RETRATO EM BRANCO E PRETO – SABIÁ

NO RETRATO, A SABIÁ

Eu confesso a aversão a binóculos desde menino, apesar de sua encantadora promessa de esticar a vista, atravessando quilômetros como num passe de mágica. Na verdade, achava engraçado esse nome, bi-n-óculo. Parecia que alguém cortara uma perna dos óculos, o “s”, decepando a letra da palavra, e mesmo sabendo que bi significa dois, um “n” perdido no meio da expressão me fazia rir ao imaginar, “de que adianta um binóculo se ele nem consegue achar uma letra perdida dentro de si mesmo?”. Certamente essa antipatia era inveja de míope. Os portadores de miopia como eu sentem imenso despeito dos que enxergam sem a necessidade de incomodar as orelhas com ganchos que as volteiam na ilusão de não serem notados. É chato servir de referência no meio da multidão, pois alguém sempre há de dizer: “o Francisco é aquele ali, vizinho ao de óculos”.

Pela primeira vez, contudo, sinto falta de binóculos. Daqui diante do mar, flertando sua imensidão azul, me intriga saber até que ponto o azul é do mar ou do céu que o toca. Tento em vão distingui-los pelas nuvens e espumas com seus desenhos disformes, mas ambos são rajados esbranquiçados que neles levitam. Céu e mar parecem querer me enganar na proposta de um único azul. É inútil, não vou conseguir binóculos nesta praia; são tantos ambulantes que se arriscam a trabalhar em difícil caminhada na areia fofa ofertando sabores e coisas. Imaginar um vendedor fazendo o pregão “binóculos! Quem quer binóculos!” é tão ridículo como minha face agora, contraída, a espremer os olhos em busca de enxergar melhor à frente de meus óculos batizados de maresia, almejando sem êxito enxergar a divisão do azul do mar com o azul do céu.

PRAIA DO FUTURO - CEU E MAR
Praia do Futuro. Fortaleza, Ceará.

“Seria bem mais fácil se tudo fosse branco e preto”, suspiro num desabafo disfarçado em conformismo. Branco e preto. Eu bem sei que se fala por aí em preto e branco, mas já não sei o que me deu para essa fuga do comum. Talvez seja a cadência das ondas, me induzindo a um torpor bem compatível com o mormaço desta tarde, ondas que me levam a perceber que não são sempre iguais. Começo a contá-las, numa provocação à natureza, e penso, “jamais elas seriam tão ritmadas como uma música”. Então me pego vigiando as ondas em suas idas e vindas, treze ondas seguidas e praticamente iguais, para só então outra em tempo e forma diferente quebrar a sequência, surgindo daí três ondas com suas próprias vontades. Nova contagem. Treze novamente, e a quebra pelas três seguintes. Dezesseis ondas, treze iguais, depois três a desequilibrar a rotina marítima. Nesse momento, dá-me um calafrio. Lembro-me do branco e preto por mim pensado antes, e agora essa sequência de ondas no mar. Puxo pela memória… foi num artigo que li há bastante tempo de Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, dizendo que Tom Jobim fizera uma música em 1965  chamada “Zíngaro”, com a triste melodia de quem sente saudade de seu país – pois na época ele morava nos Estados Unidos –, e essa música tinha dezesseis compassos rítmicos, sendo os treze primeiros absolutamente iguais. Do mesmo modo como as ondas que estou a contar.

Agora, a praia, o mar, as ondas, começam a me trazer pensamentos em busca da história daquela música do Tom, que ele dizia à irmã Helena que a compusera inspirado num violonista cigano. Na verdade isso nunca aconteceu; Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim tinha o humor tão extenso quanto seu nome. Aos 38 anos aquele músico luminoso dava “uma lição de economia e inteligência” – lembrei-me dessa parte do texto de Jairo e Zuza – com os compassos feitos por sobre uma melodia de quatro notas vizinhas, ré, dó sustenido, mi e dó natural. Vem o ritmo, e então eu me lembro das ondas… não preciso abrir os olhos, sei que elas se apresentam tal o compasso de “Zíngaro”, treze iguais, depois três fazendo crescer a dramaticidade…

Partitura de Zíngaro. Acervo Digital – Instituto Antonio Carlos Jobim.
Partitura de Zíngaro. Acervo Digital – Instituto Antonio Carlos Jobim.

