MAMBEMBE

MAMBEMBE, MAGO E MÁGICO

Lembro-me bem da imensa expectativa causada com a volta de Chico Buarque aos palcos em agosto de 2006, dando início à turnê “Carioca”, após sete anos de silêncio musical. O disco anterior, “As Cidades”, de 1999, também gerou apresentações naquele ano. Todos sabiam que as músicas do extraordinário trabalho lançado em 2006 iriam compor o show, a dúvida era quais outras canções integrariam a apresentação do “cantautor”; autodenominação dele que compõe e canta, para privilégio nosso. Na abertura, duas surpresas. “Voltei a Cantar”, samba de Lamartine Babo, gravado por Mário Reis em 1939. Chico consagra uma antiga pérola para confessar sua saudade do tablado (Voltei a Cantar / Porque senti saudade), e também – assim penso – fez uma sutil homenagem ao maestro soberano, cantando: Começo a recordar / Cantando em tom maior / E acabo no tom menor. O Tom maior seria Jobim, sempre por ele lembrado se colocando como aprendiz, na busca da beleza sonora construída pelo Antonio Brasileiro. Certa vez, Chico humildemente nos disse, que quando faz música boa, ela parece ser do Tom. Assim, o “tom menor” não se tratava de algo que o diminua, mas de uma hierarquia sentimental firmada pelo próprio Chico, ao falar de Tom Jobim. A outra surpresa na abertura do show foi “Mambembe”, canção de 1972, gravada no disco integrante da trilha sonora do filme de Cacá Diegues, “Quando o Carnaval Chegar”. Seria ali, 34 anos depois, a primeira apresentação da música nos palcos, entoada por um homem nitidamente feliz, incorporando toda a graça e complexidade do Mambembe.

DA PRIMEIRA PULA PRA TERCEIRA

Carlos Heitor Cony dizia que o único dilema efetivamente angustiante para quem escreve um conto ou um romance é o de decidir se o fará na primeira ou na terceira pessoa do singular. “Acordei de repente naquele quarto estranho…” ou “Ele acordou de repente naquele quarto estranho….”. Para quem faz uma escolha, resta então escrever, já para quem não faz, o prazer que assim o será. Mambembe me livrou dessa angústia, como de tudo que limita ou paralisa. Ouvir a canção e ler a letra nos coloca num estado de vida eterna dum mundo que pode acabar amanhã. A música inspira viver, como se viva estivesse, e está. De toda arte do Chico sai a fagulha buarqueana, que não só acende, como deixa a mente fervilhando. Umbilicalmente ligada em essência, ela é assim, da literatura à dramaturgia, passando pela música, essa mágica das letras.

partitura mambembe

ESSE MUNDO É TODO MEU

– Que cara assustada é essa? Até parece que nunca entrou numa delegacia.

– Doutor Delegado – é assim que lhe chamo? Doutor Delegado? Posso botar também um Digníssimo aí… Digníssimo Doutor Delegado!

– Pra começo de conversa quem “bota” é galinha. Por um acaso você tá de chacota comigo?

– Não, não! É que brinco com as letras no começo das palavras, como se fossem malabares… Quando elas me saltam da cabeça fico a equilibrá-las no ar, enquanto elas gritam por suas iniciais. Olhe só, eu me apresento Digníssimo Doutor Delegado: sou o mendigo, malandro, moleque e molambo!

– Marginal…

– Começa com “m”! Gostei, vai entrar para o malabarismo das letras, mas no sentido próprio e não no pejorativo, né, doutor!?

– Ora não se faça de desentendido! Você foi flagrado pichando um muro, isso é coisa de marginal. Logo, você está aqui. Entendeu agora, malandro?

– Coisas do coração… Era um muro tão triste, me chamando para consolá-lo com um verso de amor! Enquanto nele eu escrevia a frase, pensava em minha namorada lendo aquilo, tanto sabendo que eu não padeci, quanto que podia esperar por notícias minhas: “Você vai saber de mim”.

– Ah! O marginal também é poeta?

– Poeta, palhaço, pirata, corisco, errante judeu!

