A HISTÓRIA DE LILY BRAUN

AS MUITAS HISTÓRIAS DE LILY BRAUN

Adentrarão este texto somente os leitores curiosos, e permanecerão apenas aqueles que assim forem se descobrindo ser. Ao leitor menos abelhudo, rogo alguma paciência. Eis aqui um dos mágicos portais de entrada ao Místico daquele Circo de fato Grande, bem maior que no tamanho.

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Desenho de Naum Alves de Souza

Jorge de Lima publicou em 1938 o poema “O Grande Circo Místico”, sobre a dinastia da família Knieps, com artistas que atravessaram gerações a encantar a imprensa e o público, graças a seus poderes e habilidades.

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Jorge de Lima, poeta, romancista, biógrafo,ensaísta, tradutor, político e médico. (União dos Palmares, Alagoas, 23/4/1893- Rio de Janeiro, 15/11/1953)

Nos anos 1980, um espetáculo do Ballet Guaíra, de Curitiba, pensado a partir desse poema, foi musicado por Edu Lobo e Chico Buarque.

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Propaganda do Ballet Guaíra na temporada em São Paulo (1983)

Em seguida, Naum Alves de Souza escreveu a peça teatral de grande sucesso. Daí surgiu o disco “O Grande Circo Místico”, até hoje considerado um dos trabalhos mais marcantes de nossa música.

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Naum Alves de Souza, artista plástico, cenógrafo, figurinista e diretor.(Pirajuí, São Paulo, 1º/6/1942 – São Paulo, 9/4/2016)

O poema curto e denso de Jorge de Lima representa um marco na poesia brasileira; com única estrofe de 45 versos foi considerado muito avançado para a época. Todavia, para mim, uma das coisas mais espantosas na obra poética, é o fato de sua publicação ter ocorrido em 1938, um ano antes de eclodir a segunda guerra mundial. Observem que o Poeta mostra uma sociedade que já não se encanta mais com o improvável, o sobrenatural, um circo que possuía, além dos dons artísticos apurados, pessoas com poderes imateriais elevados. Ele diz que a imprensa (que exercia na época a mesma força das atuais redes sociais) passou a desdenhar as coisas extraordinárias do Circo, numa espécie de caixa de ressonância da indiferença da opinião pública quanto ao belo. Essa é, na minha visão, uma impressionante alegoria do cenário que se avizinhava no mundo, o da implantação dos terrores do nazismo, em sua tentativa de uniformizar o pensamento.

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O circo é plural, seus integrantes são diferenciados, cada um à sua maneira, e é aí onde reside a beleza do humano. Mas isso não chama mais a atenção daquela sociedade de 1938, que se mostrava apática, em busca de outros mitos. Eis o perigo.

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E por falar em passado, presente e futuro, dentre as personagens do poema de Jorge de Lima, uma particularmente desperta o olhar de Chico Buarque, a Lily Braun; e mesmo sendo figura aparentemente secundária, foi merecedora de uma música estonteante, feita em parceria com Edu Lobo (A História de Lily Braun). O Poeta Jorge de Lima atribuiu a Lily Braun uma característica muito especial, a de “deslocadora”: a mulher que consegue viajar no tempo, projetar-se no futuro, bem como devolver-se ao passado. Foi quando me veio à mente: E se, na verdade, a Lily estava a cantar, não o que ela viveu, e sim o que ela haveria de viver no futuro?

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Desenho de Lily Braun, de Naum Alves de Souza, feito para o Grande Circo Místico

Surge daí o meu conto, “O Destino de Lily Braun”, inspirado na inspiração de Chico sobre a inspiração de Jorge sobre Amalie; onde a arte não imita a vida, mas a interpreta e recria. Não bastasse ser Amalie Von Kretschmann tão a frente de seu tempo, viajou 22 anos póstumos para ser definitivamente rebatizada e, claro, se apresentar ao palco do Grande Circo Místico! Posteriormente viajaria mais 45 anos até os olhos cor de ardósia, a ilustrar sua apresentação naquele circo. Teria Chico explicado em sua letra porque Lily se casara pela terceira vez, adotando novamente, a contragosto, o título de esposa?

Venha comigo conhecer Lily, a deslocadora.