Fico a imaginar aquela música em seu invólucro puramente de sons, desapegado de palavras, a esperar que um poeta viesse a lhe dar o sopro dos vocábulos. E fez-se o verbo somente em 1968, quando Chico Buarque a coloca na estrada de uma lembrança doída e sem cor, e faz surgir Retrato em Branco e Preto.

Onde começa o céu e onde termina o mar? Nem sei o porquê disso me assaltar a mente justo agora, no momento em que a cor se afasta de meu pensamento, estava mesmo era fixado no branco e preto da música, mas a cor do mar e do céu se fundem numa só… fico a pensar, e o olhar é incapaz de divisar essa fronteira. Afinal, mesmo que soubesse, diferença nenhuma faria; nós ainda nos veríamos tão pequenos diante do inteiro dos dois planos. Céu. Mar. Branco. Preto. Tom. Chico. Tento separar tudo isso para o pensamento se direcionar à letra da música; quero demais recordar cada detalhe. Eu que tanto fiz isso… esquadrinhar verso, palavra, cuidadosamente, para entender a beleza total da obra, que nunca poderia ser alcançada em sua arte perpétua. É como fazer um castelo de areia na praia, gotejando água e erguendo colunas na praia com as conchas das mãos. Mas no momento não consigo me lembrar. Deve ser o sufocamento da tarde a lançar seu recado de quentura da costa, aos poucos mais silenciosa e fresca. Agora todos já se aproveitaram das bênçãos molhadas do mar e partem como se tivessem cumprido um dever para com a natureza, numa procissão de corpos impregnados de sal. Dentro de pouco tempo estarão diante a uma queda de água doce bem diferente de uma cachoeira. A água encanada, tratada e aquecida lhes levará o sal do corpo rumo ao ralo, e a lambidela das ondas será passado.

Respiro fundo e aos poucos consigo escutar Retrato em Branco e Preto pelo ouvido da memória, mas não na ordem dos treze compassos seguidos de mais três, ela me vem embaralhada. Acredito ser uma brincadeira da mente, a testar minhas emoções, uma espécie de gincana – alguns com seus estrangeirismos linguísticos diriam quiz show – para saber até que ponto posso cerzir os sentimentos tão profundos e dramáticos da letra. Com seus mesmos tristes velhos fatos é o que me chega, repetidamente. Tristes velhos fatos. Fato é algo novo, o que surge, quando passa já não é mais fato, é recordação. Como então velhos fatos? Sim, agora lembro a imagem que sempre me rodeia ao ouvir a cantiga. O tolo da música, o aflito, recortando de modo desconsolado notícias de jornais, colunas sociais com a foto dela sorridente, ela, a quem ele sempre chama “minha cara” no início das cartas, fazendo o charme das correspondências em inglês. Naquela terra elas trariam um “my dear”, que os tradutores desavisados diriam ser meu querido ou minha querida. E esses recortes de jornais seriam os fatos que envelheceram, tornaram-se a tristeza em branco e preto, fixada num álbum.

