nada planejado. Seu único plano era ser feliz com Jasão, foi ingênua por achar que um homem aceitaria depender de uma mulher com mais talento, talvez ele a tenha abandonado por não suportar isso, Joana era surpreendentemente criativa, mas nem se sabia o porquê, de origem humilde, tida como pouco letrada, era quase um milagre o domínio das palavras cuja demonstração ela não fazia em público, somente na intimidade do casal Joana proferia suas ideias, os olhos dele cheios de oceano brilhavam mais ainda, anotava tudo, pedia para ela repetir, suava num sorriso nervoso em mistura de espanto e inveja.
Assim nasceu Gota d’Água. Ela só sabia mirar os olhos dele, ficava presa ali, como a maresia no mar, e no medo de perdê-lo, imaginou ele um dia indo embora. “Eu te mato”, ela disse, e ele riu. “Você me bate, me despreza, você tem seus casos, mas se me largar, eu te mato. Meu coração é o copo d’água que mata a sede, mas é também o pote de mágoa capaz de lhe tirar a vida. Cuidado com a gota que pode fazê-lo transbordar.” Ele se assustou mais com as palavras de Joana do que com a ameaça. “E qualquer desatenção, faça não, pode ser a gota d’água”. O olhar dela quando disse isso foi tão fixo que ele não ousou nenhuma expressão; um gesto podia ser o gatilho.
Jasão nunca esqueceu aquela tarde quente no quarto abafado, onde faziam amor e samba. Ele teve pesadelos terríveis naquela noite, sonhou com a beleza de uma cachoeira que se anunciava entre pedras úmidas e plantas escancaradamente verdes, mas que se avolumava, e era tanta água que parecia o fim do mundo. Depois alguém disse a ele, numa conversa de bar, onde ele contou parte do sonho, que já vira algo parecido, e que se chamava cabeça d’água. “Toda cabeça d’água começa com uma gota”, ele pensou, e ficou muito assustado por ter criado algo tão poético, parecia a Joana, foi aí que ele se deu conta de que ela estava tomando conta dele por inteiro, pois até mesmo quando pensava em algo inteligente, parecia ser por influência dela. Naquele bar entre amigos, na madrugada enquanto ele batucava “seu” samba numa caixa de fósforos, Jasão teve a certeza de que era o momento de deixar Joana. “Pode ser a gota d’água, pode ser a gota d’água, pode ser a gota d’água”, o coro de bêbados repetia os versos da cantiga, copos levantados, eufóricos, anunciando o dia que começava a surgir por detrás de nuvens carregadas de chuva.
Os agitados companheiros de bar nem imaginavam que naquela barulhenta madrugada, a música também era entoada noutro lugar, só que numa cadência triste, a voz solitária de Joana, defronte à cama vazia, de pé, dava o verdadeiro tom da música da maneira como ela imaginou desde quando soprou as primeiras notas e as adornou com melancólicos versos.
Já lhe dei meu corpo, não me servia
Já estanquei meu sangue, quando fervia
Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta
Pro desfecho da festa
Por favor
Deixa em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção
– faça não
Pode ser a gota d’água
“Vou te matar!” Ele ria. “Vou me matar!” Ele ria ainda mais alto. Joana percebeu que essas ameaças não adiantavam, Jasão estava de casamento marcado com Alma, seria uma festa e tanto na Vila do meio-dia, não se falava noutra coisa. Seria a noite toda do casamento com o grupo de samba cantando Gota d’Água, porque depois dessa música o dito compositor de talento nada mais fez. Ela parecia saber exatamente quando teve a ideia da vingança perfeita, foi no dia em que chamou a atenção do filho mais velho, eram garotos com idades muito próximas um do outro, pareciam até gêmeos. Joana deu um grito de repreensão por uma bobagem, coisa de criança mesmo, “Jasãozinho, pára com isso!” Então ela se deu conta de que não era só o nome, o filho carregava a sina de um dia ser Jasão, como todos os Jasões daquele conjunto habitacional, daquela cidade, daquele país, maltratariam mulheres, era melhor nem virarem adultos para carregar esse destino dos homens. Então teria vindo como um facho de luz o pensamento macabro. “Eu posso evitar que eles virem adultos, eu cravarei no coração de Jasão essa marca. Ele há de carregar as duas cruzes nas costas. Vai ser a dor de cada dia.”