– Parece que é um bom marginal, mas… mau poeta! Essas duas últimas não começam com “p”…

– Vejo que o senhor está atento. É mesmo contagiante! Às vezes, no caminho entre a poesia e o poema, as letras se desequilibram feito malabares na via do vento de volta às mãos. Viu só como as letras cambaleiam? Digníssimo Doutor… da Lei… ôpa! Desequilibrei de novo.

A ironia do delegado vai sofrendo certo embotamento, dando espaço ao interesse e à curiosidade. Mas o mundo não se resume àquela delegacia, e da porta pra fora, vamos com tudo que se passa ao redor dali. Não convém ficarmos a bisbilhotar uma conversa entre dois desconhecidos para nós, a não ser pelo fato de sabermos de que se cuida um delegado numa delegacia, e um… um o quê mesmo? Mendigo, malandro, moleque, molambo, poeta, palhaço, pirata, corisco, errante judeu… Marginal. Não! Marginal ficou por conta do delegado, que parece bastante aborrecido, ou então carrega em sua zanga a imperiosa autoridade do dia-a-dia para afrontar tantas pessoas que só lhe inspiram a desconfiança dos que vivem à margem das regras. Mesmo podendo sempre haver algo errado por detrás dos que ali não chegam, o suspeito infelizmente carrega em si a sua chaga, ainda que seja por pichar um muro. Assim foi o caso do nosso “malabarista das letras”, como ele mesmo se definiu.

A cidade é pequena, como tantas em milhares neste Brasil por alguns chamado de país continental. O mundo é grande, mas também tem lugar tão grande quanto o mundo, e o Brasil, de ponta a ponta, pode entrar nessa categoria. Ali é cidade modesta, praticamente esquecida de suas irmãs maiores, as cidades grandes. Por isso a delegacia é simplória, com uma saleta que divide o espaço entre uma espécie de copa mal arrumada, um armário sempre fechado e a mesa do delegado. Ah, a mesa do delegado, enorme, desproporcional para com o ambiente, abarrotada de papéis, que ele faz questão de deixar à mostra. Toda aquela papelada já podia estar arquivada há tempos, mas a cena dá um certo ar de dignidade, como se houvesse muito trabalho a fazer. Além disso, usa-se como estratégia quando não se quer esticar muito o assunto com alguém que o procura para uma denúncia corriqueira. Nessas horas, o delegado fica a mexer os papéis na frente do cidadão que lhe fala. Assim ocorre com Dona Hypotenusa quando comparece à delegacia para se queixar do marido, o Zé. Como se já não bastasse carregar um nome desses desde a infância, ela tem que engolir a indiferença do delegado aos seus temperos conjugais que, por nunca trazerem nenhum caráter violento, o levam a procurar certos papéis na mesa, dizendo-se muito ocupado com todos aqueles casos para cuidar, forçando-a a ir embora com os dentes travados a repetir, Zé… Zé… Zé… Parece haver um desgosto quando ela pronuncia nome tão simples, em contraste com o seu. E não é apelido. O pai sabia o destino do recém-nascido José e tascou logo um Zé no registro. O cartorário, por descuido ou perversidade, nem piscou ao anotar no pesado livro o nome do novo rebento.

Pois é nessa cidade do delegado, da Dona Hypotenusa e do Zé que surgiu um dia uma trupe de circo vindo não se sabe de onde e se fixou num terreno por detrás da Igreja, dali se podia montar a lona para o espetáculo. Na verdade, ao vê-la na estrada, estamos sendo bondosos com a situação. O que se chama de trupe de circo é um ajuntamento de seis amigos, rodando numa kombi tão velha que parece ser um carro viajando no tempo. Já a lona é um pano que se estica por meio de varetas, formando um círculo, feito um muro de tecido, para impedir que se veja o espetáculo sem pagar o ingresso. O pano de roda… cheio de listras largas… comprido, desbotado e encardido.