album retratos branco preto 1

O tolo e a sua cara, cuja cara é sempre a mesma, mas volta sempre a lhe enfeitiçar, talvez pela possibilidade de mais um sorriso. Aos poucos a letra da música vem da narrativa daquele conhecedor da estrada que não dá em lugar nenhum, recheada de segredos por ele já desvendados. Mas como todo homem ludibriado ele segue mesmo cansado, passando suas noites em claro matutando seus dias de apatia, fiando-se que além dos segredos que descobrimos, existem também aqueles que só conhecemos se nos forem confidenciados. Engraçado… se nunca tivesse ouvido a música eu ficaria confuso… branco e preto, cor… Ele escreve cor, parecendo assim ser o descolorido, mas diz-se de “cór”, sendo aqui o decorado. Perderia a cor, aquilo que sabemos de cor? Então só mais um fato desfigurado na gaveta vazia trancafiada, aquela que mais adoraríamos abrir. A excitação do homem que mora na curiosidade. Sendo Chico Buarque quem disse, eu ainda penso ele saber os segredos dela de cor, vindo do latim, “de coração”. Não é difícil imaginá-lo dizendo que sabe dos segredos dela de coração. Mas fico aqui acreditando no que parece, “sei de cor”, cansado de saber; como diziam os antigos, sei de cor e salteado. E é assim que vem vindo a canção visitar minha memória, salteando os versos, sem a ordem prevista. É boa essa confusão, até porque a música fala em verbos do presente e futuro, nada de verbo no passado. Mas a história é justamente sobre um passado plasmado em retratos colecionados. Há um delírio poético proposital em mostrar o passado não em verbo, mas no substantivo, o retrato, adjetivado pela ausência de cor, em branco e preto, que eu já não sei mais conter um sentido literal ou figurado.

Nega-se o amor, evita-se o amor, mas ele volta a enfeitiçar, ninguém pode ir contra o encanto, é esse entanto que destrói o tanto e tanto repetidos propositadamente nos versos anteriores, porque a ilusão é mais forte do que a razão (O que é que eu posso contra o encanto / Desse amor que eu nego tanto / Evito tanto / E que no entanto / Volta sempre a enfeitiçar). De repente fico a rir sozinho! Se tenho o azar de algum médico passar a esta hora na praia ele há de acionar o serviço de recolhimento de loucos. Onde é que já se viu? Alguém na praia cantando sozinho num belo entardecer, olhos ainda cerrados, a desenhar no rosto um sentimento que só vale ao se avistar esse azul tão intenso do céu e do mar unificados… Nesse momento eu já posso entender onde começa um e termina o outro. É bem ali aonde os azuis são recheados pela luz. Depois de passear pelo azul do céu brincando de esconde-esconde com as nuvens, eis o sol que embalado pela música das ondas, se esparrama sobre o azul do mar. E assim passo a sorrir, já que este é o meu consolo. Tão logo me toma de volta a risada. É que a palavra desconsolo me enganou várias vezes, acreditando eu, ser ela um consolo desmedido. Veja só que precariedade de conhecimento! Se bem, que a música baila em meus ouvidos desde a adolescência, e a preguiça de ir ao dicionário me fez a paga de entender errado, pois, se é um consolo desmedido, como então o tolo fica cansado? No consolo se aconchega, se descansa, e eu ficava intrigado com isso, até o bendito dia em que me redimi e finalmente fui ao livro que alumia as palavras soltas, para saber que desconsolo é aflição, desgosto. Atinasse eu em meus anos dourados ao prefixo “des”, entenderia ser simplesmente: o que não consola. Sim, agora tudo faz sentido, já que, teoricamente, somente um tolo perduraria na busca do mesmo que sempre encontrou naquela estrada, e que nunca o entregou nenhum consolo. É quase como se eu pudesse ver ali nas entrelinhas, a natureza masoquista humana, às vezes nem tão discreta, mas sempre secreta (Lá vou eu de novo como um tolo / Procurar o desconsolo / Que cansei de conhecer).

