Não é segredo para nós que O Grande Circo Místico é uma obra-prima criada em versos por Jorge de Lima, recontada em musical, primeiro no Ballet Guaíra, depois na peça teatral de Naum Alves de Souza, tendo por fio condutor as composições de Edu Lobo e Chico Buarque. Lá, cada personagem do poeta é como uma ostra, que posteriormente infiltrada pelos músicos, apresenta-se então recheada com magnífica pérola.
Por este blog, que anteriormente rebentou As muitas histórias de Lily Braun (http://mantovanni.blog-dominiotemporario.com.br/2018/11/13/as-muitas-historias-de-lily-braun/), revisitemos agora tal circo a fim de vislumbrar a joia perfeitamente esférica contida em A Bela e a Fera.
O lado místico daquele circo transpõe o poema através da surpreendente envergadura de Chico Buarque pinçando personagens aparentemente secundárias do Poema, desnudando figuras inesquecíveis. Assim como foi com “a deslocadora” será também com “o homem fera”? Sigamos.
Além de esculpir a preciosa letra para a melodia de Edu Lobo, tendo como tema o homem fera, Chico emprestou humanidade e lirismo ao Gigante, de tal modo que, sua imagem rude contida no poema foi descortinada. Jorge de Lima encobriu a participação do boxeur Rudolf em seu poema com o ato de violação à Margarete, filha de Lily Braun. Revelando-se econômico na palavra, mas dispendioso no mistério, o poeta emendou convertendo o ateu em cristão e abatendo-o, não se sabe se diante a vida de fato, ou se apenas para a descrença.
O POEMA
O Grande Circo Místico
Jorge de Lima
O médico de câmara da imperatriz Teresa – Frederico Knieps –
resolveu que seu filho também fosse médico,
mas o rapaz fazendo relações com a equilibrista Agnes,
com ela se casou, fundando a dinastia de circo Knieps
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Charlote, filha de Frederico, se casou com o clown,
de que nasceram Marie e Oto.
E Oto se casou com Lily Braun a grande deslocadora
que tinha no ventre um santo tatuado.
A filha de Lily Braun – a tatuada no ventre
quis entrar para um convento,
mas Oto Frederico Knieps não atendeu,
e Margarete continuou a dinastia do circo
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Então, Margarete tatuou o corpo
sofrendo muito por amor de Deus,
pois gravou em sua pele rósea
a Via-Sacra do Senhor dos Passos.
E nenhum tigre a ofendeu jamais;
e o leão Nero que já havia comido dois ventríloquos,
quando ela entrava nua pela jaula adentro,
chorava como um recém-nascido.
Seu esposo – o trapezista Ludwig – nunca mais a pôde amar,
pois as gravuras sagradas afastavam
a pele dela o desejo dele.
Então, o boxeur Rudolf que era ateu
e era homem fera derrubou Margarete e a violou.
Quando acabou, o ateu se converteu, morreu.
Margarete pariu duas meninas que são o prodígio do Grande Circo Knieps.
Mas o maior milagre são as suas virgindades
em que os banqueiros e os homens de monóculo têm esbarrado;
são as suas levitações que a platéia pensa ser truque;
é a sua pureza em que ninguém acredita;
são as suas mágicas que os simples dizem que há o diabo;
mas as crianças crêem nelas, são seus fiéis, seus amigos, seus devotos.
Marie e Helene se apresentam nuas,
dançam no arame e deslocam de tal forma os membros
que parece que os membros não são delas.
A platéia bisa coxas, bisa seios, bisa sovacos.
Marie e Helene se repartem todas,
se distribuem pelos homens cínicos,
mas ninguém vê as almas que elas conservam puras.
E quando atiram os membros para a visão dos homens,
atiram a alma para a visão de Deus.
Com a verdadeira história do grande circo Knieps
muito pouco se tem ocupado a imprensa.
(Do livro A Túnica Inconsútil, de 1938 – destaquei o trecho relacionado à Bela e à Fera)
Tem-se por aqui a ligeira impressão de que eram de fato dois. Gêmeos ou não, era ele o homem Rudolf, escondido por detrás da Fera boxeur. Eis que ao macular o templo de Margarete, a fera é liquidada, libertando o homem. Tão breve aquele que até então trabalhava no circo expondo as habilidades do boxeur, permaneceria naquela labuta, só que agora como Rudolf. É precisamente neste momento que Chico Buarque consegue fisgá-lo, mostrando-nos com precisão o momento da mutação da fera em homem, aonde ele não é nenhum e ambos ao mesmo tempo.