PANO DE RODA

No pano de roda tem espetáculo? Tem sim, senhor! Um mágico, dois equilibristas e dois palhaços que se esbofeteiam resolvendo ali mesmo suas diferenças – são irmãos gêmeos, diga-se, fazem isso desde o útero. Chega um momento em que não se sabe quem estapeia quem, são absolutamente idênticos, parece uma briga de um louco com um espelho. A plateia? Frouxa de rir! Depois da luta, recolhidos na kombi que é também camarim, um coloca panos com gelo no outro, e se riem enquanto tomam goles de aguardente. O sexto membro da trupe é o nosso conduzido à delegacia por pichação, o que diz ser muita coisa: mendigo, malandro, moleque, molambo, poeta, palhaço, pirata, corisco, errante judeu… um artista, no melhor conceito da arte! Se é que é possível conceituar algo que corrói o tempo e alarga o mundo. Dependendo da cidade, ele mostra uma faceta do seu talento. Ora declama como poeta, e faz um jogo tão bonito com as palavras que parece ser ele próprio quem as criou; ora canta músicas belas e profundas e não se sabe de onde ele as buscou, todos ficam com lágrimas retidas e coração apertado. Ora conta histórias engraçadas de planetas por ele imaginados, e é tanto riso, que todo o público adoça a sisuda alma pelo fio das horas, dias, semanas. É um autêntico mambembe, tão cambiante quando seu destino, a percorrer estradas sem jamais se fixar nalgum lugar, na simplicidade, contando com sua voz a cantar uma cabeça pensante e um coração latente, que nunca param. Tal o viajante das estradas, ele traz a verdadeira arte, que caminha de braços dados com a liberdade.

Foi justamente nessa pequenina cidade, em noite agradável e silenciosa, que o mambembe saiu a caminhar pelas ruas desertas. Avistando a lua, lembrou-se da amada. Ele carregava no bolso um pequeno spray de tinta preta, com o qual avivava constantemente o letreiro de sua trupe fixado há tempos na Kombi: “Circo Na Boca do Povo”. Não teve dúvidas, sacou o spray, agitou e começou a inserir no muro o recado num verso. Ele sabia que se por um acaso sua namorada por ali passasse, reconheceria o lema lírico que costumava sussurrar ao ouvido dela sempre que se sentia feliz. Foi quando passou o delegado tomando o rumo de casa, após três cervejas no bar do Seu Abstêmio (o nome não é piada, mas essa é outra história). Avistou aquele ser estranho a rabiscar o muro, não pensando duas vezes: “teje preso!”. Por isso, já na delegacia, a conversa foi aquela que deu início a estas letras nem um pouco malabaristas, mas autênticas quanto à narração dos fatos.

O delegado pensou em fazer o flagrante, preencher os papéis como de costume; seria mais um inquérito a compor o cenário daquela mesa abarrotada de processos já findos e nunca resolvidos. Lembrou-se de Dona Hypotenusa e a tática de mexer na papelada fingindo trabalho acumulado de autoridade. Então se deu conta que deveria estar em casa, afinal, já tomara as três tradicionais cervejas antes de ir ao lar desfrutar do merecido descanso. Mas ele estava ali diante de um louco varrido, um estranho que agia como escravo fugido, derramando e sorvendo a alforria. A noite seria burocraticamente longa se ele fosse seguir os protocolos. Balançou a cabeça negativamente, umas quatro vezes, e disse para si mesmo, “não, não vou fazer isso”.

Sentou-se o delegado, convidou o conduzido a fazer o mesmo, estavam ali os dois, era tarde, o silêncio fazia um barulho que muito incomodava naquele instante: o barulho de nada se ouvir, como se a cidade não existisse.

– Sabe de uma coisa? Amanhã você vai pintar aquele muro! Tem tinta lá atrás na garagem da delegacia. É roxa; a cor é meio esquisita, confisquei de um depósito aqui da cidade. O gerente começou a vender essa tonalidade dizendo que era a última moda da novela “Meu Coração é Colorido”, que logo logo viria pra essas bandas, porque o sinal lá da capital demora a chegar. Tudo conversa. Nem existia a tal novela, ele acabou confessando que fez o mesmo noutras cidades com verde abacate, azul royal e até amarelo ovo. Devolveu o dinheiro a todo mundo, por isso escapou do xilindró. Fiquei com um galão, para o inquérito. O gerente foi embora, nem quis mais saber de tintas. Dizem que agora ele está numa loja que estoca esterco de vaca, adubo para plantas. Pensei até em avisar ao delegado dessa cidade: “Fica de olho! Se ele falar que estrume é moda em alguma novela, já prende o homem!”, mas acabei esquecendo, dele e da tinta na garagem. Lembrei agora por causa de sua audácia de pintar muro aqui na minha cidade. Vou lhe dar a lata da tinta roxa. O muro é de um terreno baldio, ninguém vai reclamar da cor. A tinta apaga sua pichação, a rua volta a ser bonita. Será esta a sua pena. Esquecemos tudo, você toma seu rumo.

