ELA DESATINOU – DURA NA QUEDA

LOUCURA

“Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?”
Fernando Pessoa

(versos finais do poema “D. Sebastião,
Rei de Portugal”. Mensagem.
Rio de Janeiro: Edições de
Janeiro, 2014. p. 37)

Foram-se os foliões, na quarta-feira de cinzas a cidade lentamente retoma sua rotina, terminaram os dias de brincadeiras, as bandeiras penduradas nos postes e fios começam a se desmanchar. Fantasias rasgadas espalhadas no chão, feito alegria morta pelo carnaval findo, toda gente sofrendo com a volta ao dia a dia. Não interessa, em plena avenida vazia, lá está ela! Ainda sambando… é uma infeliz, dizem alguns, mas eu penso, não… é feliz em seu mundo acetinado, debochada que só ela.

Eu era muito jovem àquela época, mas conseguia elaborar na cabeça esses pensamentos, só não falava a ninguém, pois quem sabe zombariam de mim, dizendo que invento coisas inimagináveis. Mas foi exatamente o que me veio à mente… seu mundo de cetim… a dor… o pecado… o tempo perdido… algo enfim, sobre jogo acabado

Ela desatinou, ouvi alguém comentar ao meu lado, uma palavra talvez, pouco usual. É… eu era moço demais para dispensar o dicionário, contudo, não o bastante para ignorar a inveja daquele senhor de olhar grave ao constatar que tal mulher se entregara à loucura. Foi minha conclusão. Nunca a esqueci, nos carnavais após aquela cena eu ia à mesma avenida, na quarta-feira de cinzas, para rever o espetáculo radiante daquela que desatinou. Em vão. Aguardava ansioso seu desfile solitário, lindo e louco.

Carnaval de rua do Rio de Janeiro, nos anos 1960 (Foto de Evandro Teixeira)
Carnaval de rua do Rio de Janeiro, nos anos 1960 (Foto de Evandro Teixeira)

Cresci, amadureci, a velhice me aguarda na esquina; mas em todo carnaval, é dela que me recordo. Porém, o mais curioso dessa história, vem agora. Certo dia, ao atravessar a Avenida Brasil, era o ano de 2000, depois de 32 anos daquele desfile da jovem desvairada, vejo uma multidão formando um burburinho ao redor de alguém que agitava sem parar os braços erguidos. Enquanto eu ia me aproximando lentamente, meu coração acelerado vinha à boca cantando. Sim, era aquela que desatinou no final dos anos 1960 e até virou notícia nos jornais daquele tempo.

Na hora me veio aquela cena do seu mundo de cetim… o gingado, o jeito de sambar! Foi como a identifiquei, passados mais de 30 anos. Exalando a preservação de sua essência, ela triunfava em alegria espontânea sem se preocupar com ninguém, os olhares críticos lhe eram indiferentes, como se ela sentisse pena dos que, em sua normalidade, não se entregavam às coisas boas e simples da vida. Eram todos cadáveres adiados que procriavam, só isso, como alertou Fernando Pessoa quanto à desvantagem de não ser louco.

Desfilando como veio ao mundo, em plena agitação do trânsito, carros buzinando, não sei se por censura ou aborrecimento pelo tráfego lento, já que muitos paravam e até desciam dos veículos para saber o que ocorria, ela debochava dos que vaiavam sob a chuva que seu samba promovia, arremessando-lhes a água por ela pisoteada no chafariz.

Soltei uma gargalhada como nunca o fizera antes em momento algum de minha vida. Não dancei, mas meu sorriso era tão largo, se ela me visse, creio pensaria que em minha cabeça eu transformava as buzinas dos carros em verdadeiras orquestras.

A dor não presta. Essa frase me veio na hora, lembrei de um professor de biologia no colégio no dia em que ele nos revelou que as flores, na verdade, eram feridas abertas. A planta se valia daquele artifício para que os insetos e aves buscassem o pólen naqueles coloridos propositais, e assim cumprissem a sina de espalhar pelo mundo as sementes que fariam surgir novos seres. O professor certamente viu a cara de espanto de todos nós. Uma ferida… como assim? A flor, uma ferida aberta? Então ele lançou a frase que ficou retida na memória. Não explicou nada, deixou para que descobríssemos um dia a sabedoria daquela sentença: “a dor não presta; já a felicidade… ah, esta sim, é de presteza absoluta!” E nos deu as costas, para escrever no quadro da sala de aula o restante da matéria a ser lecionada naquele dia.

Sei que revisitando aquela contagiante alegria, gritei com os olhos: Viva a folia! Pois a gargalhada já era o suficiente para atrair o olhar recriminador dos curiosos que ali não percebiam a grandiosidade da loucura.

Avenida Rio Branco, decorada para o carnaval do Rio, nos anos 1970
Avenida Rio Branco, decorada para o carnaval do Rio, nos anos 1970

Não me aproximei, jamais quis saber seu nome, fiquei exultante só por constatar que até hoje ela segue seu destino, rega suas plantas e sabe muito bem: o resto são sombras de árvores alheias… como nos ensinou Ricardo Reis, que nem existe, mas é poeta fruto da bendita loucura de Fernando Pessoa.

Gosto de palavras, já disse antes. Mas nada falei quando dei as costas ao espetáculo daquela que provou ser dura na queda, não se entregando à normalidade medíocre da sociedade, permanecendo perdida na avenida a cantar seu enredo, desobediente à datação do carnaval. Só pensei, quase numa benção secreta dirigida a ela: o sol ensolarará a estrada dela, depois saí cantando pela avenida um la-ra-rá recortado daquela palavra.

Minha felicidade maior foi a de constatar que ela ainda samba e, melhor, não somente nas quartas-feiras de cinza; agora, todo dia para ela é carnaval. Um drible majestoso na rotina. Assim ela fez seu destino. Até me dei conta naquele instante de que a palavra “desatino” parece muito com “destino”, só uma letra de diferença… o “a”, talvez separando ou quem sabe unindo o prefixo “des”, que indica uma ação contrária, ao sufixo “tino”, cujo significado gira em torno da sensatez. Com esse gosto por trinchar e trilhar palavras, arrematei comigo: ela desatinou o próprio destino!

A vida é bela.

"O sol, a estrada amarela / E as ondas, as ondas, as ondas" (Praia do Fuituro, Fortaleza, Ceará, Brasil)
“O sol, a estrada amarela / E as ondas, as ondas, as ondas” (Praia do Futuro. Fortaleza. Ceará. Brasil. Foto por mim tirada, em aparelho celular, sem qualquer filtro)

OUÇA AQUI: “ELA DESATINOU” – GRAVAÇÃO DE 1995, NO DISCO UMA PALAVRA

Ela Desatinou

 Chico Buarque/1968

Ela desatinou
Viu chegar quarta-feira
Acabar brincadeira
Bandeiras se desmanchando
E ela inda está sambando

Ela desatinou
Viu morrer alegrias
Rasgar fantasias
Os dias sem sol raiando
E ela inda está sambando

Ela não vê que toda gente
Já está sofrendo normalmente
Toda cidade anda esquecida
Da falsa vida da avenida onde

Ela desatinou
Viu morrer alegrias
Rasgar fantasias
Os dias sem sol raiando
E ela inda está sambando

Quem não inveja a infeliz
Feliz no seu mundo de cetim
Assim debochando
Da dor, do pecado
Do tempo perdido
Do jogo acabado

CLIQUE PARA VER: GRAVAÇÃO EM ESTÚDIO DE “DURA NA QUEDA”, PARA O DISCO CARIOCA (2006)

Dura na Queda (Ela Desatinou nº 2)

 Chico Buarque/2000

Perdida
Na avenida
Canta seu enredo
Fora do carnaval
Perdeu a saia
Perdeu o emprego
Desfila natural
Esquinas
Mil buzinas
Imagina orquestras
Samba no chafariz
Viva a folia
A dor não presta
Felicidade sim
O sol ensolará a estrada dela
A lua alumiará o mar
A vida é bela
O sol, a estrada amarela
E as ondas, as ondas, as ondas

Bambeia
Cambaleia
É dura na queda
Custa a cair em si
Largou família
Bebeu veneno
E vai morrer de rir
Vagueia
Devaneia
Já apanhou à beça
Mas para quem sabe olhar
A flor também é
Ferida aberta
E não se vê chorar
O sol ensolará a estrada dela
A lua alumiará o mar
A vida é bela
O sol, a estrada amarela
E as ondas, as ondas, as ondas

Discos com as gravações de "Ela Desatinou" e "Dura na Queda"
Discos com as gravações de “Ela Desatinou” e “Dura na Queda”

EU LÍRICO

“(…) na palavra livre se contém toda a
possibilidade de o dizer e pensar.”
Fernando Pessoa

(Livro do Desassossego. Lisboa: Editora
Tinta da China, 2017. p. 397)

O pequeno conto “Loucura”, como puderam constatar durante a leitura, traz uma narrativa na primeira pessoa do singular, numa história construída a partir de duas músicas do Chico, distanciadas pelo tempo, porém atreladas na temática: aquela que mantém o espírito do carnaval mesmo após o fim da festa. Ela Desatinou é de 1968. Dura na Queda, de 2000; essa, aliás, recebeu um subtítulo: Ela Desatinou nº 2, o que evidencia a conexão musical entre as canções.

Muito a propósito, fiz questão de inserir várias expressões e versos das duas músicas no decorrer do conto – tais referências estão em itálico –, a fim de demonstrar que é possível fazer montagens de trechos de determinada obra literária e poética, embora pudesse também ter alterado os termos, evitando suas inserções de modo literal, preservando, porém, o sentido.

A liberdade na expressão da escrita é uma das coisas mais formidáveis que o ser humano já criou; a imaginação sendo capaz de construir mundos, fazer nascer verdadeiras pessoas, personas, as personagens. É um sistema de comunicação muito peculiar. Qualquer elemento comunicativo contém o emissor, o receptor e a mensagem. Basta imaginar a mais simplória das situações: em plena rua, alguém pergunta ao outro onde ele pode encontrar a parada de ônibus mais próxima. O emissor é o que fez a pergunta, o receptor é o outro que foi abordado na rua, e a mensagem é o questionamento, um pedido de ajuda.

Na literatura – e na arte em geral – esse fenômeno se mostra presente, mas, como disse, se torna muito peculiar a comunicação porque existem diversos elementos gerando situações variáveis. Nem sempre o escritor é o emissor, quem vos fala. Ali pode estar outra pessoa ou uma personagem, o que se costuma chamar de eu lírico. A mensagem se submete a várias possibilidades, uma vez que toda obra de arte está sujeita às interpretações, de acordo com o receptor. Esse modo de assimilar a comunicação sofre influência não só em relação à pessoa que recebe a mensagem, mas principalmente ao tempo e espaço em que a obra artística está inserida. Quando se fala em tempo e espaço, diz-se da cultura, dos valores, das circunstâncias em geral; de tudo enfim que se transforma de acordo com o período ou com a localização geográfica de um povo.

Vejam que interessante. Se pararmos para pensar, o conto “Loucura” não é uma história narrada por mim, muito menos pelo Chico – embora eu tenha me utilizado de duas músicas dele e até de versos dessas canções –, assim como Ela Desatinou e Dura na Queda não são histórias contadas pelo Chico, embora ele seja – como artista, ao compor e cantar ambas – o aparente emissor da mensagem.

O eu lírico de Ela Desatinou é alguém a observar aquela que vem da folia, em sua tentativa de perenizar o carnaval, e chega a perceber o incômodo das demais pessoas na avenida, que já retornaram à vida normal, pois é quarta-feira de cinzas, e, no entanto ela insiste em ser feliz, emergindo a inveja dos outros. Essa pode ser a mensagem. Falo dessa forma condicional, porque a música certamente está aberta a várias interpretações. Alguém há de concluir, por exemplo, que o eu lírico também está com inveja da desatinada, até pelos versos finais repetitivos: e ela ainda está sambando, ela ainda está sambando, sambando… Vai depender de cada um a maneira como entende que essas palavras são jogadas ao vento, se com alegria, entusiasmo, desconfiança ou até raiva.

Quando surge Dura na Queda, a história parece ser a mesma. Aquela própria personagem da música Ela Desatinou, quem sabe até no mesmo cenário e local, uma repetição da história, contada de outra maneira, com outras palavras musicadas. Chico inclusive fez questão de colocar o subtítulo na canção posterior: Ela Desatinou nº 2. Sim, mas também pode ser outra brincante, bem como outro eu lírico que observa a cena, e talvez por isso esteja a contar o que vê de maneira diferente.