partitura RBP

De repente, algumas palavras começam a se destacar da canção, como se vida própria tivessem, se apresentando a toda minha atenção. Estrada. Amor. Dias. Noites. Ainda creio que aquele retrato em branco e preto traga a imagem dele de costas caminhando numa estrada rumo a um horizonte que revela a transição sucessiva e constante das noites para os dias, mas sempre em busca de um amor que ele não alcança. Eu sempre leio as palavras do Chico como se fossem eternas crianças, com uma vida inteirinha pela frente, as possibilidades… e ouço as notas do Tom como se pássaros revelassem, a nos conduzir pelo céu, por vezes mergulhando no mar. Então quando tenho ambos, eu vivo de novo naquele menino praieiro que fui, a acompanhar o voo das aves com os olhinhos acesos. Sabiá! O passarinho daquele canto salpicado, que dá nome a outra música onde Tom e Chico casaram talentos tão generosos quantos as águas da nossa terra. Fico a pensar… a sabiá é a única lembrança que o coloca de volta nessa terra boa, já que não mais existem estradas que o conduzam a ela. Todas se perderam junto a suas noites de tortura a espera do dia de voltar. Aquele em que ele chegaria já tão amargo, que ao amor espantaria. Ele acredita que tudo está perdido no tempo que não volta, salvo no canto da sabiá, abrigo da sua fé. Eu me lembro bem. Nossa, eu fui longe agora… mas, gozado?!… aquelas mesmas palavras ainda me vigiam, estradaamordiasnoites… se repetem num círculo de mãos dadas, como se tivessem a brincar de roda. Nessa brincadeira umas trocaram de lugar com as outras, numa correria onde do dia perde-se um “s”, que a estrada encontra; enfim: ‘no popular’, “achado não é roubado”. Amor. Noites. Dia. Estradas. É como elas adentram Sabiá.

SABIA NOS GALHOS

As duas canções que me tomam aqui diante de um cenário de liberdade, foram feitas no mesmo ano, 1968. Parece ironia… Sabiá; a triste canção do exilado prometendo a si mesmo que um dia voltará ao lugar do qual nunca deveria ter saído, expulso que foi pela truculência a se assenhorar de um poder ilegítimo daqueles que possuem armas ao invés de princípios. Começa a chegar a noite e quero muito lembrar de tudo que divaguei por hoje, para quem sabe mentalmente convidar essas canções a estarem juntas. Seria uma dança de amores diferentes que se completam, mas que têm um aparente antagonismo. Vejam só, a gente não manda mesmo no pensamento, nem no sentimento, aliás não mandamos em nada, e inesperadamente uma equação lírica é montada em minha cabeça. As duas músicas falam de ausência. Retrato em Branco e Preto é a ausência da mulher. Sabiá é a ausência do país. A primeira ausência é uma força irracional que vem lá de dentro. Ele não quer ou não deve mais estar com ela, mas não consegue deixá-la, por acreditar que tudo será como antes, que sem essa mulher ficaria um tanto pior. A outra ausência é uma força racional que vem do lado de fora se impor. Ele quer e sabe que deve estar em seu país, mas não consegue ficar porque foi violentamente obrigado ao exílio. E afirma voltar ainda crendo que nada será como antes. Aqui, ambas as ausências se deparam numa ausência de si mesmo; ele não se encontra em lugar nenhum, é a solidão de fato. Na primeira ele está perdido numa estrada pela qual ele não consegue ir. Na segunda ele esta perdido porque não encontra a estrada por onde vir. Em Retrato em Branco e Preto o amor já não mais está lá, mas ele sim. Em Sabiá o amor está lá, mas ele não.

O curioso é como nas duas músicas ele não está em si no momento em que as mesmas se passam, o presente. Contudo, vive-se do passado na primeira, enquanto na segunda, anseia-se pelo futuro. Saudade alimenta Retrato em Branco e Preto. Esperança é a força-motriz de Sabiá. E assim parecem dizer as duas músicas, cada qual a sua maneira, que ele está no presente de corpo presente, com a alma entregue ao passado, querendo transpô-la ao futuro. Já que nunca poderá voltar ao passado de felicidade em ambas as canções, há de ser o futuro um lugar melhor que o presente, aonde residem as suas perdas.

album retratos 2

sabia 2

Vou voltar… a memória segue caminhos como se fosse dona de si mesma; não liga a mínima para minha vontade de querer continuar o jogo mental de comparação entre Retrato em Branco e Preto e Sabiá. Sem qualquer aviso prévio, ela me conduz aos acordes da música que lembra o cantar do pássaro das noites que não se queria. Fico a imaginar ser culpa do meu inconsciente, que pouco tempo antes estava a pontuar: vou voltar, já está anoitecendo na praia. A primeira canção se esvai da mente, como uma fotografia guardada na gaveta do móvel encostado num canto também quase esquecido.