– Digníssimo doutor delegado. O senhor já pichou muro alguma vez?

As faces do delegado rapidamente ficaram coradas, ele quis se levantar, dar um grito no desaforado, enquadrá-lo sob as ordens legais, mas desistiu rapidamente, não queria mais esticar aquela noite, e, pensando melhor, talvez a pergunta guardasse um pouco de sinceridade ou mesmo uma curiosidade para que o malandro avaliasse se a pena estava à altura da infração.

– Nunca! Respeito a propriedade alheia.

– Eu sabia. Esse é o problema, doutor. O senhor tem essa coisa de propriedade, propriedade, isso deve ficar zoando em seu ouvido, como se tudo pudesse ter um dono. Eu durmo na estrada, já dormi debaixo de ponte, tenho um sangue cigano, não sei o que é propriedade, mas vou lhe confessar uma coisa: esse mundo é todo meu.

O delegado explodiu no riso, não teve como se conter, até achou que valeu a pena criar todo aquele cenário. Foi divertido demais ouvir tamanha loucura, mas tão logo parou de rir, ficou bem sério e disse secamente: – Explique.

– Quando se sobe ao palco, você entende que o mundo é aquilo, não é preciso mais nada na vida, a felicidade que se tem é tão grande que parece que você vai levitar. Chego na praça e sinto a mesma coisa, porque vejo pessoas alegres, andando, conversando, a alegria alheia acaba se entranhando na gente, feito perfume bom. Volto ao meu pequeno circo, é um pano de roda – se o senhor quiser ver o espetáculo é nosso convidado – e ali no circo eu vejo de repente que sou tão feliz como seria num banco de jardim! Então pra mim é tudo igual: no palco, na praça, no circo, num banco de jardim. Sabe por que, digníssimo doutor delegado? É que eu vivo cantando, e canto para viver. Se não estou cantando alto, tem música aqui dentro, na cabeça, passeando e querendo dizer.

– Isso é bonito, mas é coisa de artista. O senhor não pensa no futuro, na velhice? Se não tem uma casa, uma propriedade, como vai ser? E se ficar doente? E quando não puder mais cantar?

– Eu sempre vou cantar, doutor! Quando eu estiver por baixo da terra, estarei na boca do povo, minha música lá, o povo cantando.

O delegado de repente se lembrou de um violão que fora apreendido numa confusão no bar do Seu Abstêmio. Duas mulheres se diziam donas do instrumento, presente de artista famoso, puxa daqui, puxa de lá, quando houve ameaça de ficar mudo o violão, o delegado o tomou antes que se partisse em pedaços. Só depois ele entendeu a razão da briga. As duas mulheres se chamavam Rita. Como saber a real destinatária da dedicatória escrita no verso da madeira? “Para que você, Rita, nunca mate nosso amor de vingança. Francisco”. Foi até o armário no canto da saleta, pegou aquele pinho e entregou ao artista.

– Mostre sua música, deve ser muito boa, pra ficar na boca do povo mesmo depois que você partir dessa pra outra.

CHICO MAMBEMBE VIOLÃO

Os olhos do mambembe brilharam. Ele nunca dedilhou violão bonito como aquele. Artista não recusa arte. E o desejo dele não era o de tê-lo, ele nada queria como propriedade, só ficou mesmo com as mãos coçando, a vontade de acarinhá-lo. Rapidamente afinou o instrumento, o som era de fato um espetáculo por si só. Pensou em qual música deveria cantar ali.