Preferi, porém, colocar nas duas canções o mesmo eu lírico e mostrar sua experiência na linha do tempo. Claro que me utilizei do marco cronológico de cada uma, por isso faço referência no conto ao contexto histórico e cultural em que as duas músicas foram feitas: 1968 e 2000. E realizo uma conexão entre elas, como se Dura na Queda fosse o reencontro do eu lírico com aquela mulher que desatinou.

vinil e discos ELA DESATINOU e DURA NA QUEDA
Contracapas dos CDs e disco de vinil (LP) com as gravações de “Ela Desatinou” e “Dura na Queda”

Todavia, o eu lírico do conto “Loucura” pode não ser o mesmo eu lírico de Ela Desatinou, tampouco o eu lírico de Dura na Queda. Do mesmo modo como acredito que em nenhuma das duas canções o eu lírico venha a ser o Chico.

Mudam os emissores nessas expressões artísticas, assim como a mensagem das narrativas – do conto e da canção – não é a mesma, embora possa ser, se assim desejar o receptor. A este, por sua vez, cabe a liberdade de entender o conto “Loucura” na forma conjunta de dizer a história das músicas, ou representar nova perspectiva daqueles momentos, a partir da inspiração das canções.

O eu lírico é um extraordinário recurso de construção da arte, que faz com que a imaginação ganhe voos muito além das limitações pessoais de quem escreve ou compõe. Por isso é possível fazer, por exemplo, uma canção na qual o eu lírico seja uma mulher submissa, sem que ali se tenha a aceitação do machismo. Simplesmente é a história narrada naquela circunstância. Todos os grandes artistas fizeram e fazem isso, basta lembrar de Shakespeare e a quantidade de eus líricos por ele criados com os mais abjetos desvios de caráter.

Ao se incorporar naquela expressão artística, não é você quem canta, e sim o eu lírico. Creio que o desejo de quem cria, seja se afastar da mente e do corpo, até o eu lírico assumir vida própria. Certamente é o ponto alto da maturidade de quem produz arte. Um Chico Buarque que ainda não havia chegado aos 50 anos de idade manifestou isso na canção Tempo e Artista (1993): “Já vestindo a pele do artista / O tempo arrebata-lhe a garganta / O velho cantor subindo ao palco / Apenas abre a voz, e o tempo canta”.

Chico Buarque por Elifas Andreato (1984)
Chico Buarque por Elifas Andreato (1984)

E NÃO SE VÊ CHORAR

“De que planeta você veio, minha filha?”,
perguntou o renomado Ary Barroso,
apresentador do programa de rádio
Calouros em Desfile, em 1953, àquela
moça magrinha que usava um vestido
da mãe, todo ajustado com alfinetes.

“Do mesmo planeta que o senhor,
Seu Ary. Do planeta fome!”,
respondeu Elza Soares.

Em meus tempos de menino as novidades chegavam pelo rádio; era o canal exclusivo de surpresas, inclusive musicais. Geralmente no período da tarde o potente aparelho alardeava vozes e sons que iam se espalhando, se impondo de cima de um armário na cozinha até o quintal lá de casa, cenário das brincadeiras de infância após os estudos.

Se acaso você chegasse, no meu chateau e encontrasse aquela mulher, que você gostou. Eu nada entendi sobre o que era chateau e muito menos de quem se falava na música, mas a voz impactante da cantora, isso não esqueci. Era diferente de tudo que eu já escutara até então. Um timbre especial, a rouquidão no final dando voltas na música. Muito depois descobri que a canção era de Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins. E também mais adiante na vida pude saber da artista dona daquela voz única, Elza Soares.

Em 1962, quando Elza fora se apresentar no Chile como madrinha da seleção brasileira de futebol, conheceria Louis Armstrong, mas ela não sabia quem ele era. O incrível foi ele constatar que mais alguém no mundo cantava com a voz rouca, a marca registrada dele. Pediu para ser apresentado a ela e a encheu de doces palavras, chamando-a de daughter. Elza se enfureceu, não entendendo porque aquele músico queria chamá-la de “doutora”, até explicarem que ele falava filha, em inglês. Ela própria contava essa história às gargalhadas. Armstrong disse ali mesmo que Elza era sua filha musical e de alma. Cantaram juntos em seguida, para delírio de todos que tiveram a sorte de estar naquele local na inesquecível noite.

Dali surgiu a oportunidade de fazer carreira nos Estados Unidos com o aval de Armstrong, mas ela renunciou certamente em nome da liberdade que tanto prezava, inclusive a de permanecer com sua grande paixão, o jogador de futebol Mané Garrincha, que abriria mão da então família para ficar com Elza.

Elza e Mané Garrincha
Elza Soares e Mané Garrincha

Muitas são as histórias ao longo de sua vida, desde a desaforada e certeira resposta a Ary Barroso em sua primeira apresentação na Rádio Tupi, passando pelo inesperado encontro com Louis Armstrong, até sua moradia na Itália, já com Garrincha, onde estreitou a amizade com Chico e Marieta, casal que à época ali morava, também num exílio inevitável ante o temor da ditadura militar que endurecia seus pavorosos métodos a partir do final de 1968.

Elza foi reconhecida muito cedo em seu talento, viajou o mundo e fez fama, com seu estilo por demais surpreendente, ao ponto de a BBC de Londres a considerar, em 1999, como a cantora brasileira do milênio, junto a outras vozes internacionais, merecedoras desse título.

Ela sempre fazia questão de dizer o quanto amava o Chico, por sua generosidade, sobre a maneira como ela e Garrincha, já decididamente unidos, foram acolhidos na Itália no final dos anos 1960. Daí veio a amizade e futuras parcerias em gravações, feito na imperdível Façamos (Vamos Amar), versão de Carlos Rennó para a canção Let’s do it, Let’s Fall in Love (1928) de Cole Porter.

Do Coccix Ate O Pescoco

O disco Do Cóccix Até o Pescoço, de 2002, tem a primeira gravação de Dura na Queda; é a música inaugural desse álbum de Elza Soares.

Chico Buarque, no documentário “Elza & Mané – Amor em Linhas Tortas”, de Caroline Zilberman (Globoplay, episódio 4, 2022), conta de que modo a canção foi entregue a Elza.

“Ela apareceu lá em casa, com o produtor dela, o nosso querido Gonzaga, e pedindo uma música pro disco novo dela. E eu falei: não tenho música, acabei de gravar um disco [certamente se referia ao álbum As Cidades, de 1998, pois a música é de 2000]. Quando eu tava falando isso lá em casa, falei: é claro que eu tenho! Eu descobri que eu tinha feito, sem querer, sem pensar, eu tinha feito a música que tinha tudo a ver com ela. Não foi feito pra Elza. Mas foi… é… porque ela é dura na queda, já caiu muito! Metaforicamente, e literalmente, muitas vezes na vida”.

Chico no documentário "Elza & Mané - Amor em Linhas Tortas". da Globoplay
Chico no documentário “Elza & Mané – Amor em Linhas Tortas”, da Globoplay

Esse literalmente referido pelo Chico parece ter ligação com o episódio que se deu em 1999, quando Elza sofreu uma queda do palco de dois metros, o que lhe causou fraturas, logo após cantar a primeira música numa apresentação na casa de show Metropolitan, no Rio de Janeiro, escolhida na ocasião pela BBC de Londres para representar o Brasil no projeto The Millennium Concert.

A queda de fato foi alarmante, mas ela já se acostumara a outras, as metafóricas, como referidas pelo Chico. Sua qualidade de mulher, preta, envolvida com um ídolo do futebol, o Garrincha, casado à época, rendeu-lhe muitas tentativas de rasteiras sociais.

Mas ela nunca se viu chorar. Seguia agarrada ao seu talento e com imensa disposição para divulgar sua arte, pouco importa se a achassem perdida, a cantar seu enredo fora do carnaval. Dura na Queda, ressaltou Chico, não foi feito pra Elza, mas foi… Eis aí novamente a figura do eu lírico, eixo central ao redor do qual gravitam as interpretações. Essa música pode ser vislumbrada com Elza a contar sua própria história, cantando, pois ela personifica o eu lírico, ainda que o faça se referindo a alguém na terceira pessoa.

ELZA ATUAL

Com seus 91 anos de idade, Elza estava em plena atividade. Além de shows, participava ativamente das redes sociais, principalmente no instagram, com publicações constantes em defesa das mulheres, além de chamar a atenção para a discriminação de pessoas pretas, carentes e em condição social de abandono. Feminista autêntica, desde sempre, sabia o quanto ainda estamos longe de abolirmos os preconceitos relacionais e estruturais de gênero e etnia, dentre tantos outros.

Nestes tempos de julgamentos vis, rotulações fáceis e agressões gratuitas, era gratificante acompanhar aquela mulher dizendo tantas verdades e cantando as músicas à sua maneira. A cantora que já foi chamada por Louis Armstrong de minha filha de alma, seguia firme. Chegou a gravar um DVD dois dias antes de cerrar as cortinas definitivas do palco da vida, inclusive com emocionante releitura musical de O Meu Guri (1981), do Chico, acompanhada somente pelo piano de Fábio Leandro.

Dura na queda, Elza foi suave na ascensão derradeira. Consta que teria falado ao seu empresário, na tarde de 20 de janeiro de 2022: acho que estou indo…. e foi, de maneira tranquila. O que fica é o registro de sua arte, a poderosa e inigualável voz, as interpretações marcantes e, infelizmente, o planeta fome do qual ela veio, ainda faminto de humanidade.

chico beijando elza

ELZA SOARES INTERPRETA “DURA NA QUEDA”, É SÓ CLICAR

BEATRIZ

OLHA

Ela deu um salto de quinhentos e dez anos; ignorando quem acha ser impossível tal façanha, se rindo toda na cara de Cronos (Krónos), o deus do tempo, enquanto ele adverte sobre a submissão de todos os seres ao seu comando. Desaforada, sua resposta, invariavelmente, é a mesma: “Veja só, veja só, atravessei os ares da terra até chegar ao paraíso para mostrar ao poeta Dante tudo que se deveria mirar naquela dimensão, fui além de lugares imagináveis, ainda morei no sétimo céu. Como vou me quedar a esse seu tique-e-taque tão acanhado?”.

Beatriz, originalmente Beatrice, não desconfia que sequer exista de verdade, mas não adianta convencê-la; nem Cronos conseguiu mostrar para nós algo tão comum chamado tempo… Que ela não nos ouça, mas sim, Beatriz é uma ficção, criada ainda no século XIV por um poeta nascido em Florença no mais que distante ano de 1265, considerado o primeiro poeta da língua italiana: Dante Alighieri. Comentários e especulações, desde então, falam do amor infante de dois meninos que nem chegavam aos dez anos de idade, juraram amor eterno e não puderam concretizar a promessa por razões familiares. Esse elo os teria unido para sempre, em vida, além dela e em poesia. Pinturas foram traçadas a mostrar aquela Beatrice Portinari, menina, e o outro menino, o Dante, e até ele próprio, quando não mais criança, escreveu o poema Vita Nova narrando seu amor e sofrimento por ela.

Beata Beatriz, de Gabriel Rossetti (1864)
Beata Beatriz, de Gabriel Rossetti (1864)

Mas estamos a falar de outro poema e de outra Beatriz, mesmo sendo poeta o mesmo Dante, pois ainda que inspirada na Portinari, ao assumir a forma do poema majestoso por ele construído, nasceu ali uma Beatriz além do tempo e do espaço, viajante por toda a eternidade, ousada ao ponto de não se submeter ao Cronos.