Nessa canção em parceria com Edu, Chico revela que à medida que a fera concentra suas forças para sua maior brutalidade, o homem dissipa sua luz naquilo que seria poesia ainda que não fosse um poema. É o boxeur Rudolf oscilando entre o medo de morrer sua besta fera, e a coragem de nascer seu príncipe cristão. Chico se veste de fera ressuscitando o Gigante em forma de poeta que canta sua paixão por Margarete. Com metáfora que anuncia mais alusão a um arroubo de vontade do que a efetiva realização dela, ele encerra a música dissecando as entrelinhas matutadas por Jorge de Lima.
Foi esse olhar piedoso que Chico lança em direção à Fera, concedendo-lhe um coração de poeta tão próximo à face carrancuda, bem como os elementos do poema de Jorge de Lima, que me trouxeram até aqui. Vou contar a vocês uma história obedecendo aqueles que dizem que “quem conta um conto aumenta um ponto”. Certa vez tive o prazer de presenciar um gnomo perguntando a uma árvore do que se alimentava a criatividade. Sabem o que ela respondeu? “Ouça pequetito, toda criação se alimenta de liberdade”. Eu acordei curioso, mas feliz, sonhando nunca deixar a minha findar-se na fome.
UM CORAÇÃO DE POETA
Não brilharia a estrela, oh bela
Sem noite por detrás
Tua beleza de gazela
Sob o meu corpo é mais
Uma centelha num graveto
Queima canaviais
Queima canaviais…
– Queima canaviais… não consigo terminar!
O barulhento som do murro na mesa foi o que despertou Kleine Schafe, até então de olhos fechados. Kleine ouvia aqueles versos saídos da boca de Rudolf; não fosse a brusca interrupção, ele juraria estar ali ao lado de um poeta, e não do homem mais forte do planeta.
O anão k – ele não se incomodava em ser chamado dessa maneira – sentia orgulho por criar frases de efeitos, slogans chamativos para o Grande Circo Místico. “O homem mais forte do planeta” foi ideia sua, para anunciar aquele boxeur cuja altura, por si só, impunha medo a qualquer um. Inicialmente o anão k fora contratado por sua estatura, incrivelmente menor em relação àqueles que, pela condição genética, têm mesmo a altura abaixo da média. Mas com o tempo ele foi mostrando erudição, fruto de leituras incansáveis, justamente por ser rejeitado desde criança nos grupos de brincadeiras, assim preferia mergulhar em seus mundos feitos de papéis e letras, nos quais não importava a estatura de quem os lia.
Kleine, o anão k, foi apresentado a Rudolf numa tarde de sufocante calor, pelo trapezista Ludwig, ele acabara de conhecê-lo nas ruas, em torneios informais de lutas, cujo propósito era de fomentar apostas.
– Olha só! – disse Ludwig – Esse gigante será a nova atração do circo!
– É um titã… – falou de modo pensativo o anão k, enquanto alongava o pescoço a fim de mensurar a real altura daquele homem.
– Titã. Gostei! – replicou Rudolf. Ele sequer imaginava o significado da palavra, mas lhe soou bem. Foi a primeira vez que não o chamaram de gigante, ele já estava cansado dessa palavra.
– A partir de agora – falou Ludwig sorrindo – os dois devem andar juntos, assim o anão ficará ainda mais cotoco enquanto o nosso gigante mais colossal.
– Titã. – corrigiu Rudolf.
– Certo, certo. Titã! – aquiesceu rapidamente Ludwig, não convinha contrariar aquele gigante, ou melhor, titã.
Essa a razão pela qual o anão k e o titã Rudolf se tornaram praticamente irmãos siameses. Estavam sempre unidos, parecendo existir uma espécie de cordão invisível atando os dois, num contraste surpreendente e ao mesmo tempo enternecedor. O anão k estava sempre de cara emburrada, não por mau humor, mas sua instrução o tornou assim; encontrava a gravidade nos gestos de modo tão rebuscado quanto as palavras escolhidas para falar. Ele criara esse truque pra driblar seu tamanho, ao falar palavras bonitas, é como se elevasse sua estatura. O Titã, todavia, parecia usar uma máscara emprestada, pois sua cara era de um sorriso cândido, não por bondade; o fato é que em seus pensamentos a poesia ocupava todo o espaço de sua confusa cabeça. Ele se sentia assim mais infantil, era quase uma forma de voltar a ser criança e, consequentemente, reduzir sua vertiginosa altura.