Depois desse momento, ela inacreditavelmente agiu com a calma própria dos justos. Quando chegou teoricamente o dia marcado no seu calendário da vingança, alimentou, banhou, e preparou as crianças para o sono. Mas esse sono seria diferente dos demais. No último alimento, haveria também o passaporte da derradeira viagem. Quando o dia amanheceu ela sentiu a rigidez em ambos os filhos, era a consequência e certeza. Saiu de casa sem se despedir daqueles que não iriam crescer, nem careciam mais de abraços e beijos. Rumou em passos firmes para o local onde se pega ônibus na Vila do meio-dia, na bolsa o resto do maldito veneno de ratos, suficiente para si própria.
Ela pensou em tudo isso enquanto a parada de ônibus esvaziava, as pessoas na agitação normal do dia-a-dia, entupindo os coletivos lotados, espremendo-se em busca de chegar no horário correto ao trabalho. Um jovem que ficou praticamente pendurado na porta do transporte olhava sem entender aquela senhora sentada, tão calma, certamente optando por aguardar o próximo ônibus. Sorte dela não ter horário, ele pensou. Mal sabia ele que a hora dela chegara. Mesmo que tivesse prestado mais atenção, não perceberia que ela retirou algo de dentro da pequena bolsa, levando em seguida sua mão a boca. Joana deglutia ali um naco de certa substância, com um ar distante de quem já sabe o que lhe aguarda, e não se importa com isso.
Seria uma imagem aflita, porém rica, imaginar o pranto escorregando pela face de Joana, em seu último suspiro, atingindo aquelas pequenas flores no chão de cimento, regando-as ante a aridez do cenário. Do pote fazendo-se um coração; da gota d’água, a lágrima de mágoa.
Nada disso aconteceu. A morte de Joana foi seca, tal como ela se sentia. Ela deu um grito, ninguém ouviu. Ela se inclinou para o lado, ali ficou, não notaram, demorariam a percebê-la inerte. O desfecho da festa se deu muito antes, com a gota que faltava para a explosão de loucura que a levaria ao gesto de vingança. Ninguém testemunhou esse momento, era só ela e Jasão. Carregando sua mala com os poucos pertences, ela implorou pela última vez, “Não vai, por favor!”. Ele baixou a cabeça, sonegando seus olhos de oceano responsáveis por fisgá-la na paixão do primeiro encontro. Virou as costas seguindo adiante, e ouviu a poucos passos uma voz estranhamente rouca, nem parecia Joana com seu tom sempre muito firme e sonoro.
Aquela frase dita por ela, num eloquente sussurro, o atordoaria até o fim de seus dias. Noite após noite ele sonharia com um imenso e escuro vazio, onde a fala da definitiva separação ecoaria repetidamente: “Jasão, olha a voz que me resta…”.
Gota d’Água
Chico Buarque/1975
Já lhe dei meu corpo, minha alegria
Já estanquei meu sangue quando fervia
Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta pro desfecho da festa
Por favor
Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d’água
Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d’água
Já lhe dei meu corpo, não me servia
Já estanquei meu sangue quando fervia
Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta pro desfecho da festa
Por favor
Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d’água
Pode ser a gota d’água
Pode ser a gota d’água
Observação: A letra da música aqui transcrita está exatamente da forma em que Chico cantou no show Caravanas – 2017/2018. Após a repetição da segunda estrofe, eis que resurge no primeiro verso, a letra original, trazendo um abismo que parece um detalhe. E desta maneira ela se encontra na peça homônima, qual seja, “não me servia” em vez de “minha alegria”. Essa interpretação dele no show se mostrou ainda mais dramática e com toda a riqueza que o poema musicado carrega em sua história.
UM POTE ATÉ AQUI DE MÁGOA
Acalmar, é claro… É dever do injustiçado
manter sempre a cabeça fria, a qualquer custo
Enquanto que a raiva, é um privilégio do injusto
(Joana falando para Jasão)
A matriz de inspiração da obra teatral Gota d’Água: Uma Tragédia Brasileira, de 1975, foi a adaptação feita para a televisão da peça grega Medeia, de Eurípides, no especial da Rede Globo de Televisão de 1973, fruto do trabalho de Oduvaldo Vianna Filho, a quem inclusive foi dedicada a peça.
O mito dos chamados argonautas, nas expedições gregas no mar Negro, é a origem do que posteriormente levou Eurípides a elaborar seu texto teatral, especificamente no episódio no qual o rei Eeta, filho do Sol e pai de Medeia, propôs ao argonauta Jasão três difíceis provas, que se vencidas, lhe garantiriam o velo de ouro. Velo, velocino ou tosão era a lã do carneiro alado Crisómalo. A vitória de Jasão se deu graças ao auxílio de Medeia, com quem ele casaria em seguida. A partir daí, Eurípides desenvolve sua tragédia, escrita em 431 a.C, colocando Medeia como ponto central da peça. Jasão a abandona para casar com a filha do rei Creonte, o que leva Medeia a matar os dois filhos, como forma de impor um terrível sofrimento a Jasão.