Alguém sabia algo de sabiá no Brasil antes de Tom e Chico? Sim, certamente, aquele sabiá das palmeiras com seu gorjeio diferenciado, a compor o poema Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, de 1843 (Minha terra tem palmeiras, / Onde canta o Sabiá; / As aves, que aqui gorjeiam, / Não gorjeiam como lá). E pouco tempo depois, em 1857, com poema de idêntico nome, Casimiro de Abreu troca palmeira por laranjeira, mas o desejo de ouvir o sabiá continua (Se eu tenho que morrer na flor dos anos / Meu Deus/ não seja já: / Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde / Cantar o sabiá!). Nesses dois poemas era o sabiá, podia ser a sabiá, substantivo de dois gêneros essa ave, nem sei se foi aprendizado de escola ou visita despretensiosa ao verbete em algum dicionário.

Mais de um século depois, eis que surge a sabiá da triste e bela canção, um vir a ser (Foi lá e é ainda lá / Que eu hei de ouvir cantar / Uma sabiá), a certeza de ouvir e voltar a vê-la. A palmeira derrubada, ela já não há; mas o pior é o solo, de tal modo infectado com o veneno da tirania, que a flor ali já não dá mais (Vou deitar à sombra / De uma palmeira / Que já não há / Colher a flor / Que já não dá). Ainda assim, na lembrança do amado lugar, deita-se à sombra da palmeira inexistente, colhe-se a flor não nascida. E tenho a impressão de que ainda que estivesse tudo lá da forma como estava, seu olhar já não doaria a mesma poesia a nada que enxergasse; o seu jovem e crédulo coração teria permanecido dentro do peito daquela criança no passado. Sim, ele seguiu dissecado rumo ao exílio.

Max Beckmann. Hombre Cayendo, 1950 (Abstürzender). National Gallery of Art, Washington D. C. “Figuras del exilio”: Museo Nacional Thyssen-Bornemisza.
Max Beckmann. Hombre Cayendo, 1950 (Abstürzender).
National Gallery of Art, Washington D. C.
“Figuras del exilio”: Museo Nacional Thyssen-Bornemisza.

Duas palavras tão simples e efusivas: Vou voltar!… possuem a força da certeza. Vou voltar. Sons que lembram o voo, não o do pássaro, é o voo de quem há de regressar à terra da qual foi desterrado, para ouvir cantar uma sabiá. A essa altura, noite avançando, a praia escura, sou capaz de avistar ao longe o contorno das árvores já enegrecidas, e imaginar sabiás em seus refúgios de dormir, distantes árvores agora enegrecidas, as aves e seus pequeninos olhos cerrados, porém atentas ao dia que certamente chegará com um sol radiante.

Tom e Chico. Essa viagem musical a percorrer minha mente. Certo dia do passado rabisquei num papel que deixava ao lado do livro há muito repousado em minha cabeceira, Chico Buarque: tantas palavras – todas as letras & reportagem biográfica de Humberto Werneck. Ali constatei que o ano de 1968, com Retrato em Branco e Preto e Sabiá, representou o começo de uma parceria a atravessar quatro décadas, do final daquele ano de 1960 ao início do ano de 1990, totalizando 12 músicas desses dois artistas juntos. Percebe-se que a verdadeira parceria que os unia percorreu vieses de irmandade, versos aqui e acolá soprados por Chico nas trilhas musicais pautadas pela melodia do Tom, como em Lígia e Wave. Para além do completo, percebia-se um raro acontecimento quando se tem o convívio entre dois mundos que tentaram ser homens: a inspiração mútua. Tom, em carta escrita na cidade de Nova York, em outubro de 1989, disse que Chico Buarque era homem do povo, mestre da língua, a lealdade, a generosidade, a coragem. Chico, por sua vez, denominou Tom Jobim de seu Maestro Soberano, a soprar a toada que ele cobriu de redondilhas na cantiga-conselho aos jovens, para que eles se viciassem nos grandes mestres da música nacional, entoando ao final seu autêntico lema: Vou na estrada há muitos anos / Sou um artista brasileiro (Paratodos/1993). Vou na estrada. Vou voltar. Ele voltou sim. E segue na estrada, não aquela em branco e preto, e sim “numa estrada de pó e esperança”, como disse o Tom naquela mesma carta.