Como andavam sempre juntos, o anão k sabia que o Titã sonhava em ser poeta, e testemunhava seu sofrimento pelos versos criados de improviso e declamados com certa dificuldade.
Por vezes eles eram antagônicos para além do tamanho, e se desentendiam. Demorou um pouco até Rudolf ser convencido de que o cartaz com o desenho de seu corpanzil dando nó em trilhos de ferros estava perfeito. Ele não gostou quando o anão k sugeriu que no cartaz constasse “O homem mais forte do planeta”. Ele queria ser o titã. Mas o público não entenderia aquela palavra, vinda da mitologia grega. O anão K explicou a Rudolf que titã era cada um da família de gigantes filhos de Urano (o Céu) e Gaia (a Terra) e que tentaram escalar o céu para destronar Zeus, mas foram vencidos. Logo, não seria conveniente um cartaz se perdendo com palavras pouco usadas.
– Gigante! – exclamou k, e assim ficou.
O anão tinha essas lembranças guardadas em sua mente, que agora davam as caras num lampejo. Foi quando ele se deu conta de que, após o murro na mesa, o Gigante assumira um ar de imensa tristeza.
– Quase que eu fiz um soneto… – lamentava o Titã.
– Seu quase-soneto estava uma maravilha! – assim tentou o anão k animá-lo. – Como era mesmo? Não brilharia a estrela, oh bela… continue! Tente terminá-lo! Se quiser, vou escrevendo.
O Titã nunca dissera aos outros companheiros do circo que não sabia escrever, era vergonhoso demais. Ele ficava rabiscando desenhos, os papéis escondidos entre as enormes mãos, fingindo agrupar palavras. Só o anão k sabia de sua condição de iletrado. Ainda assim, o Gigante não se sentia à vontade para ditar seus precários versos ao amigo.
Rudolf tentava de memória elaborar rimas. Falava, esquecia, não escrevia, tudo se perdia; era esse o drama do Gigante, que queria ser chamado de titã. Depois passou a ser conhecido como “a Fera”, desde que o anão k falou aos integrantes do circo que o nome Rudolf se escrevia antigamente Hrodulf, formado pela união das palavras hrod (famoso), e wulf (lobo). Então Rudolf significava lobo famoso.
Em sua simplicidade pueril, a Fera se ocupava basicamente de três coisas: fazer demonstrações de sua força no picadeiro, tentar construir sonetos em sua cabeçorra atarantada, e admirar a beleza de Margarete, cujo amor ele cultivava secretamente, mesmo se sentindo constrangido, afinal Margarete era casada com Ludwig, que o trouxe ao circo. Mas desse amor secreto o anão k já suspeitava; ele flagrou diversas vezes a Fera despindo Margarete com o olhar, tentando adivinhar seu corpo, já que a Bela – assim era conhecida a mulher do trapezista Ludwig – se vestia de modo hermético, saia longa e blusa até o pescoço.
Comentava-se no circo que Margarete chegou a acreditar ter que seguir imaculada ao convento, já que fora concebida e gerada sob a imagem do um santo desenhado no ventre de Lily Braun, mas que seu pai a tirou de cabeça. Ela então permaneceu no circo, se unindo ao trapezista, com quem não teve filhos. A Bela teria então, sofrendo por amor de Deus, adornado a carne com toda a Via-Sacra do Senhor dos Passos. Diziam que ela se cobria de tal forma, não por ser pudica, mas por carregar em sua pele rosada essa imensa tatuagem, ainda mais imponente que a de sua mãe. Ninguém nunca soube contar se seu casamento com Ludwig fora consumado, mas desde que as gravuras sagradas lhe pousaram a tez, ela nunca mais pode ser tocada, nem pelos animais do circo, bem como pelo esposo, que tinha seu desejo afastado perante tal imagem.
Margarete às vezes se deixava conduzir nos braços da Fera, ele fazia isso sem o menor esforço, parecia carregar uma criança, e assim Margarete se sentia acalentada, protegida, embora suspeitasse que Rudolf a desejasse de maneira voluptuosa, pois um dia ele falou enquanto a conduzia:
– Tua beleza de gazela, sob o meu corpo é mais…
Ele deixou escapar aquelas palavras, mas depois se arrependeu, ao perceber os olhos assustados de Margarete e a rapidez do salto para sair de seus braços. Ele teria completado o que já estava engatado em sua mente, proferindo:
– Uma centelha num graveto queima canaviais – e foram justamente nesses versos que a Fera ficou por dias e dias tentando transformá-los em soneto.