A transposição desse cenário clássico da Grécia antiga para o Brasil dos anos 1970 transforma Medeia em Joana, “mulher madura, sofrida, moradora de um conjunto habitacional. Jasão aqui é Jasão mesmo, ainda jovem, vigoroso, sambista que desponta para o sucesso com uma música chamada Gota d’Água. Creonte também conserva o nome, e na nossa peça é o todo-poderoso do local, dono das casas, muito rico, o poder corruptor por excelência” (notas de Eduardo Francisco Alves para a edição da Editora Civilização Brasileira).
Fato é, que tamanha densidade escondida nessa remota linha do tempo, chegara aos olhos dos escritores e artistas Chico Buarque e Paulo Pontes. Feita por eles, Gota d’Água: Uma Tragédia Brasileira está centrada em três eixos, como eles próprios esclarecem na apresentação do livro publicado com o inteiro teor da peça.
O primeiro ponto importante dizia respeito à brutal concentração de renda em nosso país, com acentuado destaque a partir da década de 1970, no chamado “milagre econômico”, amparado num autoritarismo estatal, a divulgar programas ilusórios – como o da casa própria, a ser obtida pelo Sistema Financeiro da Habitação, em interminável financiamento –, que de certo modo fez com que a classe média legitimasse tal milagre, encurralando as classes subalternas.
O segundo eixo seria o de demonstrar como o povo sumiu da cultura produzida no Brasil, esvaindo-se a identidade cultural autêntica, fenômeno que teria iniciado nos anos 1950, de tal modo que o povo “ficou reduzido às estatísticas e às manchetes dos jornais de crime. Povo, só como exótico, pitoresco ou marginal. Chegou uma hora em que até a palavra provo saiu de circulação” (trecho da Apresentação). Assim, a preocupação de Gota d’Água seria a de mostrar que nossa tragédia é uma tragédia da vida brasileira.
A terceira ideia fulcral da peça era a de evidenciar a necessidade de a palavra por si só, voltar a ser o centro do fenômeno dramático. A linguagem no teatro ficou em plano secundário a partir da ascendência de estímulos sonoros e visuais sobre a palavra, de tal modo que o corpo do ator, a cenografia, os adereços, tudo isso assumiu evidente protagonismo nas encenações teatrais. Gota d’Água teria o propósito de trazer de volta a palavra, essa a razão pela qual a peça foi escrita em versos.
Esses três eixos continuam a sustentar aquela tragédia brasileira retratada no palco há 45 anos, tornando-a atual e necessária. E as músicas feitas para a peça são preciosidades que reafirmam a genialidade da obra teatral de Chico Buarque.
OLHA A VEIA QUE SALTA
Minhas veias sejam os fatos que as facas trespassam
(Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa,
num dos versos do poema Ode Marítima, de 1915)
Gota d’Água contém muitos elementos de uma brasilidade vertida na figura dos operários, macumbeiros, sambistas, mulheres sofridas, dos pobres, do povo, enfim. Todavia, o centro da tragédia é a personagem Joana.
Joana é aquela cuja veia salta como um grito em busca do espaço na sociedade preconceituosa – o cenário é de 1975, mas bem poderia ser nos dias de hoje –, e não foi à toa que Chico Buarque fisgou de Medeia a referência para construir um eu lírico dos mais enigmáticos, escondido sob camadas quase imperceptíveis na música Gota d’Água, a canção-testamento, veiculadora de um protesto feminista.
Trajano Vieira, ao traduzir e comentar a peça de Eurípides, nos dá a chave de tudo. Muitos olham Medeia como a mulher sórdida, vingativa e assassina. A repugnante mãe que dá fim aos seus rebentos, e por isso indigna de qualquer perdão. Vieira nos lembra, contudo, que Medeia foi a responsável pelo sucesso de Jasão na expedição dos argonautas. Sem ela, ele teria sucumbido. Portanto, ao abandoná-la, Jasão despreza a força feminina que o carregou. “Medeia requer o reconhecimento de um traço intelectual seu”, aponta Trajano, “é o reconhecimento desse valor que no fundo Medeia reivindica” (Medeia. Edição bilíngue. Tradução, posfácio e notas de Trajano Vieira. Comentário de Otto Maria Carpeaux. São Paulo: Editora 34, 2010. p. 168).