Finalmente consigo dormir, sentado mesmo… tantos pensamentos a rondar minha cabeça, não ouso me deslocar. Não convém buscar o horizontal modo de aguardar o sono. O momento é precioso demais para dissipar-se em confortos banais. O sono me alcança; eu juro que ele tem a forma de uma sabiá, pousada em meu ombro de asas abertas. Ao pé do meu ouvido ela derrama seu canto, me embalando rumo ao sonho. Chegando lá, alça seu voo,  abrindo caminho numa estrada de pó e de esperança. Ali a ave lírica torna-se onírica, acompanhada de versos, cartas, dias, noites, amor, palmeiras, flor, tudo materializado em indescritíveis imagens coloridas. Por vezes, aquele pássaro pousa e salteia cantarolando pelo caminho, com todas essas coisas o seguindo como se fosse uma procissão em busca de luz. Tom Jobim dizia que o ser humano aprendeu a falar ouvindo o canto dos pássaros. Creio que a sonhar também.

Chico e Tom. Foto de Marco Cavalcanti. 1978.
Chico e Tom. Foto de Marco Cavalcanti. 1978.

Retrato em Branco e Preto

Tom Jobim/Chico Buarque/1968

Já conheço os passos dessa estrada
Sei que não vai dar em nada
Seus segredos sei de cor
Já conheço as pedras do caminho
E sei também que ali sozinho
Eu vou ficar, tanto pior
O que é que eu posso contra o encanto
Desse amor que eu nego tanto
Evito tanto
E que no entanto
Volta sempre a enfeitiçar
Com seus mesmos tristes velhos fatos
Que num álbum de retratos
Eu teimo em colecionar

Lá vou eu de novo como um tolo
Procurar o desconsolo
Que cansei de conhecer
Novos dias tristes, noites claras
Versos, cartas, minha cara
Ainda volto a lhe escrever
Pra lhe dizer que isso é pecado
Eu trago o peito tão marcado
De lembranças do passado
E você sabe a razão
Vou colecionar mais um soneto
Outro retrato em branco e preto
A maltratar meu coração 

Sabiá

Tom Jobim/Chico Buarque/1968

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
Uma sabiá

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Vou deitar à sombra
De uma palmeira
Que já não há
Colher a flor
Que já não dá
E algum amor
Talvez possa espantar
As noites que eu não queria
E anunciar o dia

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Não vai ser em vão
Que fiz tantos planos
De me enganar
Como fiz enganos
De me encontrar
Como fiz estradas
De me perder
Fiz de tudo e nada
De te esquecer

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
Uma sabiá

Foto de Antonio Nery. 1968. Acervo da Associação Brasileira de Imprensa.
Foto de Antonio Nery. 1968. Acervo da Associação Brasileira de Imprensa.

Em 30 de setembro de 1968, no Estádio do Maracanãzinho, no Rio de Janeiro, Sabiá, interpretada por Cynara e Cybele, foi a música vencedora da fase nacional do III Festival Internacional da Canção Popular, organizado pela Secretaria de Turismo da Guanabara e pela TV Globo, e venceu também a fase internacional (Dados extraídos do livro Histórias de Cancões: Chico Buarque, de Wagner Homem. São Paulo: Leya, 2009. pp. 69/71).

CARTA - TOM - PAGINA 1

CARTA - TOM - PAGINA 2