No circo, a Fera almoçava rolimãs e mastigava esferas de aço como se fossem batatas para impressionar o respeitável público. Mas sozinho, como apreciava fazer suas refeições, Rudolf saboreava mesmo era a esperada sopa, seu prato do dia-a-dia, e nada mais.
Eram nesses momentos das refeições, certamente uma das poucas ocasiões em que o anão k não estava a ele encostado como se fosse sua sombra, que o Gigante adorava admirar aquelas letras de macarrão boiando na sopa, letras por ele jamais identificadas, símbolos estranhos para sua alma iletrada. Num ritual quase sagrado, vertia goela abaixo o desarrumado alfabeto sem mastigá-lo, na ilusão de que tais letras rumassem seu âmago, por lá assumindo formas de palavras, versos, estrofes, e quem sabe até sonetos. Certa vez o pequenino surgiu sorrateiro por debaixo da mesa enquanto o Titã pensava alto contemplando aquela sopa de letrinhas. O anão k bem que tentou espremer o riso, mas logo estava dobrando-se no chão em gargalhadas, ali defronte o gigante. Rudolf acanhou-se enquanto Kleine Schafe tentava explicar o destino que tais letras de fato teriam. Quando enfim controlou sua crise de riso, o anão arrematou floreando que o resultado daquele macarrão em seu bucho, viria tão logo o gigante obrasse, seria um “poema concreto”. Ambos então puseram-se a secar suas lágrimas; as do anão de alegria, as do gigante de agonia.
Essa crueldade de k, ao jogar ironias incompreensíveis para a Fera, era nada mais que uma vingança secreta por invejar seu tórax de Superman; as mulheres gostavam de adjetivar o peito de Rudolf. Como não bastasse aquela força descomunal, ele possuía também um talento com as palavras; a despeito do anão, que mesmo com todo seu aprendizado, jamais conseguiu fazer um verso sequer.
Mesmo assim, A Fera tinha no anão k um amigo, e gostava da nova vida que lhe surgiu com o convite para atuar no circo. Ele se sentia feliz, apesar do imenso cansaço físico ao final do dia, após as apresentações dando nó em ferros. O problema não era só a fadiga, mas também um esgotamento mental, pois ele sofria durante o repouso. Suas noites eram povoadas por repetidos pesadelos, um seguido do outro, invariavelmente.
Já em sua fantasia diária, avistava a Bela chegando dos céus em forma de fada, portando uma varinha de condão longa e brilhante, e num leve e arrepiante toque em sua testa, transformava-o em cristão, livrando-o de sua descrença, possibilitando-o finalmente ter uma religião. Antes dessa magia ele se considerava ateu; para ele tudo nascia, crescia, morria, e nada mais. Ele também sentia um prazer desmedido ao permitir que a miragem de Margarete transformasse seu corpanzil num de tamanho normal, que agora ela vestia magicamente com indumentárias de príncipe. A Fera jamais teve a intenção de decompor em versos o formoso sonho, por receio de corromper tão elevada cena na engrenagem física das palavras.
O sofrimento não tardava, pois o sonho passava a pesadelo espontaneamente. Ele se via olhando o céu, mirando a lua, cometas e constelações, em busca de inspiração para construir versos à sua amada, Margarete, deitada ali, ao seu lado, numa relva tão verde que brilhava na escuridão. De repente, começava a chover, não água, mas páginas e páginas de jornais, de maneira tão agressiva que em pouco tempo não se via a grama, e sim infinitos tabloides, todos com a idêntica manchete impressa na gazeta: “Sangue no Circo!”. Eles traziam a notícia de que ele violara a Bela, e depois se matara num dantesco espetáculo de profusão do líquido vermelho.
Acordava suado, coração saindo pela boca. Jamais ousou contar o sonho e muito menos o pesadelo ao amigo k. Depois de algum tempo, enfim ele se desvencilhou desse ciclo involuntário, no acontecimento que mudou sua vida.
Era um dia chuvoso, o céu parecia desabar em água, e ele teve sua tenda destruída pela tempestade, saiu correndo em direção ao primeiro abrigo que encontrou, coincidentemente era o local de Margarete, que naquele momento estava sozinha, pois Ludwig viajara há alguns dias em busca de mais atrações para o circo.