Além do primeiro, Dante é considerado o maior dos poetas italianos, por causa de seus versos escritos em sua própria língua, um italiano vulgar fruto do dialeto toscano, quando na época o comum era escrever em latim, em razão disso sua Comedia alcançou popularidade e a fama que até hoje nos influencia. A própria igreja católica considera que as imagens do inferno, do purgatório e do paraíso, a funcionar como arquétipos de cenários no inconsciente coletivo de boa parte do mundo ocidental, sejam imagens criadas por Dante.

primeira pagina comedia dante

Embora escrita entre 1304 e 1321, a Comedia só foi publicada em 1472. Por isso Beatriz teve que saltar daquele ano até o de 1982, para encontrar outro poeta, dessa vez um brasileiro. Dizem que ela povoou os sonhos desse artista até ele a resgatar oniricamente, pois o compositor insistia em fazer para Agnes uma letra de canção de outro artista e seu parceiro, mas o destino apontava que deveria ser mesmo Beatriz. A culpa desse embaralhamento é de outro poeta, também brasileiro, das Alagoas, que viveu em tempo diferente daquele outro artista carioca, pois nasceu meio século antes do poeta da atualidade e pôs-se a criar um Grande Circo Místico, falando da dinastia da família Knieps, cuja matriarca foi Agnes, a equilibrista.

O porquê da escolha desse nome permanece tão incógnito quanto despretensioso, afinal, onde estaria Agnes, se não na Comedia de Dante como Beatriz? O poema do Circo tem sutil ligação com Dante, percebe-se isso na leitura dos versos finais quando as gêmeas Marie e Helene, trinetas de Agnes, atiram suas almas para a visão de Deus. Essa imagem consta na Comedia no Canto XXVIII do Paraíso, no qual, como explica o tradutor Italo Eugenio Mauro, da edição brasileira da Editora 34, “volta-se Dante, da contemplação dos olhos de Beatriz nos quais via espelhada a visão de Deus…”.

Beatriz. Ilustração de Naum Alves de Souza, para o disco O Grande Circo Místico
Beatriz. Ilustração de Naum Alves de Souza, para o disco O Grande Circo Místico

Espero ninguém fique em tonturas com tanto vai e vem no tempo, muitos nomes e histórias. Seguindo a ordem cronológica, creio que possamos entender. Ele sempre vence – só não derrota a teimosia de Beatriz, então sigamos na lógica de Cronos…

Dante escreveu a Comedia no século XIV e a publicou no século XV, sendo que a obra passou a ser conhecida por Divina Comedia a partir da renomeação dada pelo crítico Giovanni Boccaccio. Ali se tem uma história contada em versos sobre a viagem do próprio Dante percorrendo o inferno, o purgatório e o paraíso, juntamente com vários personagens que de fato existiram, como o poeta romano clássico Virgílio; esse viveu entre os anos 70 a.C a 19 a.C, tendo nascido perto de Mântua ou Mantova, região da Lombardia, na Itália. E como guia de uma dessas viagens, a de Dante ao paraíso, lá estava Beatriz.

Beatriz é o olhar, sua marca mais relevante. O escritor romeno Horia-Roman Patapievici escreveu um livro, cuja tradução em espanhol é “Los ojos de Beatriz”, que ressalta Virgílio definindo Beatriz no poema de Dante como aquela que simboliza a luz da verdade e da inteligência, daí que só se poderia ver o paraíso pelos olhos dela, pois “nos olhos de Beatriz, como num espelho, Dante vê pela primeira vez uma realidade que não pode vislumbrar completamente com seus próprios olhos”, concretizando assim o pensamento do filósofo Platão, que dizia só ser possível ao homem encontrar a verdade invertendo suas faculdades espirituais, realizando um giro ou inversão mental. É o que ocorre ao se olhar o paraíso pelos olhos de Beatriz.

Por isso, muito tempo depois, certa canção assim começa: “Olha…”.

partitura beatriz

Continuemos, porém, na linha do tempo, para não insultarmos o zangado Cronos.

A Divina Comedia de Dante atravessa os séculos. Beatriz se consagra como uma grande personagem da literatura mundial. Eis que se chega ao século XX, e Jorge de Lima, poeta alagoano, publica em 1938 o poema “O Grande Circo Místico”, sobre a dinastia Knieps, fundada por Agnes, equilibrista de um circo, ao se casar com o filho do médico da imperatriz da Áustria, por isso a história dessa dinastia começa no século XVIII e se estende até depois da Segunda Guerra Mundial do século XX. Agnes, já sabemos, é Beatriz. E a viagem dela através do tempo continuaria quase cinquenta anos depois de sua passagem poética pelo Circo dos Knieps.

Em 1982 é lançado o álbum musical “O Grande Circo Místico”, de Edu Lobo e Chico Buarque, feito a partir da dança do Ballet Guaíra de Curitiba, inspirada no poema de Jorge de Lima, sendo que Naum Alves de Souza escreveu posteriormente a peça teatral. E nesse disco, após a abertura convidando a todos para o grande espetáculo do Circo, eis que surge Beatriz, trazida ao mundo moderno em forma de canto, na melodia envolvente de Edu Lobo, no poema musical arrebatador de Chico Buarque, e na voz indescritível de Milton Nascimento.

Ballet Guaira, com Edu e Chico (1982)
Ballet Guaira, com Edu e Chico (1982)

Beatriz esteve numa das maiores obras da literatura mundial, a de Dante. Beatriz, disfarçada de Agnes, atuou como personagem principal no poema O Grande Circo Místico de Jorge de Lima. Ela vem desses tempos distantes povoando a imaginação de tantos que se deparam até hoje com essas obras. Mas seu destino era mesmo dar esse salto de quinhentos e dez anos chegando a 1982, no desejo de assumir nova forma; afinal, ela virou música. Melhor ainda, virou musa, a influenciar tantos compositores a partir dos anos 1980 no encantamento mágico de um som que ganhou asas ao ser entoado por um anjo.

Beatriz carrega em suas entranhas nada menos do que a luminosidade de Dante, Jorge de Lima, Edu Lobo, Chico Buarque e Milton Nascimento. Não é pouca luz. Mas nem por isso ofusca nosso olhar. Ao contrário, seguimos com a musa em busca de sermos levados por ela para sempre em seu mundo de cenários, danças e aplausos. Devidamente oculto, mas partilhando dessa mesma busca, segue conosco seu deus devoto: Cronos! Ele nunca dirá a ninguém, para não perder sua majestade, mas não só admira, na verdade ama Beatriz. Ela surgiu do nada, nem ele foi capaz de perceber sua chegada a este mundo. Entrou no poema de Dante, deu um passeio escondida na ideia de Jorge de Lima, dedilhou no piano de Edu Lobo, surgiu em sonho se anunciando a Chico Buarque e, não satisfeita, soprou no ouvido de Milton Nascimento. Ela percorre o tempo, ninguém sabe quando nem onde, mas resurgirá enfim. É preciso estar atento. É como se ela dissesse a cada instante: olha!

Beatriz, interpretada por Bruna Linzmeyer, no filme O Grande Circo Místico (2018), de Cacá Diegues) Leia mais em: https://veja.abril.com.br/cultura/homenagem-caca-diegues-tera-filme-em-sessao-especial-de-cannes/
Beatriz, interpretada por Bruna Linzmeyer, no filme O Grande Circo Místico (2018), de Cacá Diegues

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Será que ela é moça? Será que ela é triste? Indagações feitas por quem, da plateia, vislumbra a atriz em seu mundo real: o palco. Para o espectador, o tablado visto naquele instante de apresentação, é a realidade; enquanto a vida da atriz, uma incógnita.

Quando alguém diz ou pensa “Olha!”, parece querer que todos ao seu redor reparem e também imaginem se aquela que dança é afinal, uma pintura feita por um artista inspirado na beleza, ou se é real.

A música Beatriz parte dessa ambiência, o eu lírico é o admirador. A atriz, a admirada. Mas porquê não se tem ponto de exclamação no primeiro verso e os de interrogação nos demais? Deveria assim ser pontuada a cantiga. Chico, de maneira espantosa, não coloca qualquer sinal de pontuação no final de cada um dos 35 versos. Isso me leva a crer que o platônico espectador não está a cantar ou nem mesmo a falar, mas a pensar! Sim, pois no reino dos pensamentos não há pontuações, esses sinais só surgem quando as frases pensadas são vertidas em texto escrito.

Então a paixão eclode dessa fórmula interrogativa – sem o símbolo correspondente – e pensamentos repetitivos de especulações, curiosidades a se transformar em desejo… “Sim, me leva para sempre Beatriz”…

BEATRIZ - ENCARTE DO DISCO

As referências à Beatriz de Dante são evidentes ao longo da letra. O sétimo céu retratado na Divina Comédia, o arcanjo, a possibilidade de Beatriz carregar Dante ao paraíso, ascendendo aos planos altíssimos (Me ensina a não andar com os pés no chão), a própria brincadeira de mostrar o título do poema, de modo inverso, em sequência versada: Será que é COMÉDIA / Será que é DIVINA.

Quando Chico começou a vestir com as palavras as músicas de Edu Lobo para o musical “O Grande Circo Místico”, a partir do poema de Jorge de Lima, ele próprio falou da dificuldade de versar a história de Agnes, a que deu início à dinastia dos Knieps, porque Agnes não se encaixava em versos, até ele concluir que outro nome poderia ser dado à personagem, não havia essa obrigatoriedade de repetir o mesmo nome. Tudo indica que Chico tenha percebido na história poética de Jorge de Lima uma pitada de influência de Dante, por conta dos versos finais, das gêmeas Marie e Helene, trinetas de Agnes, atirando suas almas para a visão de Deus. Talvez daí tenha surgido a ideia de Beatriz substituir Agnes. Claro que não se pode descartar também que o nome se mostrou ideal por sua grafia, beATRIZ, a indicar o ofício da personagem. E não é que Agnes estaria escondida, aninhada em um dos versos da canção? “Diz se é perigoso a gente ser feliz” – diz se é perigoso A GeNtE Ser feliz… coisas do Chico.

Essa letra contém tanta simbologia e alegoria! Debulhemos verso a verso a fim de alcançar toda a beleza do apaixonado  a idealizar o caminho tangenciando seu sonho: a companhia de Beatriz. Dentro da liberdade literária deste texto, depois de embrenhar na letra da música, permito-me exprimir o que observo transpondo inserções junto ao poema original, tudo em itálico para a compreensão da narrativa.

vinil e encarte O GRANDE CIRCO MÍSTICO

Imagine o palco do circo, só uma luz vinda de cima, límpida e direta, sobressaltada naquele breu. Na plateia, também escura, com o olhar fixo naquele ser iluminado, lá está ele quieto e pensativo…

Olha! Será que ela é moça? Será que ela é triste? Será que é feliz? E seu rosto, tão lindo, será real ou pintura feita por um deus da arte? Será que ela é tão divina que dançaria até no céu? Será que ela acredita de verdade que é um mundo diferente dos outros? Ou será que ela só interpreta, decorando seu papel da apresentação? Ah… se eu pudesse entrar na sua vida!

Como ela é de verdade? Será de carne e osso como todos nós ou de uma louça fina, intocável? Um ser etéreo, feito só de sonhos? Ela é normal como nós, ou tem a bendita loucura da artista que sonha além das estrelas? E a casa dela, é de verdade, ou mero cenário como o desse palco?

Talvez ela queira morar tão perto do céu, que seja num prédio alto, um arranha-céu… será? As paredes de lá, são de verdade, ou feitas de um desenho de giz? Quem sabe ela fique muito mais num quarto de hotel, e lá chore porque se sente só… será? Ah… se eu pudesse entrar na sua vida!

Me leva, Beatriz, me tira daqui deste mundo, deste tempo, me leva para sempre! Me ensina a voar! O instante é agora, não quero saber se será para sempre, já que a eternidade está por um triz! Você vê o futuro, Beatriz? Sua magia também é a de ler os destinos nas mãos de quem as estende a você? Lê minha mão! Diz se teremos futuro, ou é perigoso pensar em felicidade estando contigo…

Olha! Será que ela é uma estrela? Ela existe ou é de mentira? Sua vida é feita de risos, uma comédia, ou ela vive feito uma deusa? Mas se ela é divina, que seja sempre, eu não queria que ela deixasse de ser essa estrela lá no alto, e a decadência que às vezes alcança os artistas chegasse em sua vida, porque se ela despencar do auge do seu sucesso, pode ser triste demais, e o sádico público pode até querer ver isso novamente: bis! bis! Apresentando-se numa calçada, artista de rua, sempre terá um alguém que a protege, passando o chapéu para recolher moedas dos espectadores… seria tão triste! Eu jamais permitiria que isso acontecesse… se eu pudesse entrar na sua vida…

Nova montagem teatral de O Grande Circo Místico (2014). Produção: Maria Siman e Isabel Lobo. Roteiro: Newton Moreno e Alessandro Toller. A atriz Letícia Colin interpreta Beatriz.
Nova montagem teatral de O Grande Circo Místico (2014). Produção: Maria Siman e Isabel Lobo. Roteiro: Newton Moreno e Alessandro Toller. A atriz Letícia Colin interpreta Beatriz.