Chico não deixa escapar isso. Além de captar, amplia essa percepção da repreensão à inteligência feminina que já era registrada cinco séculos antes de Cristo na tragédia grega, e mostra a sua pertinência no Brasil dos anos 1970. Eis a força da personagem Joana.
Em várias passagens da peça encontramos registros de que Joana fez tudo por Jasão, como nesse trecho em que ela desabafa com a amiga Corina:
Depois do que eu dei e fiz,
cê acha que Jasão pode ser tão ruim,
tão disfarçado e tão frio, para ser feliz
junto co’a outra, sem nunca pensar em mim?
O próprio Jasão, em determinado momento, mesmo a contragosto, reconhece a crucial importância de Joana em sua vida:
Escuta, mulher, sabe que eu gosto de ti?
Gosto muito, você sempre é meu bem-querer,
sempre. E nunca mais eu vou poder esquecer
você, esquecer o que você fez por mim…
Todavia, é num rasgo de discussão do casal, quando já se mostra irreversível a separação, que Joana explicita tudo o que ela fez por Jasão, ele que nada sabia de samba antes de conhecê-la, acusando-o de ter arrancado dela não somente a inspiração, mas o primeiro refrão e o primeiro estribilho. Finalmente se tem a certeza de que Joana é a autora da música:
Pois bem, você
vai escutar as contas que eu vou lhe fazer:
te conheci moleque, frouxo, perna bamba,
barba rala, calça larga, bolso sem fundo
Não sabia nada de mulher nem de samba
e tinha um puto dum medo de olhar pro mundo
As marcas do homem, uma a uma, Jasão,
tu tirou todas de mim. O primeiro prato,
o primeiro aplauso, a primeira inspiração,
a primeira gravata, o primeiro sapato
de duas cores, lembra? O primeiro cigarro,
a primeira bebedeira, o primeiro filho,
o primeiro violão, o primeiro sarro,
o primeiro refrão e o primeiro estribilho
(…) Você andava tonto quando eu te encontrei
Fabriquei energia que não era tua
pra iluminar uma estrada que eu te apontei
O interessante é que, durante a peça, a música não é apresentada com todos os seus versos, o que poderia levar o espectador a suspeitar que a canção seja de um eu lírico feminino. Sempre quando alguém canta o samba Gota d’Água, só entoa o refrão.
Deixa em paz meu coração
que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção
– faça não
Pode ser a gota d’água
Somente no final do Segundo Ato, quando Jasão se despede da Joana, para seguir seu destino com a filha de Creonte, é que se mostra em toda sua inteireza o conteúdo da música Gota d’Água, e nesse momento se percebe que a canção foi feita por Joana.
A metáfora de um jargão popular, que batiza a peça e também a música, é o alerta que Joana faz sobre o risco de um coração já amargurado, culminar num “transbordamento”, em razão de mais uma mágoa.
Assim é retratada a cena na qual finalmente a música é cantada com todos os seus versos:
(…) Quando você cansar
da moça e tiver saudade da minha
cama, vem pra cá, vem que eu tou sozinha…
Quando quiser… Não precisa avisar…
(Os dois se abraçam; lentamente ele vai tirando o seu corpo do dela e sai; nasce orquestra. JOANA canta)
Já lhe dei meu corpo, não me servia
Já estanquei meu sangue, quando fervia
Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta
Pro desfecho da festa
Por favor
Deixa em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção
– faça não
Pode ser a gota d’água
Nesse ponto, Medeia e Joana se identificam plenamente; ambas retratam, mesmo separadas por 24 séculos, a opressão masculina e a não aceitação por parte da sociedade da manifestação de inteligência plena, sempre que advinda de uma mulher.
Joana se faz uma das grandes personagens de Chico, com seu traço marcante de uma ousada feminista. Mesmo sem ser identificada quando se ouve a música Gota d’Água fora do contexto da peça, tamanha é a visceralidade do eu lírico, que conduz o ouvinte a acreditar na voz feminina a entoar os versos. E nas diversas camadas que vão se abrindo em cada um deles, percebe-se algo muito além do sofrimento de alguém que está magoada com seu amor. É também o grito de uma mulher cujo corpo já não lhe servia, porque até a mente foi entregue ao homem que jamais reconheceria ter se aproveitado da inteligência dela. Ali, na canção, está aquela que se conteve diante toda injustiça e humilhação, sofrida em seu corpo de mulher e em sua alma de artista, estancando seu sangue latejante. A gota d’água para derramar aquela mágoa que recheava o pote do coração, no final se sabe, é a desatenção. Desatenção denota indelicadeza, desrespeito. Ali, não há desrespeito maior do que a ingratidão ao talento feminino, que se faz roubar, mas se quer negar.