A Fera sabia de sua descomunal força, e mesmo assim, todo ensopado, bateu suavemente na porta. Margarete surgiu por detrás de uma fresta, olhos atentos, e disse que era melhor ele procurar outro lugar, recebendo como resposta um inesperado apelo poético.
– Recebe o teu poeta, oh bela! Abre teu coração!
O sorriso bem como o riso lhe saltaram a face, ali se percebia um misto de nervosismo e galhofa.
– Nem devo abrir a porta, e muito menos o coração – foi o que ela conseguiu dizer após parar de rir. Ele insistia para que ela abrisse a porta e o coração, mas sabia de antemão que isso jamais iria ocorrer. Nem porta, muito menos coração.
Havia ali uma cumplicidade implícita, como se os dois estivessem numa brincadeira de criança, tentando se divertir em meio à chuva, as palavras serviam como apostas, não era para levar a sério tudo aquilo.
De repente, a Fera viu ao lado da porta uma janela, e nesse momento sentiu-se um poeta iluminado pelo aviso daquele símbolo, conseguiu estruturar versos instigantes e figurativos e que jamais seriam esquecidos. Ele então se preparou para soltá-los com toda a força do peito, em entonação alta e melódica, mas aguardou que se aproximassem os companheiros de circo, que já caminhavam rumo àquela inusitada cena.
Recebe o teu poeta, oh bela
Abre teu coração
Abre teu coração
Ou eu arrombo a janela
Até hoje não se sabe se o estrondo que veio em seguida foi um trovão ao longe pelo aumento da tempestade, ou se eram aplausos efusivos dos que presenciaram a Fera libertar seu coração de poeta.
O certo é que, finda a tempestade, o Grande Circo Místico passou a contar com a mais nova atração a levar multidões incrédulas a suspirar diante do homem mais forte do planeta declamando versos inacreditavelmente perfeitos à bela Margarete.
Ludwig observava tudo do alto do picadeiro, e o pequeno incômodo que sentia ao ver sua mulher coberta por um lirismo alheio, era compensado pelo fato de saber, com orgulho, que Margarete se transformara na musa daquele circo. Impossível não se comover com a Bela e a Fera numa harmonia de contrários.
A Bela, com seu encanto, enfim conseguiu transformar a Fera num príncipe, cuja realeza era a poesia.
Para além do picadeiro:
Eu ainda desconfio de como tudo se deu. O fato é que, uma concha que não foi ferida, não produz pérolas. Como o grão de areia, Chico Buarque penetrou o poema trazendo-nos uma majestosa joia. Não diferente disso, a Bela foi violada por um homem gêmeo de uma fera, concebendo não uma, mas duas pérolas douradas perfeitas, que chamou de Marie e Helene. O brilho delas é algo tão raro e precioso que se afugenta bem dentro da visão de Deus.
Talvez não fosse Rudolf um ateu, mas um pagão. Feito um curioso que cai de joelhos ao adentrar a “Santa Igreja”, teria a Fera renascido em fé, após penetrar a imagem sagrada no corpo de Margarete? Dúvida que paira dignamente soberana. Reza a lenda que diante a via-sacra, feras terríveis como o tigre e o leão, declinaram ao desafio de seguir os passos do Senhor. Mas eis que a pior de todas as feras sucumbiu ao instinto, e chegando ao cume daquela via, avistando a cruz, tornou-se um homem.
A Bela e a Fera
Edu Lobo/Chico Buarque/1982
Ouve a declaração, oh bela
De um sonhador titã
Um que dá nó em paralela
E almoça rolimã
O homem mais forte do planeta
Tórax de Superman
Tórax de Superman
E coração de poeta
Não brilharia a estrela, oh bela
Sem noite por detrás
Tua beleza de gazela
Sob o meu corpo é mais
Uma centelha num graveto
Queima canaviais
Queima canaviais
Quase que eu fiz um soneto
Mais que na lua ou no cometa
Ou na constelação
O sangue impresso na gazeta
Tem mais inspiração
No bucho do analfabeto
Letras de macarrão
Letras de macarrão
Fazem poema concreto
Oh bela, gera a primavera
Aciona o teu condão
Oh bela, faz da besta fera
Um príncipe cristão
Recebe o teu poeta, oh bela
Abre teu coração
Abre teu coração
Ou eu arrombo a janela