Convido a todos para que façam também suas leituras. A arte renasce na interpretação do olhar de cada um, a música se retroalimenta cada vez que a ouvimos com atenção, pensamos na história, fazemos o cenário em nossa mente… o trecho despencar do céu e os pagantes exigirem bis, por exemplo, pode ser interpretado numa triste imagem da atriz que morre em cena e os espectadores, exaltados com algo tão real, querem novamente contemplar tal cena. As atrizes e os atores sempre falam que no teatro é possível um dia morrer em plena atuação, isso gera um medo e ao mesmo tempo a emoção da singularidade daquele momento único.

Beatriz, a do Chico, é uma das personagens mais fascinantes de seu mundo, mesmo sendo apresentada por quem a vê e se apaixona. Conhecemos Beatriz pelo olhar do outro. Então, como seria de fato a atriz? Convém não esquecer que existe outro olhar além do eu lírico que entoa a música. O olhar do Chico, que a criou; portanto, ele bem sabe quem é Beatriz. Restam-nos os pontos de interrogação, mesmo não aparecendo nos versos da canção.

Esboço datilografado da canção "Beatriz", para o espetáculo O Grande Circo Mísitico, do Balé Teatro Guaíra (1982).
Esboço datilografado da canção “Beatriz”, para o espetáculo O Grande Circo Mísitico, do Balé Teatro Guaíra (1982)

Beatriz

Edu Lobo/Chico Buarque/1982

Olha
Será que ela é moça
Será que ela é triste
Será que é o contrário
Será que é pintura
O rosto da atriz
Se ela dança no sétimo céu
Se ela acredita que é outro país
E se ela só decora o seu papel
E se eu pudesse entrar na sua vida

Olha
Será que é de louça
Será que é de éter
Será que é loucura
Será que é cenário
A casa da atriz
Se ela mora num arranha-céu
E se as paredes são feitas de giz
E se ela chora num quarto de hotel
E se eu pudesse entrar na sua vida

Sim, me leva pra sempre, Beatriz
Me ensina a não andar com os pés no chão
Para sempre é sempre por um triz
Ai, diz quantos desastres tem na minha mão
Diz se é perigoso a gente ser feliz

Olha
Será que é uma estrela
Será que é mentira
Será que é comédia
Será que é divina
A vida da atriz
Se ela um dia despencar do céu
E se os pagantes exigirem bis
E se o arcanjo passar o chapéu
E se eu pudesse entrar na sua vida

GRAVAÇÃO ORIGINAL EM ESTÚDIO DE BEATRIZ – CLIQUE AQUI

DO CHÃO AO CÉU

Somos conduzidos ao mundo de Beatriz tão logo o piano de Cristóvão Bastos começa a gerar notas musicais como se fossem discretas pisadas do espectador, entrando na escura plateia do teatro, sentando-se e dirigindo sua atenção à artista no centro do palco, também escuro, só uma luz direta que cai por sobre a atriz como se fosse um recado dos céus. Daí emana a voz de Milton Nascimento e tudo se ilumina.

Beatriz foi gravada no estúdio da Som Livre em 1983, ao que se sabe ficaram na sala de gravação somente Milton e Cristóvão; ele, ao piano, deu o tom da condução musical, numa introdução marcante e que ficou tão conhecida quanto a interpretação daquele a quem Elis Regina disse certa vez que cantava pela boca de um anjo. A orquestra de cordas teria sido acrescentada depois, com arranjos e sob a regência do maestro Chiquinho de Moraes. Nos violinos, Giancarlo Pareschi, Aizik Geller, Alfredo Vidal, Carlos Hack, Francisco Perrota, João Daltro de Almeida, Jorge Faini, José Alves, Luiz Carlos Marques, Marcelo Pompeu, Michel Bessler, Walter Hack, Paschoal Perrota e André Chales Guetta.

Lamenta-se o não registro em vídeo dessa gravação, afinal, quem não gostaria de ver Milton entoando-a pela primeira vez naquele estúdio somente com dois artistas, cada um exuberante em sua arte? As mãos de Cristóvão fazendo levitar as notas, e a voz de Milton elevando o canto ao sétimo céu no qual Beatriz poderia morar. Imagina-se o semblante de todos que se encontravam fora do estúdio, acompanhando aquele momento. A canção já era pronta e acabada, de Edu com a música e Chico vestindo-a com a palavra. Mas ali certamente se percebeu – e são raros esses momentos – um intérprete moldando de tal maneira a cantiga que acabaria sendo uma espécie de terceiro parceiro da música.

Milton nascimento cantando Beatriz

Beatriz é minha, teria dito Milton após a gravação; é o que registram Zuza Homem de Mello e Jairo Severiano no livro A canção no Tempo: 85 anos de Música Brasileira. A frase mostra exatamente essa percepção do canto como um desdobramento da criação musical. Entendemos o que Bituca quis dizer, exteriorizando sua sublime percepção de que seu canto contribuiu para a firmação de Beatriz como uma das mais belas músicas brasileiras.

Quando Milton eleva a voz docemente no verso Se ela dança no sétimo céu, compreendemos que ele ali também inseria de alguma forma a sua assinatura na obra musical. O mais interessante, como nos mostra Wagner Homem de Mello no indispensável livro Histórias de Canções: Chico Buarque, é que, “[a]nos depois, Edu se surpreendeu ao perceber que a palavra ‘chão’ correspondia à nota mais grave e ‘céu’ à mais aguda”.

O piano estava no chão e dali, naquele estúdio, Cristóvão Bastos, Milton Nascimento, os demais músicos, conduziram a canção de Edu e Chico ao céu. A faixa número 2 do Disco “O Grande Circo Místico”, um dos mais prestigiados álbuns musicais da história da música de nosso país, nos faz ouvir constantemente a história daquele que só queria saber como seria de fato Beatriz fora do palco. E desse modo chegamos até a acreditar que Beatriz existiu. Assim como Beatriz de Dante, Agnes de Jorge de Lima, Beatriz de Chico… e quem disse que nós somos reais e as personagens criadas pelos artistas são ficção? Fernando Pessoa nos alertou certa vez: talvez nós mesmos sejamos um sonho que alguém em outro mundo esteja tendo… ou mesmo um perfil casual de uma história que um deus está relendo. Desta forma, pode ser que nossa matéria seja a mesma de Beatriz. E não é isso que torna o mundo fascinante?

“Eu não sei o que sou.
Não sei se sou o sonho
Que alguém do outro mundo esteja tendo…
Creio talvez que estou
Sendo um perfil casual de rei tristonho
Numa história que um deus está relendo…”

(Segunda estrofe do poema de 19/10/1913,
cujos versos iniciais são:
Sou o fantasma de um rei,
de Fernando Pessoa)

foto edu e chico segunrando foto balet guaira

SEM VOCÊ Nº 2

Chico Buarque – Sem Você nº 2 – (Clipe Oficial)

COM VOCÊ

Vou te contar, viu!? Resolvi dar uma espiadinha na tua tristeza, que me chegou aos ouvidos em forma de música… essa daí: Sem Você 2. Pensei na minha em parceria com o poetinha. Sem Você, sem número. Aí me dei conta, arteiro você nunca deixará de ser… Se fosse de fato “sem você”, não teria número, pois 2 já é um par! Bem que o Frei Betto disse que Chico está nos detalhes.

Quanto ao fim do show, já falamos disso. O amor é a coisa mais triste quando se desfaz. A tristeza, nesse caso, é universal. Eu joguei no inglês assim, “love is the saddest thing when it goes away”, você lembra, o Frank cantou numa melancolia tal que chega a dar um nó na garganta da gente.

Pois não é que senti daqui esse mesmo nó ao lhe ouvir entoando “Sem você dei pra falar a sós? O que eu te diria agora? Não tenho respostas, mas queria que estivéssemos juntos como sempre, por aí, é claro, com nosso ilustre par de amigos; um já comigo, Vininha; outro ainda contigo, Toquinho. Aliás, os dois um dia deram pra rebatizar um rebento teu, lembra? “Cotidiano nº 2 (Como dizia o Chico…)”. Lá eles falaram que só se defende da maestria soberana do cotidiano, agarrando-se com o escudo mais apropriado e eficaz: o violão. Se era apenas ele a vencer o fardo do dia-a-dia, nos braços de quem quer que fosse, pois então, imagino o violão nos teus… Eu quero ouvir daqui de cima! Já manda subir o piano pra eu acompanhar, aquele que ficava na garagem lá de casa. Dizem que o som sobe, tal a fumaça que sobra, falta é charuto e cachaça. Aqui não tem nem água de beber, camará!

Mas ela é mesmo assim como diz, seja a moça, a inspiração ou a música. Fica sempre por perto exalando toda a graça, mas nos perdemos em encontrá-las. Comigo não era diferente. Show tem todo dia no céu, ergue a tua cabeça e vem ver enquanto está na plateia, por onde você deve  ficar por muito tempo. Tem arte de montão pra fazer, sorte e paixão pra viver, eu sei.

Sabia que hoje fiz uma nuvem chorona passar por cima de Ipanema? Esse negócio de só chover na roseira, temos que mudar, o divertido é ter praia e chuva, só pra ver as pessoas correndo – eu nunca entendi, se ficam se molhando no mar, porque não se deixam molhar pela água do céu? Falar em sabia, lembrei da Sabiá. Quando se deparar com passarim piador, só assovia comigo, mais nada, feito o vento no ar e a onda no mar. Tem muita natureza na minha música, mas tem ainda mais música minha na natureza.

Agora de longe é que a gente vê que tudo que está acima do chão está no céu. Tão óbvio, não é? Mas eu não sabia. Então, olha só, tuas músicas ficam flutuando aqui, eu adoro, mergulho nelas e me vejo igual a criança em pula-pula piruetando nas melodias. Então, para com isso de “Sem Você”, e número 2 você bem sabe que são os meus Montecristos, nem me lembre deles, saudades sem fim das baforadas. Eu ando sempre ao seu lado, feito anjo da guarda ou assombração, pode escolher. Com você meu número é cena e senha.

Vou terminando. Daqui é que se vê que por aí inventaram tanto tempo e espaço, que nem indo na velocidade da luz se expande feito ela a tal ponto. O mar venceu o futebol e o museu; comigo isso também não seria diferente. Mas quando puder me fala dos centroavantes rasgando o chão, costurando a linha e estufando o filó em nosso Flu. De quebra, diz quem anda errando o toque e o tique-taque, perdendo o pique, o breque e o lance lá pelas bandas do Fla. Você pensa que eu não vi? Pois ouvi “feliz como um pinto no lixo”! E se der, passa no Jardim Botânico, me diz o que falam de mim nesse museu.

E sabe a melhor? Acredite, Chico my love, que quase ouvi você dizer em canto “é um silêncio, Tom”… depois vi que era tal e não Tom! Mas que gostei, gostei.

ACORDO E ME DOU CONTA DESSE SOPRADO EM MEU OUVIDO. CORRO A ABRIR A JANELA E OLHO PARA O CÉU, BUSCANDO EM VÃO ALGUMA NUVEM EM FORMA DE PIANO. NÃO HÁ. MAS JURO QUE VI UM MACUCO – ESSA AVE SOLITÁRIA E TÍMIDA – EM SEU CANTO PIADO, REPETINDO TRÊS VEZES: “MAS NÃO TEM NADA NÃO”…

Brasil, São Paulo, SP, 26/01/1990. Os músicos Tom Jobim (e) e Chico Buarque durante show wm São Paulo. Pasta: 32.529 Foto: Ana Carolina Fernandes
Brasil, São Paulo, 26/1/1990. Foto: Ana Carolina Fernandes

 

Sem Você nº 2

Chico Buarque/2011

Sem você
É o fim do show
Tudo está claro, é tudo tão real
As suas músicas você levou
Mas não faz mal

Sem você
Dei pra falar a sós
Se me pergunto onde ela está, com quem
Respondo trêmulo, levanto a voz
Mas tudo bem

Pois sem você
O tempo é todo meu
Posso até ver o futebol
Ir ao museu, ou não
Passo o domingo olhando o mar
Ondas que vêm
Ondas que vão

Sem você
É um silêncio tal
Que ouço uma nuvem
A vagar no céu
Ou uma lágrima cair no chão
Mas não tem nada, não

sem voce 2 partitura

 

PARTIDO ALTO

parti do ALTO

“Rir é um ato de resistência”
Paulo Gustavo
(ator, diretor e humorista)

A graça de Deus se manifesta por meios diversos e inesperados, isso todos sabemos, tantas as lições nos ensinaram ao longo do tempo – ainda mais depois que se firmou a ideia de que Deus no Velho Testamento era sério demais, até rancoroso; mas chegando ao Novo Testamento Ele é só amor –, daí que o humor, no sentido mais autêntico da palavra, vindo do latim humore, a significar ânimo e disposição, adorna também esse sentido da graça.