– Quer saber de uma coisa, doutor? Violão chique assim merece uma música novinha em folha, e aí o senhor me perdoe, vou fazer agora uma música aqui contando minha história! Nunca toquei num caprichado desse, vou nessa marchinha e já já começo a me debulhar nela…

O som começou a ecoar na saleta, o delegado percebeu que de fato ele dominava as cordas, não era um farsante. E para espanto de quem não esperava música de qualidade, a cantiga começa a sair da boca do feliz infrator (bendita pichação!):

No palco, na praça, no circo, num banco de jardim
Correndo no escuro, pichado no muro
Você vai saber de mim
Mambembe, cigano
Debaixo da ponte cantando
Por baixo da terra, cantando
Na boca do povo, cantando

Mendigo, malandro, moleque, molambo, bem ou mal
Escravo fugido ou louco varrido
Vou fazer meu festival
Mambembe, cigano
Debaixo da ponte, cantando
Por baixo da terra, cantando
Na boca do povo, cantando

Poeta, palhaço, pirata, corisco, errante judeu
Dormindo na estrada, não é nada, não é nada
E esse mundo é todo meu
Mambembe, cigano
Debaixo da ponte, cantando
Por baixo da terra, cantando
Na boca do povo, cantando

O delegado desconfiou que a canção não fora composta ali, deveria estar pronta há tempos, talvez nem do mambembe ela fosse, mas isso pouco importava, era muito boa, dava vontade de sair dançando e correndo pela cidade. Ele nunca tinha ouvido música tão bonita quanto aquela.

Já com as orelhas limpas e os ouvidos hidratados, o delegado disse: “Vamos embora, está tarde”. Pegou o violão de volta, apontou a porta da saída com a palma da mão, sem mais nada dizer. O artista saiu num estilo de quase-dança, a música parecia ainda lhe rodar à cabeça. O delegado fechou tudo e foi para casa dormir. Ele nem percebeu – e correriam dias para a descoberta – que os sapatos do mambembe deixaram-se abandonar por debaixo da mesa; foi no momento da cantoria, ao desfiar as notas no violão, o malandro se deu conta do mendigo sorrindo dentro de si. Aqueles calçados tinham o peso da formalidade e, feito moleque, livrou-se deles para sempre naquele recinto. Finalmente o molambo poderia levitar pelas ruas com as asas dos pés descalços.

No outro dia, quando a trupe foi embora, o delegado se deu conta de que não entregou ao mambembe a lata de tinta roxa. Indignado consigo, pois acabou esquecendo sua determinação, concluiu que ele mesmo deveria fazer o trabalho. Ainda que ninguém soubesse o que tinha ocorrido, era questão de honra pessoal. Onde já se viu, prende um pichador, se encanta com a música dele, o libera, e fica lá a cena do crime?… Foi andando em direção ao muro, resmungando e prometendo a si mesmo que não cairia noutra dessa.

Chegando ao local, viu o que o malandro escreveu naquele muro quando foi flagrado, na véspera: “Esse mundo é todo meu”.

Ficou um bom tempo olhando para a frase, ele já ouvira aquilo… sim, o mambembe falou essa frase, e mais do que isso, a frase entrou para a música feita na delegacia. Começou a relembrar a formidável canção. No palco, na praça, no circo, num banco de jardim…

Veio então a ideia. Por um momento hesitou, teve receio que odiaria a si próprio pelo resto da vida por obedecer a um ímpeto que veio não se sabe de onde, mas não teve jeito, estava decidido. Olhou para um lado, olhou para o outro, era cedo, a cidade ainda dormia. Abriu a lata, molhou o pincel, mas não pintou o muro. Ele apenas escreveu outra coisa abaixo da frase do mambembe.

Saiu rapidamente, chegou a rir por dentro feito criança que faz algo errado, mas que acha bom, e voltou aos seus afazeres.

Mais tarde, quando a cidade despertar, muitos olharão aquele muro sem entender direito as duas frases ali escritas, parecem desconexas, e com letras diferentes. Paciência. Lá está o registro, até hoje, para quem quiser ver.

Esse mundo é todo meu (em spray, preto).