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Amalie von Kretschmann escritora feminista alemã (Halberstadt, 2/7/1865 – Berlim, 12/8/1916)
“Neste crucial momento”, faço ao leitor a sugestão desse roteiro:

 

– Conheça Amalie Von Kretschmann.

– Leia o poema de Jorge de Lima.

– Ouça a magnífica música “A História de Lily Braun”, de Edu e Chico (observe os detalhes poéticos sobre o ambiente, o clima entre Lily e seu admirador, a angústia da dançarina, a forma como Lily conta sua história, numa cadência musical que oscila entre a batida de jazz como se fosse o próprio coração da dançarina e o êxtase por saber seu destino).

– Por fim, leia meu conto, “O Destino de Lily Braun”, aonde a deslocadora viaja agora mais 35 anos no tempo chegando a 2018: um outro sopro em direção à rica figura histórica Amalie e a personagem Lily.

Aproveito aqui as informações sobre Amalie – que adotou em vida o codinome de Lily Braun não por acaso – fazendo alusão à personagem criada pelo poeta Jorge de Lima e a construção feita por Chico em sua letra. Utilizo o recurso literário do diálogo e da narrativa para criar uma versão na qual Lily não conta seu passado, mas mira o futuro de uma maneira como se tudo já tivesse ocorrido. É a deslocadora, senhora do tempo, que nos faz questionar sua descontinuidade, bem com viajar na incrível dimensão de uma soma entre passado, presente e futuro.

Ao término de tudo, reflitamos. Sempre que em determinada época uma sociedade mostra certa apatia ao que deveria chamar a atenção – tal como a imprensa, que já não se ocupava em dar notícias do Circo Knieps – corre-se o risco de não perceber a tirania prestes a esticar seus terríveis e desavergonhados braços.

Desejo um ótimo passeio lírico a todos, como tem sido o meu…

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Edu Lobo e Chico Buarque, durante a gravação de O Grande Circo Místico, 1983 (foto do encarte do CD)

AMALIE:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Lily_Braun

O POEMA:

O Grande Circo Místico

Jorge de Lima

O médico de câmara da imperatriz Teresa – Frederico Knieps –

resolveu que seu filho também fosse médico,

mas o rapaz fazendo relações com a equilibrista Agnes,

com ela se casou, fundando a dinastia de circo Knieps

de que tanto se tem ocupado a imprensa.

Charlote, filha de Frederico, se casou com o clown,

de que nasceram Marie e Oto.

E Oto se casou com Lily Braun a grande deslocadora

que tinha no ventre um santo tatuado.

A filha de Lily Braun – a tatuada no ventre

quis entrar para um convento,

mas Oto Frederico Knieps não atendeu,

e Margarete continuou a dinastia do circo

de que tanto se tem ocupado a imprensa.

Então, Margarete tatuou o corpo

sofrendo muito por amor de Deus,

pois gravou em sua pele rósea

a Via-Sacra do Senhor dos Passos.

E nenhum tigre a ofendeu jamais;

e o leão Nero que já havia comido dois ventríloquos,

quando ela entrava nua pela jaula adentro,

chorava como um recém-nascido.

Seu esposo – o trapezista Ludwig – nunca mais a pôde amar,

pois as gravuras sagradas afastavam

a pele dela o desejo dele.

Então, o boxeur Rudolf que era ateu

e era homem fera derrubou Margarete e a violou.

Quando acabou, o ateu se converteu, morreu.

Margarete pariu duas meninas que são o prodígio do Grande Circo Knieps.

Mas o maior milagre são as suas virgindades

em que os banqueiros e os homens de monóculo têm esbarrado;

são as suas levitações que a platéia pensa ser truque;

é a sua pureza em que ninguém acredita;

são as suas mágicas que os simples dizem que há o diabo;

mas as crianças crêem nelas, são seus fiéis, seus amigos, seus devotos.

Marie e Helene se apresentam nuas,

dançam no arame e deslocam de tal forma os membros

que parece que os membros não são delas.

A platéia bisa coxas, bisa seios, bisa sovacos.

Marie e Helene se repartem todas,

se distribuem pelos homens cínicos,

mas ninguém vê as almas que elas conservam puras.