Dessa forma, o que não tiver a menor graça e nem for de graça, não é a graça de Deus. Há um lugar no qual se convive na graça da malandragem com a desgraça da desmerecida miséria, a alegria samba até quando chora, onde o calor é humano e o frio não é calculista. Estou falando do morro, ali se mora mais perto das estrelas, e quem sabe também mais perto de Deus. Não sei se é apenas impressão minha, mas sinto que por lá os olhares são sinceros, os beijos são prósperos, os abraços apertados, os sorrisos mais largos e as risadas são mais altas. Nos anos 1940, Herivelto Martins em sua canção Ave Maria do Morro nos ensinava que “quem mora lá no morro, já vive pertinho do céu”.

Favela - Di Cavalcanti - 1958
Favela – Di Cavalcanti – 1958

É sobre a capacidade que se tem desde criança em olhar as dificuldades e contratempos com aquele bom humor tão próprio do brasileiro. Vendo esse cenário, de onde surge a lua e também os sambistas, fico a pensar se aquela gente, quando se revela para o mundo, ao invés do tradicional choro pós-parto, tratou logo foi de cantar como manifestação da graça divina. Vem de lá o artista que já anuncia sua chegada, sabedor da lição dos antigos que ali viveram por séculos: Deus há de prover em todas as dificuldades. Isso não precisava ser transmitido assim de modo elaborado, o que todo sambista parece já nascer sabendo, vem da cantilena de uma fé maciça em suas mães e avós, entoando seus conselhos: meu filho, Deus dará tudo que se precisa. Sempre deu, sempre dá.

Essa religiosidade está presente na música, mas não exclusivamente no samba do morro. Seja de maneira direta e primária, seja subentendido de forma metafórica ou abstrata, toda fé culmina por amparar a arte ou em dispará-la. A meu ver, isso se dá em função dos elementos pertencentes exclusivamente à esfera humana. Dentre tantas manifestações artísticas oriundas ou destinatárias da fé, na música fica evidente quão próximo o homem consegue chegar à natureza, e talvez por isso ele chegue quase sempre feliz a esse lugar. Para além do campo das descobertas de tudo aquilo que é totalmente independente de nós, por envolver nichos científicos, está o campo das criações, onde nos vemos identificados, uns mais outros menos, mas que estão totalmente atrelados à nossa existência. Assim, não há nada mais natural à essência humana que a congruência entre a arte e a fé. E quando essa junção se manifesta em elementos musicais, acaba sendo responsável pela comunicação entre o homem e própria natureza. A exemplo disso, assim como o samba, o maracatu é uma confluência de religiosidade e folclore com manifestação na música que se canta e dança.

Maracatu - Pernambuco
Maracatu – Pernambuco

O maracatu teve origem no estado de Pernambuco e é o ritmo musical afro-brasileiro mais antigo que se tem notícia, sendo tratado também como uma dança e ritual de sincretismo religioso. Já o tipo de samba chamado de partido alto, surgiu no início do século XX no Rio de Janeiro, tendo acontecido num processo de renovação do samba urbano, com suas raízes nas umbigadas africanas.

O partido alto é o feitio do samba que mais dialoga com o surgimento do batuque angolano, tanto do Congo quanto das demais regiões adjacentes. Esse termo “batuque”, por sua vez, diz de uma qualificação geral de algumas das danças afro-brasileiras seguidas da percussão e, em alguns casos, também do canto. Curiosamente, o Maracatu Nação, também conhecido como Maracatu de Baque Virado, é o primeiro exemplo do chamado “batuque”. Fica dessa forma esboçado um possível caminho trilhado, ainda que espontaneamente, pela canção Partido Alto, de Chico Buarque: do maracatu em show ao vivo com Caetano Veloso, em 1972, até o ritmo que leva seu nome, nos demais shows e gravações.

Contracapa do disco do show na Bahia em 1972, de Chico e Caetano - Partido Alto é uma das músicas
Contracapa do disco do show na Bahia em 1972, de Chico e Caetano – Partido Alto é uma das músicas

Fato é que, perdidos por entre maracatus, sambas e afins, encontramos imensos artistas brasileiros, tantos, porém, que estiveram, estão e sempre estarão trabalhando em prol da valorização da história e que nunca conheceremos, em virtude da desproporção entre a produção e o incentivo a cultura em nosso país. Todos eles com tamanha coragem de um dia ser uma notícia boa, cuja legenda estampe um trecho do seu samba ou quem sabe até um gol, mas nunca com os olhos vendados ou identificados pelas iniciais de seus nomes sem sobrenomes. Cada um com seu, aparentemente pequenino, mas grandioso sonho, de orgulhar a própria mãe.

Bem, quando idealizei este blog, realizei meu sonho do texto dentro do sonho de um contexto, tal Lewis Carroll com Alice. Foi o caminho reverso do comumente aplicado no fenômeno das frases sem texto (Dominique Maingueneau), no qual se destaca uma linha de sua entrelinha, atribuindo-lhe nova aplicabilidade, o que algumas vezes, pode privar-lhe de sua profundidade. Assim, quando me venho por aqui, gosto de vagar divagando, devagar e sempre…

E foi desta mesma forma, que voltei ao ano de 1987, num fim de tarde introspectivo, depois de um dia e semana exaustivos, mas gratificantes, de muito trabalho. Recostei-me no sofá e ao ligar o televisor, estavam reprisando Quando o Carnaval Chegar, em comemoração aos 15 anos do lançamento do filme de Cacá Diegues no cinema. Quando, ao som de Partido Alto, surgiu na tela Antonio Pitanga, interpretando Cuíca, personagem batizado com meu instrumento favorito do samba, eu me arrepiei dos pés a cabeça. Antonio entregava talento imenso e um sorriso generoso àquela personagem, falando de arte, de um povo maravilhoso e de seu país igualmente belo. Quando a reprise acabou, passei um tempo ali quieto, me sorrindo por dentro, a dedilhar feliz o, recém chegado ao Brasil, controle remoto.

cartaz quando o carnaval chegar

Eram poucas as opções, pois na minha cidade, naquele ano, só havia sinal de TV aberta, e no resto do país as antenas parabólicas e a TV a cabo eram caríssimas, tendo sido a TV por assinatura regulamentada só no ano seguinte. Mas eu estava com sorte! Começava noutra emissora a transmissão inédita do “Especial Antonio Brasileiro”, celebrando os sessenta anos de Tom Jobim. Aquilo foi de uma beleza sonora e visual, qual nenhum sentido exprimiria. Findado aquele espetáculo eu, já emocionado, enfronhei também no letreiro: “Ao Tom com todo amor da equipe toda”, logo abaixo “Antonio Carlos Jobim – Saudades do Brasil – A. C. Jobim”… A continuidade da leitura me foi impedida pelo pranto.

Fechei meus olhos, ficando a apreciar as vozes junto ao piano do maestro soberano: “Deixa o índio vivo, deixa o índio, deixa… é fruta do mato, deixa, escuta o mato crescendo em paz, é fruta do mato, escuta o mato crescendo, escuta o mato, escuta…”; foram as últimas coisas que ouvi antes de pegar num sono profundo feito o de uma criança.

“Escuta!”, alguém me interpelou. Aquilo não era possível: Antonio sem o sabor de Pitanga nem o calor do Brasileiro, um santo! Imagine só?! Sim, era Santo António gozando seu dom da ubiquidade – enquanto roncava no céu, dançava frevo ali, cantava funk acolá, e me dizia por aqui, que eu não cantasse vitória, já que todo sonho era um prato farto e saboroso, sutilmente temperado de escassa realidade.

Aquele que passava por nós chacoalhando nas mãos uma caixinha de fósforos, dizia que usava sapatos brancos, mas estava mesmo era descalço.

Ele indagou à santidade:

– Mas o que será de um homem farto da realidade, servida num prato vazio de pão, mas cheio de fome?

O santo, depois de revirar os olhos, disse com ares de astúcia, que toda realidade carente de sonho seria um prato amargo.

– Amargo, seu Tonho? Nem doce, salgado ou azedo! O que enche minha barriga hoje, não é sonho e nem comida, é lombriga.

O santo gargalhou. O sambista zangou. Eu quis foi chorar, mas como tentei rir, me sobrou um pobre sorriso amarelo-ouro na cara. Antes que o andarilho se embrenhasse na história, Santo António picou a mula, enquanto eu fiquei ali, curioso.

Aquele homem convidou-me educadamente a sentar no passeio. Eu aceitei cauteloso, enquanto ele não só se atirou na calçada, como enfiou seus pés sob a água turva que corria rente ao meio fio.

– Será que é São Pedro me mandando lavar os pés? Melhor obedecer, né!?

Foi quando roubamos e dividimos irmanamente a gargalhada de Santo António, enquanto ele desfrutava a raiva de um e tristeza do outro, acreditando castigar simultaneamente as noivas da cidade.

O homem catou um toco de cigarro no chão, riscou um fósforo, acendeu a guimba, deu-lhe um trago, ascendeu a voz e sacudiu a caixinha:

Diz que deu, diz que dá, diz que Deus dará…

Ele repetia isso e dali soava um zumbido pelos sons dos “z” e a pancada do “que” com o “d” (quideu, quidá, quideus). Deus que me perdoe, mas eu não tive mais dúvidas que estava em melhor companhia do que a do santo.

Ali ao meu lado era um artista tipicamente brasileiro, com seus instrumentos e batucada, pela boca, sem precisar de mais ninguém….

Eu sussurrei tentando acompanhar: isssss quideu, isssss quidá, isssss que deus….

Aquele homem confiou em mim, e foi desabafando sobre que destino teria toda a sua gente. Ele reclamou a saudade doida e doída de sua nega, vinda do Brejo da Cruz em busca de um futuro na cidade maravilhosa. E continuou:

– A gente canta e batuca. Tem gente por aí que até dança, mas meu chapa, por aqui a gente samba… e que samba! Lá na baixada vira e mexe tem gente gritando “pega ladrão!”. E quem, por um acaso, vem correndo pro morro, se não cai morto no chão, quando chega tá faltando um pedaço, no mínimo da dignidade, como se fosse pouco, do nada que se tem por lá. Se for preto como eu, então… Saravá! Digo, valei-me Deus Nossa Senhora. Mas a gente vê ladrão correndo mesmo é na pista… enquanto vira a gelada, troca a fita cassete no som, faz 120, e atropela quem atravessa ali, depois de procurar à toa pela tal da passarela de pedestre. Dá em nada não.

Ele me perguntou se sua prosa era tão boa quanto a de Santo António. Eu ri alto e falei que não lhe diria, já que minha resposta provavelmente era um pecado, e que o santo estava escondido nos vigiando, quiçá a nos dedurar para Deus. Foi então que depois de rir ainda mais alto, o sambista prosseguiu:

– Se eu vou para o inferno? Ainda não sei, mas tenho tentado evitar o pecado, eu peço um bocado a Deus do céu, porque talvez eu já esteja nele. Outra noite aí pra trás, quando minha nega me lembrou da reza, eu já tinha deitado. E adivinha? Vou te contar, viu… Dormi no meio da “Ave Maria”, depois sonhei com “Pai Nosso”:

– Pai nosso que estais no céu…

– Pode parar meu filho! Você já dormiu que eu sei.

– Dormi? Perdão ó Pai!

– Vixe! Se avexe não.

– É verdade… sem falar que os sonhos são mais honestos que  a realidade.

– Se são!

– Mas Pai, veja bem, preciso melhorar de vida, ajuda aí.

– Se o problema fosse comigo eu ajudaria meu filho, mas pra que você foi dormir justo no meio da Ave Maria?