Na boca do povo, cantando (em tinta, roxa).

pano de roda 1

É fato também que nenhuma alma viva da pequena cidade fez um elo entre as mensagens daquele muro e a nova arrumação no gabinete do doutor delegado. A primeira que notou foi Dona Hypotenusa, ao entrar para a cantilena de sempre sobre o Zé. Ela reparou a mesa limpa, sem um papel sequer por cima, parecia até ter duplicado de tamanho, era um vazio imenso, e o olhar do delegado por detrás do móvel, tranquilo, um leve sorriso esboçado no canto da boca, e ela falou como nunca, pois ele não a interrompeu uma vez sequer, depois a levou até a porta, tudo parecia muito estranho, o delegado só acompanhava até a saída as autoridades. Dizem que assim o fez com o estagiário do assessor do secretário de obras do vice-prefeito da cidade vizinha, quando ali esteve à procura de um gato fujão da mulher do secretário, que vivia aos pés daquela dona a contemplá-la, mas um dia ronronou a ela que nasceu pobre, porém livre, e fez-se um felino mambembe.

A delegacia, por coincidência, passou a ter um ar de mistério no mesmo dia em que a trupe do circo de roda foi embora da cidade sem fazer um espetáculo sequer. Esse mistério aumentava naquele ambiente quando ao cair da noite. As pessoas se aglomeravam por perto – mas não tão próximo que pudessem levar o delgado a abrir a porta e saber o porquê da algazarra –, pois juravam ouvir um som de violão, bem baixinho, e quase dava para perceber uma marchinha como se alguma cantiga estivesse ali por detrás daquele dedilhar tão discreto.

Indiscreto mesmo era o som animado vindo de uma kombi que naquele momento rasgava as estradas, sem rumo, os seis integrantes dentro do carro a entoar a cantiga em sintonia com o poeta do grupo. Eles adoraram a nova música, foram unânimes em dizer que deveriam cantá-la todo dia, pois ela dava uma vontade danada de dançar e de sair pulando por aí, era um sentimento de felicidade sem motivo. E precisa de motivo para ser feliz?

Mambembe, cigano
Debaixo da ponte, cantando
Por baixo da terra, cantando
Na boca do povo, cantando

mambembes se despedindo

 

NÃO É NADA, NÃO É NADA

Esse meu conto, livremente inspirado na música Mambembe, além de ter como objetivo divertir o leitor deste blog – daí o tom crítico, porém leve do texto, e em certos momentos até propositadamente caricato –, carrega em si a demonstração das amplas possibilidades de manuseio da obra musical buarqueana, essa argamassa sólida quanto ao conteúdo e ao mesmo tempo flexível em relação às infindas janelas de interpretação.

cartaz filme

A música tem um contexto, ela foi feita em 1972, para o filme dirigido por Cacá Diegues, chamado “Quando o Carnaval Chegar”, com roteiro do próprio Cacá, juntamente com Hugo Carvana e Chico Buarque, que mostra exatamente um grupo mambembe de cantores viajando pelo país num antigo ônibus. Além das interpretações de Chico, Maria Bethânia e Nara Leão, o elenco é complementado por Hugo Carvana, Antonio Pitanga, Ana Maria Magalhães, José Lewgoy, Elke Maravilha, Wilson Grey, Luiz Alves, Odete Lara, Vera Magalhães, Scarlet Moon, Joaquim Mota e Zeni Pereira.

filmagem MAMBEMBE

Todavia, a canção acaba ganhando vida própria, salta da sua origem e vive a passear nesse mundo formado por tantas personagens e histórias criadas por Chico Buarque, em seu extenso e inigualável catálogo musical.

Observem que uma das características do modo de produção do Chico é a de uma plataforma de linguagem de cunho fortemente cinematográfico ou teatral; suas músicas seguem um roteiro cuja percepção visual da história vai se formando em nossa mente ao se avançar na trilha cantada de determinada narrativa.

Esse viés é de extrema importância para compreender as variantes interpretativas de sua obra, considerando o fato de que algumas músicas nascem vinculadas a determinado script – de filme ou de peça teatral –, e mesmo com esse cordão umbilical, as cantigas carregam em sua essência a característica de poder girar ao redor delas mesmas, como se fossem eixos que gravitam em torno de um contexto, mas também se movimentam de modo autônomo dentro delas próprias. Por isso elas tanto servem para aquele musical no palco ou na tela, como se abastecem infinitamente de sua independência lírica. Desgrudam-se da origem e passam a ter vida autossuficiente. Geram outras vidas na medida em que se interpreta de maneira diversa cada música.