E quando atiram os membros para a visão dos homens,

atiram a alma para a visão de Deus.

Com a verdadeira história do grande circo Knieps

muito pouco se tem ocupado a imprensa.

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Capa do livro A Túnica Inconsútil, no qual está o poema “O Grande Circo Místico”

A MÚSICA:

A LETRA DA MÚSICA:

 A História de Lily Braun

Edu Lobo/Chico Buarque/1982

Como num romance
O homem dos meus sonhos
Me apareceu no dancing
Era mais um
Só que num relance
Os seus olhos me chuparam
Feito um zoom

Ele me comia
Com aqueles olhos
De comer fotografia
Eu disse cheese
E de close em close
Fui perdendo a pose
E até sorri, feliz

E voltou
Me ofereceu um drinque
Me chamou de anjo azul
Minha visão
Foi desde então ficando flou

Como no cinema
Me mandava às vezes
Uma rosa e um poema
Foco de luz
Eu, feito uma gema
Me desmilinguindo toda
Ao som do blues

Abusou do scotch
Disse que meu corpo
Era só dele aquela noite
Eu disse please
Xale no decote
Disparei com as faces
Rubras e febris

E voltou
No derradeiro show
Com dez poemas e um buquê
Eu disse adeus
Já vou com os meus
Numa turnê

Como amar esposa
Disse ele que agora
Só me amava como esposa
Não como star
Me amassou as fotos
Me queimou as fotos
Me beijou no altar

Nunca mais romance
Nunca mais cinema
Nunca mais drinque no dancing
Nunca mais cheese
Nunca uma espelunca
Uma rosa nunca
Nunca mais feliz

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MEU TEXTO:

O DESTINO DE LILY BRAUN

Lily Braun murmura para si mesma – “nunca, nunca mais…” –, e seu olhar mirando o infinito sequer traz lágrima ou brilho. “Nunca, nunca mais…”. As dançarinas não entendem Lily. Nem parece aquela estrela que, de tão luminosa em noite de véspera, ofuscava as luzes do pequeno e improvisado palco, no trailer situado a certa distância do Circo Knieps, mas dele fazendo parte. Nem tão apegado está o trailer das bailarinas, evitando o repúdio das famílias que se dirigem ao espetáculo circense; e nem tão afastado, para correr o risco de após a apresentação dos artistas no Circo, os solitários homens até lá se moverem em romaria.

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“Circo de Beira de Estrada” Nanquim de André Mangabeira

O dia amanhece pintando o céu com a triste palheta da aurora, é o momento mais silencioso para as dançadoras que atravessaram a barulhenta madrugada expondo seus talentos. Sim, é uma característica das esfuziantes mulheres a de transformar o espaço em ambiente musical, com suas cantorias acompanhadas da esforçada e minúscula banda. O contrabaixo quase a tocar o teto com seu inadequado tamanho, um resistente piano, e um trompete meio amassado, mas de som tão límpido que as dançarinas juram ter notado por vezes discretas lágrimas nos homens mais rentes ao palco.

A companheira de quarto mais próxima de Lily pega sua mão e busca entender aquele sussurro, “nunca, nunca mais…”.

– O que você está sentindo agora?

Lily move repetida e rapidamente a cabeça num sinal negativo, sua voz parece travada na garganta.

– Isso não me diz muito, Lily. Pois cante, querida, cante como só você sabe!

Os olhos de Lily são invadidos pelo mesmo brilho dominante no palco, e ela se dá conta de que é possível contar seu drama naquele momento, valendo-se do blues instrumental que a pequena banda arrematava entre o intervalo de uma apresentação dançante e outra. Era um quase-jazz contagiante, jamais recebera uma letra, e agora Lily se arriscaria a adorná-lo com sua história.

– Como num romance, o homem dos meus sonhos me apareceu no dancing. Era mais um…

A amiga procura conter o riso, só mesmo Lily para chamar aquela espelunca de dancing, mas ela era assim mesmo, usava palavras estrangeiras no meio das frases, porque dizia ter viajado o mundo. Sabia inglês e francês, e embora todas duvidassem disso pelas improváveis circunstâncias, era evidente sua formação erudita. A amiga conteve seu ímpeto de riso, afinal, ninguém ali falava “me apareceu”, só mesmo a Lily com sua arrojada, mas sempre sofisticada delicadeza.