– Porque foi a hora que eu alcancei a paz.

– Eita, que suas respostas são na malandragem, heim!? Vou ver o que posso fazer, pois tá pra nascer quem ature de botar a mãe no meio da treta toda.

– Credo! Vira essa boca pra lá meu Deus… que Menino Jesus nem ouviu isso.

– Hummm… por enquanto… mas eu vou contar!

“Como assim?” – eu pensei, então Deus era dedo-duro? O medo me arregalou os olhos que continuaram fechados, e a gargalhada escancarou minha boca que ficou quieta babando no travesseiro. Éramos nós, eu e Deus, negociando a vida e debochando da fé.

– Só me diga uma última coisa meu Pai amado, por que é que do que a minha gente tanto te suplica, o senhor nos nega?

– Ora, porque no corcovado me colocaram de costas para o seu povo, você não reparou?

– Mas o senhor não é feito de pedra, meu Pai.

– Só que também não sou de carne, meu filho.

– Num é de carne, mas me fez pele e osso.

– Isso! Faltando recheio. Eu sinto muito.

Nessa hora aí eu até achei que tinha escapado uma risadinha do canto da boca do Criador, mas não dei trela, respirei e falei:

– Mas… me diz Pai, se eu parti do alto, não irei para as profundezas, não é mesmo?

– Bem, pelas leis da física, que pautam inutilmente minha existência, você iria sim. Andou faltando às aulas, meu filho?

– Veja bem, meu Pai, até tentei ir à escola, mas eu já não tenho nem os dentes, que dirá livros. Quando depois de anos, surge lá uma vaga, trato logo é de mandar um dos meus filhos, que também são seus, né?!

– Como assim?! Não me faça rir, pois já começo logo a tossir. Não ando bem da goela; reze por mim!

(Risos)

– Acho que o Senhor não anda bem é da cabeça, heim!?

(Mais risos)

– Quem anda bem de cabeça,

é plantando bananeira,

ouve a Elza e não te esqueça,

sou Deus mulher e brasileira!

(Muitos risos)

– Afff… que na noite que vem hei de rezar é sentado.

– Ora, se ainda se preocupa com isso, então reza, meu filho. Mas se rezar em pé toma tento, pois da polícia se foge correndo, mas de suas balas “perdidas”, talvez nem deitando. Veja o absurdo da menina do morro do Tuiuti, nem gosto de lembrar… então, se a próxima noite não chegar, tu deixa disso e chega mais.

– Era só o que me faltava! “Chega” sou eu que digo, meu Deus! A única refeição do dia, meu guri fazia era na escola. Onde eu moro quando a escola não está alagada, tá é pegando fogo. Quando é ano de eleição, consertam tudo, se não for, falta é merenda, carteira e professor. Eu posso te fazer só um pedido? Em nome de minha nega, que diz que Deus não deixa faltar nada, tu não há de negar, pois é ela quem me obriga a rezar.

– Até três pedidos, meu filho, se eu fosse o gênio da lâmpada, mas sou Deus. E quando foi mesmo que você disse que seria sua última pergunta? Parece que não sou eu que ando mal da cabeça…

– Pois doutor, tem gente que quando acorda de um sonho, vai ver, era pesadelo, vai ver se urinou todo, tem gente que acorda chorando, tem também quem acorde gozado, e por aí vai. Pois eu pulei da cama depois dessa conversa com Deus, com um pouco de cada jeito. Não sei se aquilo tudo era suor, mas passei o dia cismado sem saber se viria a noite seguinte. Era dezembro, nesse meu Rio de Janeiro, fevereiro e março; na sacola um pacote de macarrão pra ceia, na cachola a cidra. A noite seguinte não só viria, como eu a viraria num samba. Comecei cantando essa batida aí do agrado do senhor, e continuei foi contando um pouco do meu sonho pra minha comunidade, e quando vi tinha feito um samba de partido alto.

O artista que intimidou Santo António estava então, pronto pra quando o carnaval chegasse.

Aquele ilustre homem se levantou me estendendo as mãos, me sorriu com um brilho no olhar, e foi se afastando sob aquela chuva de verão, devidamente calçado em seus sapatos brancos. Já eu, despertaria ao som da campainha, num sábado, ainda que de outono, sempre morno em minha terra. Eram duas senhoras à porta, uma munida de prancheta e caneta, enquanto a outra, de muitos panfletos:

– Bom dia! Somos vizinhos e precisamos da sua assinatura para fechar a nossa rua no dia 13 de junho, sem ser no próximo sábado, no outro. Podemos contar com sua colaboração e presença na festa de Santo Antônio?

Cotidiano no Morro da Providência. Rio de Janeiro, Brasil

Partido Alto

Chico Buarque/1972

Diz que deu, diz que dá
Diz que Deus dará
Não vou duvidar, ô nega
E se Deus não dá
Como é que vai ficar, ô nega
Diz que Deus diz que dá
E se Deus negar, ô nega
Eu vou me indignar e chega
Deus dará, Deus dará

Deus é um cara gozador, adora brincadeira
Pois pra me jogar no mundo, tinha o mundo inteiro
Mas achou muito engraçado me botar cabreiro
Na barriga da miséria, eu nasci batuqueiro (brasileiro)*
Eu sou do Rio de Janeiro

Jesus Cristo inda me paga, um dia inda me explica
Como é que pôs no mundo esta pobre coisica (pouca titica)*
Vou correr o mundo afora, dar uma canjica
Que é pra ver se alguém se embala ao ronco da cuíca
E aquele abraço pra quem fica

Deus me fez um cara fraco, desdentado e feio
Pele e osso simplesmente, quase sem recheio
Mas se alguém me desafia e bota a mãe no meio
Dou pernada a três por quatro e nem me despenteio
Que eu já tô de saco cheio

Deus me deu mão de veludo pra fazer carícia
Deus me deu muitas saudades e muita preguiça
Deus me deu perna comprida e muita malícia
Pra correr atrás de bola e fugir da polícia
Um dia ainda sou notícia

* termos originais vetados pela censura

chico e caetano globo partido alto

CLIQUE AQUI para ver Chico cantando Partido Alto com Caetano Veloso, em Chico & Caetano, programa da Rede Globo de Televisão (1987)

Não é de comer, mas faz gostar e repetir:

Ouça a gravação original da música, com o MPB4, no disco “Quando o Carnaval Chegar” (1972)

Que tal ouvir a versão da cantiga em ritmo de maracatu, com Chico e Caetano ao vivo?

Antonio Pitanga e Nara Leão no filme Quando o Carnaval Chegar
Antonio Pitanga e Nara Leão no filme Quando o Carnaval Chegar

Assista a um trecho emocionante do filme Quando o Carnaval Chegar

Partido Alto na versão de Cássia Eller ganhou muita visibilidade junto a um público diferente ao usual do Chico (assim como aconteceu anos depois com A história de Lily Braun, na incrível interpretação de Maria Gadú). Seja por atinar a isso, seja por admiração ou gratidão, com bom humor, ao final da apresentação, Cássia chama a atenção de seus fãs para o fato de a autoria da música ser de Chico Buarque.

Eis a interpretação feita por Cássia Eller para o Acústico MTV em 2001

 

Morro da Favela - Tarcila Amaral - 1'924
Morro da Favela – Tarcila Amaral – 1924

Uma boa sobremesa nunca é demais…

Quem já pediu por um sonho no balcão da padaria? Especial Antonio Brasileiro, exibido na Rede Globo ás 21:25 em 29/05/1987. Um verdadeiro sonho!

É só CLICAR AQUI

… uma curiosidade também não

A maneira com a qual Chico Buarque substituiu em sua música, os termos vetados pela censura, não abalou em nada a beleza da canção. Contudo, todos nós dotados de alguma inteligência e discernimento ainda que limitado, alcançamos os recados contidos nessa mutilação. O que foi censurado? Tudo aquilo que foi considerado igualmente desvaloroso para o então desgoverno: a titica e o brasileiro.

censura partido alto

 

CENSURA E PRECONCEITO

Ao lançar o disco Construção, em 1971, Chico alçou rapidamente o patamar de destaque no cenário musical brasileiro. O caminho até então trilhado, dos festivais da canção nos anos 1960 daquele bom moço que fez o Brasil se embalar ao ritmo de A Banda e Carolina, é substituído pela precoce maturidade de um músico com o viés da crítica social quanto à situação do operário explorado e preso em seu cotidiano.

Mas não foi somente isso. A música Construção revelava um sofisticado aparato semântico, com sua letra estruturada em dodecassílabos e as inacreditáveis rimas em proparoxítonas, todas elas. Além do que se mostrava possível trocar cada palavra do final de um verso por qualquer outra dos demais, isso daria um novo sentido à mensagem, mantendo íntegra, porém, a narrativa do trabalhador em seu voo final de desesperança.

Chico se tornou uma unanimidade a partir daí. Com seus inacreditáveis 27 anos à época, ele nos mostrou a possibilidade de unir a excelente música com versos elaborados em apuro linguístico surpreendente.

Eis que, no ano seguinte, 1972, o artista já rotulado como intelectual lança nova surpresa em sua estrada de compositor, decepcionante ante a ingenuidade de quem não o alcança.

E nada seria mais surpreendente naquele momento, do que um samba em grande estilo – um partido alto a ser nominado justamente pelo ritmo –, numa linguagem autenticamente popular, expressões, gírias e palavras no contexto da personagem que oscila entre o humor e a miséria, apontando, todavia um estado de graça extremamente cambiante para os ouvidos dos fãs que aguardavam certamente outra obra musical seguindo a mesma linha de Construção.

Tamanho foi o preconceito à época em relação a Partido Alto, que até o órgão de censura existente naquele nebuloso período de ditatura militar, cuja função era a de controlar aspectos que parecessem “subversivos” nas mensagens musicais, tornou mais forte a voz do preconceito, pois o censor se irritou com o “Chico de Construção” que se transformara no compositor que falava “titica” na música.

Esboços de Partido Alto, feitos pelo Chico - Fundação Tom Jobim
Esboços de Partido Alto, feitos pelo Chico – Fundação Tom Jobim

Incrivelmente, a canção sofreu dois ataques. O da censura oficial, institucional, a vetar palavras tidas como ofensivas aos bons costumes, como “pouca titica” (substituída por “pobre coisica”) e “nasci brasileiro” (trocada por “nasci batuqueiro”, pois nascer na miséria sendo brasileiro parecia uma ofensa patriótica à época). O outro ataque, esse mais discreto, silencioso eu diria, foi o do preconceito, pessoas torcendo o nariz para um samba aparentemente econômico em estilo e linguajar. Nem parecia o mesmo autor de Construção, devia ser o pensamento de muitos que começavam a acompanhar a carreira musical do então jovem Chico Buarque.

Penso que o desdém do preconceito, de alguma maneira, pode ser ainda mais prejudicial, pois o da censura passa – como foi com a redemocratização do Brasil no final dos anos 1980 –, mas a visão preconceituosa permanece, por vezes escondida em sentimentos inconfessáveis.

É uma pena, muitas pessoas não compreendem que a arte é livre, e tem dentre suas inúmeras funções a de provocar, gerar um desequilíbrio, instigar, desinquietar; e é isso que faz Partido Alto. Outra coisa: com essa canção, Chico de logo impôs sua marca, que o acompanha até hoje, de não aceitar rótulos. Chico transforma sua arte em laboratório constante de experimentações, num imenso leque de possibilidades que vão do erudito ao autenticamente popular. Ele é um artista brasileiro, assim como bem afirma, canta e sente.

Por isso, arrisco-me a dizer do carinho especial que Chico tem por Partido Alto, pois ela foi a necessária mensagem aos preconceituosos, de que o artista se expressa como a inspiração o presenteia , e não se pauta nas expectativas criadas por um nicho preso num estilo musical, acreditando se valer de um status em função disso. Não é à toa que Partido Alto é uma das canções inaugurais do show Caravanas.

Ainda assim, isso é o mais engraçado – no sentido amplo da graça, como abordado na narrativa “parti do ALTO” – a letra da cantiga, como tudo que o Chico faz, carrega em suas entranhas os labirintos e enigmas que emprestam à obra buarqueana todo o seu brilho. Ao contrário do que os preconceituosos pensam em suas limitadas oiças, há imensa sofisticação semântica em Partido Alto.