Quando ouvi a primeira vez Mambembe, sem saber de sua origem – o filme de Cacá Diegues – a sensação a me invadir, da qual não esqueço, foi a de uma alegria sem motivo, uma vontade de sair à rua rindo de felicidade em busca de cores e texturas do “estar livre” que aquela música impregnou minha essência. Assim, primeiro captei o eixo da música que gira em si mesma; somente depois fui em busca da gravitação que a movia no contexto da obra cinematográfica. De um modo ou de outro, Mambembe me parece ser uma homenagem à alma de artista que habita em todos os que ainda acreditam na beleza da arte e na indispensável liberdade.

Particularmente, acredito que essa música desperta no Chico uma alegria muito peculiar, isso porque em dois shows dele a canção praticamente abre o espetáculo. Assim ocorreu nas turnês “Carioca” (2006/2007) e “Caravanas” (2017/2018). Nos dois shows, Mambembe é engatada logo após o abrir da cortina com músicas que não são do Chico. Em “Carioca”, a abertura se dá com “Voltei a Cantar” (1939), de Lamartine Babo, e em seguida vem Mambembe, completando-se com “Dura da Queda”, do Chico. No show “Caravanas”, a extraordinária “Minha Embaixada Chegou” (1934), de Assis Valente (e que também faz parte do filme “Quando o Carnaval Chegar”), é sequenciada por Mambembe. Nesses dois momentos distintos, separados por dez anos, Mambembe entra no palco convidando nossa alma parar dançar, ante a alegria sem motivo do poeta, palhaço, moleque, malandro e tudo o mais que adorna a alma do artista.

O conto por mim elaborado “não é nada, não é nada”, dadas as inesgotáveis possibilidade de interpretação de Mambembe em seus labirintos de palavras e expressões, que acabam formando uma teia com diversos pontos de ligação. A exemplo, na figura do “errante judeu” associada a outras personagens –  o poeta, o palhaço, o pirata e o corisco – justifica-se como um elo em relação ao Mambembe porque o personagem mítico judeu errante foi condenado a vagar pelo mundo sem nunca morrer. Do mesmo modo, “corisco”, que significa raio (Dicionário Houaiss), mas também quer dizer astuto, esperto. Então se tem nessas palavras o próprio desenho do Mambembe, que é um apreciador e criador de canções (poeta), um artista (palhaço), um ser livre (pirata), astuto (corisco) e andarilho (errante judeu).

O mais importante é ficarmos atentos ao recado final da música. Chico nos lembra, pela boca do Mambembe, que é preciso reavivar a obra do artista, e é tão simples fazer isso, basta ouvir a música, mostrar aos outros, ensinar aos pequenos as preciosidades por detrás daquelas palavras, relembrar aos mais velhos a sensação por vezes perdida da felicidade sem motivo, porque uma música dessa não somente salva nosso dia, como também pode tornar real o desejo do Chico enquanto Mambembe, que é o de estar Na boca do povo, cantando.

DISCO VINIL

VOU FAZER MEU FESTIVAL

A primeira gravação de Mambembe se deu em 1972, no disco com a trilha sonora do filme “Quando o Carnaval Chegar”. Dez anos depois, Chico grava a música em espanhol, num álbum de 1982 (Chico em español), com letras de algumas de suas músicas vertidas para a língua hispânica por Daniel Vigletti, produzido e dirigido por Sergio de Carvalho. Ainda há o registro da cantiga nas interpretações realizadas em dois shows do Chico, “Carioca ao Vivo” (2007) e “Caravanas ao Vivo” (2018).

Mambembe

Chico Buarque/1972

No palco, na praça, no circo, num banco de jardim
Correndo no escuro, pichado no muro
Você vai saber de mim
Mambembe, cigano
Debaixo da ponte cantando
Por baixo da terra, cantando
Na boca do povo, cantando

Mendigo, malandro, moleque, molambo, bem ou mal
Escravo fugido ou louco varrido
Vou fazer meu festival
Mambembe, cigano
Debaixo da ponte, cantando
Por baixo da terra, cantando
Na boca do povo, cantando

Poeta, palhaço, pirata, corisco, errante judeu
Dormindo na estrada, não é nada, não é nada
E esse mundo é todo meu
Mambembe, cigano
Debaixo da ponte, cantando
Por baixo da terra, cantando
Na boca do povo, cantando