– Só que num relance, os seus olhos me chuparam feito um zoom…

E Lily começou a debulhar musicalmente tudo que ela predestinara com o olhar do homem que a “comia com aqueles olhos de comer fotografia”. Ela simplesmente anteviu o que aconteceria a partir do primeiro encontro, já sabia o meio e o fim de toda a história, e isso não espantava a todos. Muitos ali sabiam que Lily era conhecida como “a deslocadora”, por conseguir viajar no tempo; e quem ainda tinha dúvidas ficava com um pé-atrás pela forma como ela chegara ao circo Knieps. Afinal, Lily tornara o circo místico ou o escolhera por já sê-lo? O fecho da história era muito triste. Ela deixaria o palco e se transformaria em esposa: sua eterna sina. E nunca mais seria feliz depois disso.

– Ora, fuja dele! – gritou a amiga – só viu esse homem uma única vez!

– Ele retornará hoje. – disse Lily. E foi a primeira vez que ela falou, sem cantar, de modo muito grave.

– Pois não vá! Fique doente, finja assim estar. Não vá e pronto.

A amiga não entendia que Lily e seu dom de deslocadora a tornava uma trapezista em constante salto no futuro, sem rede de proteção. O que ela viu passar diante de seus olhos aconteceria mesmo contra sua vontade.

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Trapezista (2008): Fernando Botero

A deslocadora não contava a ninguém, mas sempre se sentia deslocada, não por conseguir projetar-se ao que está por vir, mas por sentir vir de muito, muito longe. Talvez ela fosse tratada apenas como uma estrangeira. Seu nome trazia ares de codinome, já seu misterioso sobrenome alemão Braun, tinha o mesmo significado que no inglês brown; dizia-se da tez um tanto quanto parda, de aspecto bronzeado.

Como num lampejo, sempre lhe despertava na memória o brasão da família Braun. Era uma pintura já desgastada que ornava a parede da morada de onde ela acredita ter vindo. Lily às vezes sonhava com aquele lugar, e ficava intrigada, mas não tanto quanto seus amigos do circo com quem dividia seus sonhos. Eles acreditavam que Lily havia perdido a memória, já que quando por lá chegou o que sabia dizer sobre si era tão somente o nome. A deslocadora não acreditava piamente estar desmemoriada, mas também não duvidava. Em um de seus lampejos contou histórias sobre seus ancestrais, os Mossmann, vindos da Normandia. Os artistas do circo não duvidaram, mas também não acreditaram.

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Brasão da família Braun

Certa vez, conversando com outras bailarinas sobre seu nome, Lily afirmou significar flor-de-lis em inglês. Disse ser tal flor também conhecida por íris germânica, o símbolo de força e formosura. Depois completou afirmando conter no escudo dos Braun a figura do leão a segurar com a pata uma flor-de-lis dourada. Ela não compreendia seus sonhos nem remotas lembranças, achava-os engraçados. Outra dançarina com ar zombeteiro oferece-lhe uma espécie de cola, dizendo que aos poucos esses sonhos pregariam à memória tal como num emplastro, unindo em seus miolos suas lembranças de fato ao que era inventado. Elas sorriram e divertiam-se por não saber se essa história do nome era lapso, invenção ou profundo mistério.

O certo é que Lily se pegava com os olhos brilhando ao resgatar essa espécie de memória apontada ao brasão, colorindo um pouco de seu desbotado passado. De uma coisa ela sabia: sua vida agora seria definida num circo.

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Tal como no brasão dos Braun, o Grande Circo Místico tem o destaque de um cavalo branco

 

 

 

De passado nem tão latente, ela previa o futuro ao fechar os olhos e fitar em sua mente o brasão dos Braun, composto também de um escudo azul com o cavalo branco por sobre um pequeno monte verde. Era inevitável, bastava flertar aquele desenho e sua ideia girava em certa tontura, transportando-a para um picadeiro a observar aquele cavalo a trotar, soltando estrelas azuis pelos olhos. Foi a partir daí que ela suspeitou poder viajar no tempo.