Deixo aqui três exemplos. No verso “dar uma canjica”, a personagem da música faz troça da própria insignificância. Pois se um artista pode “dar uma canja”, isto é, fazer uma apresentação inesperada ou mesmo de improviso, aquele que se considera “pouca titica” naturalmente vai fazer uma surpresinha bem pequenina; não uma canja, mas uma canjica.

Outra passagem riquíssima, em sentido interpretativo, é a do eu lírico fraco, feito de pele e osso, ficando valente diante a afronta de quem quer que fosse, que se fizesse entender por uma ofensa a sua mãe. Quem não se lembra dos tempos de colégio, quando os garotos queriam partir para a briga, um deles riscava o chão e dizia que ali era a mãe de um deles? Botava a mãe no meio! Quem passasse da linha era o sinal para o começo da refrega.

Mas são constantes os rastros de genialidade desenhados pelo Chico na canção. Ele fala dessa possibilidade, de a personagem ser desafiada, e se assim acontecer ele usa toda sua habilidade de capoeira (dou pernada a três por quatro), e faz de modo tão elegante, que nem se despenteia! Nos lembramos então dos filmes nos quais os heróis lutam e o cabelo não se desalinha. Todavia, há uma ironia escondida aí. A afirmação “e nem me despenteio” carrega a zombaria feita de orgulho e vitória com o próprio cabelo crespo, do povo preto inteligente e sagaz sim! E que vem lá do morro sim, pelo desespero de esperar demais, e óbvio, para o delírio das gerais. Tudo transmitido bem ali na entrelinha, com tamanha finura, no cabelo lindo e grosso que não se atrapalha, jogando seu charme como sendo também um galã de cinema, neste caso interpretado por Antônio Pitanga no filme para o qual foi feita a música.

Assim é Partido Alto. Deliciosa, cheia de mensagens sobre uma realidade dos anos 1970 e que ainda perdura. Na miséria do morro, quem nasce brasileiro merece ser notícia por sua incrível capacidade de transformar a vida num estado constante de graça.

Prestem atenção em tudo da música. Ouçam, sigam nessa viagem sob a cadência do samba.

E aquele abraço pra quem fica.

Hugo Carvana, Antonio Pitanga, Nara Leão e Chico Buarque no filme Quando o Carnaval Chegar
Hugo Carvana, Antonio Pitanga, Nara Leão e Chico Buarque no filme Quando o Carnaval Chegar

DO SAMBA AO RAP

Chico canta a música na turnê Caravanas (2017-2018), numa interpretação marcante, que se tornou única por ser totalmente inusitada, contendo componentes mais teatrais e um final entoado, tendendo ao rap.

PARTIDO ALTO, na versão mais recente

Genial, não? Enfim, coisas de Chico.

chico com a bola 1

OLHOS NOS OLHOS – GRANDE HOTEL

MELHOR QUE OUTRORA
Uma peça teatral em dois atos

Primeiro Ato:
Bem Mais

Cena:
A sala de uma casa no subúrbio do Rio de Janeiro.
O ano é 1976.
No centro do palco, um telefone em cima da mesa.
Luzes focadas no aparelho.

telefone anos 1970

A raiva de Nice dela própria vinha da promessa diária jamais cumprida: abaixar o volume do toque de seu telefone. Quando o aparelho resolvia abrir sua estridente cadência: trimmmm…. trimmmm….. trimmmm… ela tinha a impressão das vizinhas em casas coladas à dela, o que era comum nos subúrbios, amaldiçoando-a por interromper a prosa nas tardes de calor, naquele bairro esquecido dos que viviam a ver o Redentor de frente, na tal cidade que abusava de ser tão maravilhosa.

Os afazeres e talvez uma inconsciente espera pela chamada tão esperada, faziam com que ela se esquecesse da simplória tarefa de pegar o aparelho, virá-lo e reduzir o som naquele botão de três níveis, máximo, médio e mínimo. Mas o fato é que ela aguardava todos os dias pelo esganiçado toque, ao longo daqueles dois anos do solitário silêncio de sua casa.

Pois finalmente o dia chegou.

Trimmmm…. trimmmm… trimmmm…

O coração saltou pela boca e é provável que tenha chegado antes dela ao telefone, mas coração não tem braços nem mãos; para atendê-lo, só mesmo com as mãos, era preciso pegar a parte superior do gancho e levá-la ao ouvido, com a outra extremidade defronte à boca.

– Alô… foi praticamente um sussurrar dela por lábios trêmulos.

– Sou eu.

A fala, ela bem sabia, era típica da empáfia dele. Não anunciou educadamente um “alô”, muito menos “boa tarde”. Sou eu. Como se ela fosse obrigada a conhecer a voz após todo tempo de ausência, ou, pior, como se aquele telefone estivesse mudo nesse período, ninguém fizesse qualquer ligação para ela, o aparelho a serviço da boa vontade quando ele resolvesse dar notícia.

Por óbvio, ela responderia: “eu quem?”, isso foi ensaiado diversas vezes, pois de tanto conhecê-lo ela tinha a absoluta certeza do “sou eu” como início de conversa.

– Oi.

Foi o que pôde ser dito, ensaios de nada valeram.

– Tá tudo bem aí?

– Sim, sim.

– Surpresa com a ligação?

Ela sentiu o rosto corar, reagindo à altura aquele interrogatório que, ainda que iniciante, já a constrangia.

– Você ligou para que eu preencha um questionário de respostas?

– Calma, meu bem…  – ela detestava quando ele a chamava de meu bem. Essas palavras nunca foram sopradas num momento de carinho, costumeiramente era a senha prévia para desculpas tolas e mentiras esfarrapadas.

– Estou calma. Estou na minha casa – o minha, nesse caso, foi dito com muita ênfase, pareceu até mais estridente do que o próprio toque do telefone.

– Tá bom, desculpa. Vamos começar do começo. Está tudo bem com você?

– Está – por ela ficaria nisso. Mas há certos sentimentos incontroláveis, que surgem do nada, e foi exatamente o que aconteceu naquele instante. Ela começou algo que, sabia, não conseguiria mais parar.

– Quando você largou tudo aqui, meu bem, ainda teve a audácia de dizer “seja feliz e passe bem”.

Ele não ouviu a frase por inteiro, a não ser o “meu bem”, a alimentar sua vaidade por constatar no possível deslize que ela ainda o amava. O “passe bem” ele nunca falou quando saiu de casa definitivamente, e achou que ali foi uma estratégia dela, ao se arrepender de chamá-lo de “meu bem”, de emendar outro “bem” no final, para confundir sua memória.

– Eu quase endoideci, você nem sabe. Até morrer eu quis, de verdade. “Coitada… morreu de ciúme”, era só isso que falariam no meu velório.

– Deixa de exagero…

– Você telefonou, agora vai ouvir. Com o tempo, resolvi fazer o que sempre fiz enquanto vivemos juntos: obedecer. Então te obedeci. Você não disse que era pra eu ser feliz? Então corri atrás da felicidade.

– Casou de novo?

– Pra quê casar? Estou livre e mais jovem, duvido até que você me reconhecesse na rua. Eu já me refiz do sofrimento, há bastante tempo. Se quiser me rever, já vai me encontrar assim, uma nova pessoa.

O silêncio chegou a incomodar pelo barulho do desconforto.

– Que foi? Não gostou de ouvir isso? Eu queria era te dizer assim, olhos nos olhos. Por telefone não vale, não dá pra te ver. Quem sabe, um dia inventam um telefone com olhos, que façam nossos olhos olhar o do outro?!

– Não estou entendendo…

– Está, claro que está. Eu queria olhar bem na tua cara pra dizer como é minha vida hoje, você me abandonou, mais de dois anos sem dar notícia, meu bem…. Sabia que sem você eu passo bem até demais? – ele jamais alcançaria as ironias dela nessa fala, pois mal podia fazer um bem comum, que dirá entender três diferentes.

– …

– Passo o dia cantando, sem motivo, só mesmo de alegria… e quer saber mais? As águas rolaram debaixo dessa ponte, você é passado… depois que você foi embora, eu me tornei livre, nem sabia que tantos homens poderiam me amar… e olha… bem mais e melhor que você…

De repente, dotado do característico egocentrismo masculino, ele se muniu da absoluta certeza de que tudo era mentira. Ela estava se vingando, claro! Nada daquilo poderia ter acontecido, já que ele era o máximo. Sorriu abertamente, sem fazer barulho, certo de que lançaria uma isca infalível como ele.

– Será que a gente ainda pode se encontrar?

fiação poste telefone anos 1970

Ela não titubeou em encenar a adorável perfeita, mais uma vez, com reservas tais, que só lhe conferiam um realismo odioso e excitante.

– Olha… se você quiser me rever, vai encontrar outra pessoa. Mas, se tiver precisando de algo… claro… venha, pode vir! Esta casa será sempre sua.

Ele estufou o peito, o ego inflado. Acreditava que era tudo um teatro, de menos a parte que de fato fora. Ela certamente chorava noite e dia pensando nele, não como o homem que lhe deu a dignidade que apenas uma mulher casada poderia ter em tal contexto, mas como o grande e inesquecível amor da sua vida. Só que ele enfadou-se de toda a vida boa que uma mulher àqueles moldes proporcionava a um homem em troca da imagem de uma senhora, e acreditou poder viver a liberdade. Ele saiu mundo afora, mas se deu conta depois de muito tempo que a procura de outras mulheres era uma fuga de si mesmo, não foi feliz com nenhuma delas, por isso pensou em buscar novamente a dedicação de Nice, aquela que convenceu não só a ele, mas também a si mesma, que o amava verdadeiramente.

Aguentou até quando deu, foram mais de dois anos. Por isso telefonou animado, para sondar como ela estava, e depois de constatar, em sua perspicácia precária, que aquela mulher ainda era sua, esmoreceu, feito criança que guarda o brinquedo no fundo do armário, acreditando poder brincar com ele depois, sempre depois.

– Tá bem, bom saber que está tudo certo aí. E, sim, eu apareço qualquer dia, tá?

– Avisa antes.

Essas foram as palavras que ele jamais pensou em ouvir, mas atribuiu à cena final do teatro que ela debulhava no papel de mulher independente.

– Sim, aviso. Vou desligar, estou morando agora longe, numa cidade no norte, a ligação interurbana tá muito cara. Até breve, então.

– Até.

O que ele jamais viu ou sequer adivinharia, foi o gesto de Nice ao pousar o gancho do telefone e apanhar imediatamente a caderneta laranja tranquilamente descansando ao lado do aparelho. Começou a procurar no índice de letras do alfabeto alguns nomes ali registrados, escritos a lápis, que ela guardava com as melhores lembranças, além da possibilidade de fazer uma ligação quando quisesse, em qualquer instante. Apontou o dedo na letra “F”, era a letra que dava início ao sentimento dela naquele instante… Fábio, Fernando, François…

caderneta telefone anos 1970

– François! – ela fala em voz alta, para si própria – Sim! Ele me trouxe flores e um cartão escrito à mão, já no segundo encontro! Faz tanto tempo isso…. “Pensas que não sou feliz? Estás enganada. Agora sou!” Nunca esqueci esses dizeres…

Ela tinha certeza que se apaixonou por causa do jeito elegante dele falar e escrever, usando corretamente a segunda pessoa do singular. François fez questão de dizer ao se encontrarem pela primeira vez: “meu nome se pronuncia frân-çú-á, é Francisco em francês, minha mãe era professora de língua francesa, além de me ensinar a falar corretamente os verbos em português, ela vivia a dizer palavras que usamos aqui, mas que vieram da língua francesa, foram as primeiras que aprendi… abajour, tailleur, souvenir… nem sabia o que significavam, mas eu amava aqueles sons, pareciam entonações de música. Talvez por isso eu acabei me apaixonado pela gafieira, um estilo de samba dançante. Minha mãe não ficou muito feliz, preferia que eu tocasse valsa, mas o sangue do meu pai, crioulo bom de samba, lá do morro,  foi mais forte”. Essa confissão de parte da vida dele deixou-a também encantada, pois se abriram as portas da história pessoal de François sem que ela tenha pedido.