E qualquer desatenção
– faça não
Pode ser a gota d’água.
RECOLHENDO FÚRIAS
O que mais chama a atenção no apartamento da Senhora Abigail Izquierdo Ferreira não é a esplendorosa vista da Baía de Guanabara com o Pão de Açúcar ao fundo, verdadeiro cartão-postal do Rio de Janeiro. Por incrível que pareça, outra imagem capta todos os olhares de quem entra no recinto. A imensa foto do chão ao teto, ao lado do piano, reina soberana na sala; uma mulher, vestida de negro, um braço erguido, semblante grave, a outra mão cerrada com seu punho forte. É Joana, a personagem teatral cuja vida foi gerada pela Senhora Abigail, a Bibi Ferreira, extraordinária atriz e cantora que embalou a arte brasileira ao longo de seus 96 anos.
Bibi Ferreira era tão múltipla quanto surpreendente. Além de diversos musicais, encarnou, como poucas, os gestos e as vozes de Edith Piaf e Amália Rodrigues, ao ponto de não se saber quem era a criadora e a criatura. Depois ainda lançou um ousado projeto de um show com músicas do repertório de Frank Sinatra; a primeira mulher a fazer isso.
Bibi se orgulhava imensamente por ter moldado o corpo e a alma de Joana nos palcos. Esse momento de sua carreira a acompanhou por todo o sempre. Em diversas entrevistas, fazia questão de chamar a atenção para o fato de que Gota d’Água era a maior obra da dramaturgia brasileira. Então, antes de cantar a música, recitava um trecho do monólogo que passou a fazer parte de suas entrevistas, era uma verdadeira marca registrada, todos aguardavam sua interpretação da impactante passagem nessa fala da peça.
Eles pensam que a maré vai mas nunca volta
Até agora eles estavam comandando
o meu destino e eu fui, fui, fui, fui recuando,
recolhendo fúrias. Hoje eu sou onda solta
e tão forte quanto eles me imaginam fraca
Quando eles virem invertida a correnteza,
quero saber se eles resistem à surpresa,
quero ver como eles reagem à ressaca
Havia outro laço sentimental que unia fortemente Bibi Ferreira àquela obra teatral. Vicente de Paula Holanda Pontes, nascido em Campina Grande, Paraíba, era seu marido. O Paulo Pontes, coautor da peça, cujo drama se materializaria um ano após deixar esse legado teatral. De saúde frágil, faleceu aos 36 anos, tendo Bibi sempre ao seu lado.
O DESFECHO DA FESTA
São três os registros musicais de Gota d’Água pela voz do Chico. Ele não gravou essa música em estúdio, os discos se deram de interpretações em shows. O álbum Chico Buarque & Maria Bethânia ao vivo (1975) contém a primeira, no mesmo ano da obra teatral. Em seguida, no disco Chico Buarque Ao Vivo – Le Zenith, Paris (1990) está a segunda interpretação. Por último, ela é entoada em Caravanas ao vivo (2018), sendo que nesse show Chico divide a canção em duas partes, e na segunda resgata a letra original na metade do primeiro verso (Já lhe dei meu corpo, não me servia), de extrema densidade. Nas demais gravações, não só as dele, mas também de outros artistas que a interpretaram, sempre se optou pela construção mais fluida nesse primeiro verso (Já lhe dei meu corpo, minha alegria).
Além de Gota d’Água, a peça contém outras marcantes e memoráveis composições. E como acontece com as músicas do Chico feitas para o teatro, o cinema ou a televisão, as canções acabam por ganhar vida própria, se desgarrando da origem e assumindo suas próprias identidades, num roteiro autônomo de histórias magistralmente contadas em canto. São elas Flor da Idade, Bem Querer e Basta um Dia.
Gota d’Água não foge dessa mágica sina de alçar voos próprios. Ora entoada como samba bem ritmado (feito dos carnavais e das quartas-feiras, disse Jasão), ora soprada quase num choro-canção (Joana assim a vestiu em seu lamento). Também cantada em ritmo de bossa, é possível dar outros tons coloridos à canção e, incrivelmente, com sua abreviada letra – são inacreditáveis dez versos –, quem a interpreta é levado a repeti-la mais de uma vez, sempre com sabor de novidade. Gota d’Água é mais do que atual, é atemporal em sua essência. Ao contrário dos versos que a moldam, a canção é festa que nunca terá desfecho.