Essa característica se mostrava tão espantosa que Lily anteviu esse mesmo cavalo do brasão da família estampado na coberta de alguma caixa que guardava algo muito precioso. Possivelmente seria essa caixa um “disco”, artefato construído num futuro longínquo, no país chamado Brasil, onde dois artistas, Edu Lobo e Chico Buarque, acabariam por imortalizar a história do Circo Místico em musical arrebatador.

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Disco “O Grande Circo Místico” (1983), em formato de LP (long play, o pai do CD e avô do streaming)

Compreendendo sua essência, Lily passou a se permitir viajar, ou lembrar, ela não sabia com precisão. Certa vez viu o azul e o verde do brasão que chamava de seu colorirem tudo, para além do céu e do campo, onde muitos homens exalavam uma alegria esfuziante, eufóricos e alguns exaltados. Mas era dia, aquilo definitivamente não era um dancing. Hoje o letrista da música que ela cantara naquela noite, Chico Buarque, salpica o verde-anil no uniforme do seu time de futebol, inusitada combinação que pintava ao fundo o brasão dos Braun, para nele pousarem seus elementos. Aquilo que Lily vira era uma partida do Politheama.

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Chico Buarque com o uniforme do time de futebol por ele criado, o Politheama. As cores verde-anil são as mesmas do escudo do brasão dos Braun

 

 

Lily passou a fazer breves viagens ao futuro, o medo era de ficar presa ao tempo do amanhã. Sentia-se já venturosa em seus deslocamentos vindouros, quando foi surpreendida por um sonho onde aparentemente fazia uma viagem pretérita. Viu-se ali frente a uma senhora de ar concentrado e olhar triste, tal como o dela, isso a espantou.

Seu nome era Amalie von Kretschmann, e sem que lhe fosse dirigida qualquer pergunta, contou sua história. Disse ser desde cedo inconformada com a submissão da mulher na Prússia de sua época, no final do século XIX. Casou muito cedo com o professor Georg von Gizycki, trabalhou como jornalista no jornal feminista Die Frauenbewegung (Movimento das Mulheres), e após a morte desse primeiro marido, casou-se com o político Heinrich Braun.

Quando Amalie falou o nome do segundo marido, Lily sentiu o mundo rodar à sua volta, uma vertigem por não saber mais quem era. Ecoava em seu ouvido a palavra Braun. Amalie então tocou Lily no ombro, ali naquele plano onírico, dizendo ser o momento de ela entender que sua força de deslocadora não se restringia a viajar no tempo com suas divagações. Ela, Lily, surgira e haveria de ressurgir em diversos tempos, passageira daquilo que crédulos de algumas religiões poderiam chamar de reencarnação, mas Amalie descreveu como a mística e eterna luta da mulher por seu espaço, revivendo a cada geração.

Amalie disse ter adotado o nome Lily após observar o escudo da família Braun, de seu segundo marido, e percebido nesse escudo o desenho de um leão a segurar com a pata uma flor-de-lis dourada, então ela seria Lily… Lily Braun! Isso levou Lily, a recém chegada ao circo, a suspeitar que ela era na verdade a própria Amalie, de seu passado esquecido ou renascida noutra geração. Ela se remexia em sua cama e, numa suadeira, despertou do sonho.

Nunca poderia esquecer-se do olhar densamente triste de Amalie ao perceber como era difícil encontrar consigo mesma em diferentes tempos. Captando os olhos da outra Lily, ela alcançava algo impossível mesmo diante o espelho: olhar-se nos olhos. Ela entendeu quão triste e constante é a luta pela igualdade entre homens e mulheres, sabendo que muitos séculos do que chamaram feminismo, seriam necessários para por um fim ao machismo. Depois dessa viagem, Lily Braun não mais voltou ao passado.

Ela prometera então a si mesma, desde o inusitado encontro consigo, que jamais se subjugaria a um homem, sendo dona de sua vida e respeitando a própria vontade. Não poderia seu fantástico talento artístico sucumbir à predestinação da esposa sempre títere do marido; para sua época, uma mulher “honesta”. Sua voz e figura… de fato encantadoras! Ela sabia que alguns circos possuíam lugares próprios para artistas assim, bem como que o destino não dependia de seu anseio. O marido surgiria, estava escrito nas linhas de sua delicada mão, mas procurava não pensar muito nisso, pois refletindo seu deslocamento ao passado através do sonho, este já seria o terceiro.

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Heinrich Braun, segundo marido de Amelie, e que a inspirou a adotar o codinome Lily Braun (Budapest, 23/11/1854 – Berlin, 9/2/1927)

 

 

 

 

 

 

Lily Braun, chegada há pouco ao Circo Knieps, ainda não se apresentara ao proprietário, o Oto, a terceira geração do que se pode considerar o início da dinastia do Circo. O avô de Oto, Frederico Knieps, foi quem começou tudo.

Frederico era filho do médico da Imperatriz Teresa da Áustria. Por isso mesmo, seu pai, também chamado Frederico, decidiu que o filho teria o mesmo nome e a mesma profissão, médico.

Ocorre que o destino fez surgir em sua vida a equilibrista Agnes, com quem se casou. Assim começou a dinastia do Circo Knieps. Eles tiveram uma filha, Charlote, que não tardou a se encantar com o palhaço, e deste encantamento nasceriam Marie e Oto.

Esse Oto, o atual proprietário do Circo, teria seu coração arrebatado por Lily Braun, e após conquistá-la, a enredaria na trama do casamento.

Foi também nessa terceira geração do Circo Knieps que se instalou o trailer das dançarinas, e embora algumas fossem fixas, de vez em quando surgiam mulheres à procura de um palco para a dança e o canto. Assim ocorreu com Lily Braun. Ela chegara tão discretamente quanto seu modo de se vestir. Embora sua recatada roupa demonstrasse um mistério excitante, era nada mais que a melhor forma de esconder o santo tatuado em sua barriga, imagem nada compatível com o ambiente.

Oto, que não a conhecia, ao entrar no trailer na noite passada, foi cooptado pela beleza daquela mulher, de uma candura quase angelical. A roupa brilhante de Lily, da cor do céu, o fez suspirar proferindo: “Um anjo azul!”.

Naquele instante, Lily se virou buscando quem a chamava de anjo azul. Ela sabia que uma atriz muito jovem, Marlene Dietrich, atuara num filme como a dançarina Lola do cabaré “Anjo Azul”, falava-se que as longas e torneadas pernas de Dietrich impediam os homens de prestar atenção na triste música por ela entoada, “Falling in Love Again” (algo como “apaixonando-se novamente”). Mas Lily não só ouviu detidamente essa música, como sentiu uma espécie de calafrio, por temer de certo modo aquela sina de ser “da cabeça aos pés feita para o amor”. Tal como os homens, que diante sua luz se aproximavam para se aquecer, mas acabavam por se queimar, do mesmo modo que as mariposas.

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Marlene Dietrich, na famosa cena em que canta Falling in Love Again, no filme Der Blaue Engel (O Anjo Azul), de 1930

Oto a admirava estupefato, enquanto ela sentia-se cooptada, se vendo dentro de um túnel intransponível que culminava dentro dele. Mesmo distante e paralisado, aquele homem a sugara feito um zoom. Oto estranhou o olhar vago do seu anjo azul, como se ela estivesse se transportando para algum lugar. De fato, Lily viajava no tempo, percorrendo tudo que ocorreria a partir daquela noite.

– Você tem que evitar esse homem! – insistia a amiga.

– Não posso! É o meu destino. – arrematou Lily, quase fazendo levitar as cambiantes palavras.

Para Lily Braun, o destino era como o picadeiro do Circo, no qual o artista já sabe seu roteiro, e ainda assim se encanta ao transformar o ensaio num espetáculo. Um desolador, porém instigante espetáculo.

A tristeza de Lily, contudo, não era só por saber que o casamento com Oto a afastaria do palco sepultando a star, e que as poesias e rosas teriam a mesma duração do período da conquista.

Havia algo além. O resultado de sua capacidade de se lançar no futuro era por vezes um sofrimento lacerante em seu peito, como quando ela anteviu a dor da futura filha que teria com Oto. Lily vislumbra que sua filha se chamará Margarete e será violada pelo boxer Rudolf, levando-a a gerar as gêmeas Marie e Helena. Mas desse padecimento surgirá a beleza, e isso de certo modo a confortava. As gêmeas bailarinas, netas de Lily, no futuro, se apresentarão nuas em inacreditável dança no arame, levitando e atirando suas almas para a visão de Deus.

O mais pesaroso, porém, é que nem mesmo esse belo espetáculo das gêmeas bailarinas chamará a atenção do público, e muito menos da imprensa. Estarão todos anestesiados por uma apatia, incapazes de admirar a arte e a beleza. Essa dor maior de Lily é por ela saber, no íntimo, que esse é o mais retumbante sinal de que a tirania está à soleira da porta da história.

Por uma aflitiva e trágica coincidência, o percurso que Lily fez quando era Amalie, de esposa a feminista que entraria para a história como escritora, agora se invertia. Ela faria o caminho de volta;  passando de artista a esposa. Isso doía em sua alma porque juntamente com sua infelicidade particular se somaria a desventura do próprio mundo diante dos terrores da iminente tirania.

Todos esses pensamentos surgiram como um flash na cabeça da deslocadora, que não mais precisava sonhar para viajar no tempo. Ela então retorna ao presente em segundos.

– Está na hora de me preparar para esta noite. – disse Lily abruptamente à amiga.

Ela retocou a maquiagem, mesmo com o sol ainda alto. Principiaria em breve os detalhes para seu espetáculo. Não convinha erguer ao palco mais tarde uma cara borrada, no amálgama de cores da pintura com o choro na face.

Naquela noite que se aproximava, Oto haveria de retornar. O destino, inevitável, se consumaria.

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NOTA FINAL:

Todo artista é um deslocador; além de ser atemporal em sua arte, o artista nos faz viajar ao passado e ao futuro, levitando-nos graças ao talento expresso na música, na literatura, no teatro, no cinema e em tantas outras manifestações artísticas. O artista está a frente do tempo no qual ele vive, com a coragem e a predestinação cívica da liberdade, por antever os perigos da opressão ou lembrar-se desses momentos pretéritos, para que eles não se repitam.

Dedico meu texto à deslocadora Amalie Von Kreschmann, a Lily Braun, lamentando que sua vida destinada ao feminismo, embora seja exemplo até hoje, não tenha sido suficiente para impregnar nas sociedades modernas a percepção de que mulheres e homens devem ser iguais não somente em direitos, mas principalmente no respeito mútuo.

Dedico também aos deslocadores que agora empreendem outras viagens em dimensões diversas, Jorge de Lima e Naum Alves de Souza.

E, com forte emoção, aos deslocadores que nos dão o privilégio por vivermos o mesmo tempo material no qual eles vivem, Edu Lobo e Chico Buarque; com eles, o “Grande Circo Místico” saltou das letras pousadas em papel para a eternidade na constelação do universo musical.

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E por uma surpreendente coincidência, no dia 15 de novembro de 2018, data que marca os 65 anos da despedida do poeta Jorge de Lima, estreia nos cinemas o filme de Cacá Diegues “O Grande Circo Místico”, uma produção de Renata Almeida Magalhães e Luís Galvão Teles (Brasil/Portugal), com roteiro de Cacá Diegues e George Moura, inspirado no poema de Jorge de Lima e na obra de Edu Lobo e Chico Buarque, com grande elenco: Jesuíta Barbosa, Bruna Linzmeyer, Mariana Ximenes, Vicente Cassel, Juliano Cazarré, Dawid Ogrodinik, Catherine Mouchet, Rafael Lozano, Amanda Britto, Louise Britto, Tiago Delfino, João Santos Silva, Antonio Fagundes, Albano Jerónimo, Nuno Lopes, Miguel Monteiro, Luísa Cruz, Marina Provenzzano, and… last but not least… Luíza Mariani, como Lily Braun.

Ao mais novo deslocador da saga do Grande Circo Místico, Cacá Diegues – nascido em Alagoas, tal como o Poeta que deu origem a tudo – , a expectativa de sucesso ao transpor para as telas a história que saltou do poema para o ballet, do ballet para o musical, e do musical para o cinema. Uma trajetória que teve início há exatos 80 anos, quando foi publicado o poema de Jorge de Lima.