Nice acendeu um cigarro, aspirou a fumaça como quem chama a vida para abraçá-la, em seu prazer aberto, porque o marido detestava quando ela fumava. Costumava fazer escondida muitas coisas, além de fumar. “Bem mais e melhor que você”, ela pensou enquanto sorria. Os dedos se movimentavam para discar os números que davam acesso à felicidade. Antes de completar a ligação, invadiu-lhe a irresistível vontade de cantar. Sem mais nem porquê.

Enquanto disca o telefone, Nice começa a cantar:

Quando você me deixou, meu bem
Me disse pra ser feliz e passar bem
Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci
Mas depois, como era de costume, obedeci

Quando você me quiser rever
Já vai me encontrar refeita, pode crer
Olhos nos olhos, quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais

E que venho até remoçando
Me pego cantando
Sem mais nem porquê
E tantas águas rolaram
Quantos homens me amaram
Bem mais e melhor que você

Quando talvez precisar de mim
‘Cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim
Olhos nos olhos, quero ver o que você diz
Quero ver como suporta me ver tão feliz

telefone anos 1970 fora gancho

As cortinas se fecham.
Tudo fica escuro.
Permanece somente uma luz direcionada ao
telefone, no centro da sala.

Fim do Primeiro Ato

mascaras teatro

Segundo Ato
Sentimentos de Outrora

Cena:
Um quarto do Grande Hotel, Rio de Janeiro.
François, ansioso, aguarda a chegada de Nice.
De repente ela abre a porta.

grande hotel

François, sorridente, começa a cantar.

Vens ao meu quarto de hotel
Sem te anunciares sequer
Com certeza esqueceste que és
Que és uma senhora
Vejo-te andar de tailleur
Atravessando a novela
Sentes prazer em falar
De sentimentos de outrora

Deito-me no canapé
Não sem antes abrir a janela
E ver tuas palavras ao léu
Jogas conversa fora
Sabes que estive a teus pés
Sei que serás sempre aquela
Pretendes me complicar
Mas passou a nossa hora

Não me incomodo que fumes
Podes mesmo te servir à vontade do meu frigobar
Ou levar um souvenir
Dispõe do meu telefone
Desejando, liga o interurbano pra qualquer lugar
E apaga a luz ao sair

Quando eu pensava em dormir
Tu chegas vestida de negro
Vens decidida a bulir
Com quem está posto em sossego
Entras com ares de atriz
Sabes que sou da platéia
Deves pensar que ando louco
Louco pra mudar de idéia, não?
Pensas que não sou feliz
Entras com roupa de estréia
Deves saber que ando louco
Louco pra mudar de idéia

quarto hotel penumbra

As cortinas se fecham vagarosamente,
enquanto a luz vai sendo reduzida,
com o foco direcionado à cama na qual
está François, olhando Nice, que se aproxima
com gestos sensuais.

Fim do Segundo Ato

FIM DA PEÇA

mascaras teatro

A PONTE MUSICAL: OLHOS NOS OLHOS – GRANDE HOTEL

Quem passeia por este blog, provavelmente já se atentou que um dos traços nos textos aqui pousados é a exposição das amplas possibilidades de interpretação da obra buarqueana, procurando surpreender não só no conteúdo, como também na forma.

Desta vez, lanço uma perspectiva cênica envolvendo duas músicas que não guardam qualquer relação em termos de criação, mas que, para mim, apontam essa possibilidade de conexão, mesmo considerando o lapso temporal que as separam. Olhos nos Olhos é de 1976; Grande Hotel, de 1997.

Escolhi a arte da dramaturgia para cerzir essas duas canções, ao imaginar uma pequena peça teatral com somente dois atos, e que contasse a história de Nice em sua legítima busca da felicidade amorosa.

A narrativa da dramaturgia é desafiadora, pois não se tem o conforto descritivo da narrativa em prosa. Nessa hora se vê como faz a diferença o estilo que ancora todo um texto de conto, ensaio e até romance. A liberdade é ampla ao se escrever em prosa. Mas ao construir uma peça a ser encenada, o que se impõe é o diálogo. O palco mostrará a cena e as personagens com suas características. O diretor ou a diretora, as atrizes e os atores completarão a arte da dramaturgia como pensada pelo criador da história.

Por isso, optei também por algo diferenciado, numa proposta de interligar roteiro teatral e literatura. Embora se tenha aqui uma proposta cênica, utilizei os recursos da literatura, praticamente escrevendo um conto que seria vertido depois em obra teatral, como se a ideia da história se materializasse na linguagem literária, para que somente depois viesse a ser transformada na concretude da encenação, feita pela atriz e pelo ator das duas personagens que aparecem no palco – Nice e François –, porque o marido só adentra na história por meio da voz, ele está do outro lado da ligação telefônica, e o cenário é justamente a sala da Nice. Isso tem uma mensagem proposital: o marido é secundário, tanto que sequer se aponta seu nome no contexto. Ele não tem mais vez, a sua vez já passou, não tem presença nem identidade; só tem a voz inativa. Isso foi pensado por mim para sobressair a força da mulher colocada na vida real e no tempo da encenação (anos 1970) como pessoa discriminada, uma “desquitada” (esse era o termo da época para separada judicialmente), cujo rótulo a coloca previamente como derrotada. Mas Nice conhece seu valor e tem consciência de que se refaz na medida em que assume sua identidade na busca da felicidade e do prazer, sem qualquer receio.

A proposta, então, se bifurca em duas perspectivas. A primeira, a de mostrar a possibilidade de realizar uma conexão entre duas canções do Chico, uma delas em parceria com Wilson das Neves, cujo contexto necessariamente não induz a essa ligação, seja pela distância temporal entre elas, seja pela temática enfrentada nas músicas. Mas a arte permite essas costuras surpreendentes. A segunda perspectiva é a de que podemos verter a obra musical buarqueana numa linguagem teatral, porque me parece ser da essência do estilo de Chico Buarque que suas músicas carreguem nas entranhas uma forte carga de ação de uma história se desenvolvendo como se fosse trecho de uma peça ou de um filme. Elaborei então esse texto em forma de roteiro teatral, ainda que no primeiro ato se faça uma narrativa literária ao estilo de conto, e no segundo ato se tenha tão somente a música cantada, pois isso basta para descrever toda a situação ali imaginada.

Eis a riqueza incomparável das músicas do Chico, a permitir tantas possibilidades em conteúdo e em forma, nas releituras possíveis. Por isso costumo dizer, sem receio de estar exagerando, que não há em qualquer lugar ou tempo que se possa buscar, aqui ou lá fora, um artista como Chico Buarque.

meus caros amigos capa

Olhos nos Olhos / Chico Buarque / 1976

Quando você me deixou, meu bem
Me disse pra ser feliz e passar bem
Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci
Mas depois, como era de costume, obedeci

Quando você me quiser rever
Já vai me encontrar refeita, pode crer
Olhos nos olhos, quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais

E que venho até remoçando
Me pego cantando
Sem mais nem porquê
E tantas águas rolaram
Quantos homens me amaram
Bem mais e melhor que você

Quando talvez precisar de mim
‘Cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim
Olhos nos olhos, quero ver o que você diz
Quero ver como suporta me ver tão feliz

contracapa meus caros amigos

CLIQUE AQUI PARA OUVIR A GRAVAÇÃO DA MÚSICA COM O CHICO BUARQUE (1976)

OLHANDO A CANÇÃO

Foi a primeira vez que eu entrei na parada de sucesso em rádio AM foi com a canção do Chico, Olhos nos Olhos”, diz Maria Bethânia, com visível ar de espanto, ao lado de um Chico pensativo após essa afirmação, que arremata: “é, tocava sim!”, no que ela complementa, “virou sucesso na AM! Você só tocava FM, e eu também, quer dizer, essa nossa geração, classe A, assim sofisticada…” (essa passagem consta no DVD Chico e as Cidades, de 2000).

chico e bethania olhos nos olhos

Convém esclarecer às pessoas mais jovens que nos anos 1970 o rádio era o grande veículo divulgador das músicas, mais poderoso que a televisão. E o mundo se limitava a essas duas plataformas tecnológicas. O computador era algo em experimentação nas grandes empresas, não se tinha ainda o computador doméstico, pessoal, o PC (personal computer); a internet nem fazia parte do imaginário de escritor de ficção científica. E no caso do rádio, duas frequências possuíam público distinto. A mais antiga, AM (amplitude modulada) com baixa qualidade no som, era o canal mais popular, no qual as pessoas estavam acostumadas a ouvir não somente música, mas notícias, programas de entrevistas, e até mesmo antes da televisão existiam as rádio-novelas, com atrizes e atores conduzindo uma história somente com suas vozes. Depois chegou a FM (frequência modulada), com sua qualidade sonora bem mais evidente, e por isso rapidamente se tornou um nicho de canais somente com música, em estilo distanciado do popular, e por isso ficou conhecida como rádio de elite.

As músicas do Chico, desde o salto de sofisticação ocorrido com o disco Construção (1971) eram tocadas bastante em FM. Conhecidas como MPB (música popular brasileira), essas canções eram tidas como algo a interessar somente uma faixa estreita de pessoas, sem dúvida um preconceito, quebrado com Olhos nos Olhos, pois rapidamente a música atingiu todas as camadas da população, tocando nas rádios AM. Eu lembro demais, menino à época, com meus 12 anos, da voz no rádio daquela cantora diferenciada e marcante, “Quando você me deixou, meu bem…”; nessa época eu nem fazia ideia de quem eram Bethânia e Chico Buarque.

O fato é que a canção caiu no gosto popular; seja pelo tom de força empregado por Maria Bethânia, a mostrar uma nova imagem feminina nos preconceituosos anos 1970, aquela capaz de superar o abandono do marido; seja pelo ritmo de balada com o otimismo da canção a desfiar a história da separação sem a visão trágica – bem comum nos anos 1950, 1960, a chamada música de “fossa” –, simplesmente cada um vai viver sua vida após o casamento findo.

Impressionante, porém, é saber de que maneira a música surgiu, e isso quem fala é o próprio Chico, a nos mostrar os insondáveis caminhos da inspiração, nem sempre obedecendo a uma lógica entre o motivo e o resultado: “Eu me lembro muito bem de uma tarde em que fiquei conversando horas com o dramaturgo Paulo Pontes, meu parceiro em Gota d’Água. Ele tinha voltado de uma viagem ao Nordeste e estava doente. Eu sabia que a doença era terminal. Mas ele não sabia, ou fingia que não, e passou a tarde falando do que tinha visto no Nordeste. Era 1976, e Paulo Pontes cheio de dúvidas em relação ao Brasil, a questão social, enfim, uma conversa densa, e eu muito impressionado com aquilo tudo, na verdade mais impressionado com a doença do que com o Nordeste. Voltei para casa agoniado e louco para tocar violão. Naquela noite, eu escrevi Olhos nos Olhos, uma canção de amor que não tinha nada a ver com nada, vai ver que por isso mesmo…” (entrevista para a Revista Nossa América, 1989).

OS OLHOS NAS VOZES

A interpretação da Maria Bethânia se tornou histórica em Olhos nos Olhos. Chico, aliás, ao concluir a música, pensou nela e encaminhou a “fita” (nessa época, o compositor gravava sua primeira versão do que acabara de fazer numa fita K7, era a maneira mais fácil, com gravador portátil e microfone). Na interpretação, se percebe toda força feminina da mulher que, olhando nos olhos de seu ex-marido, diz que já superou tudo e está bem melhor agora.

CLIQUE AQUI PARA OUVIR A GRAVAÇÃO DA MÚSICA COM A MARIA BETHÂNIA (1976)

Chico também grava a canção, no disco Meu Caro Amigo (1976), e entoa uma interpretação mais intimista, a começar pelo arranjo de Francis Hime, que também toca piano, as flautas na introdução (Jorginho e Celso) acompanhadas do piano e de instrumentos nitidamente suaves, como o oboé (Bráz), o baixo (Luisão) e o violão (Luiz Cláudio Ramos), tendo ao fundo uma discreta bateria (Papão). A forma como Chico debulha as palavras dá a entender – ao menos na minha leitura – de que o eu lírico da canção, a mulher abandonada pelo marido, está convicta da felicidade com sua nova vida, mas ainda não diz isso diretamente para aquele homem que é passado, mas ela anseia por dizer assim que ocorrer a oportunidade; a expressão olhos nos olhos não é do instante da canção, como em primeira mirada pode parecer, e sim uma programação para quando houver o reencontro (Quando você me quiser rever / já vai me encontrar refeita, pode crer, são os versos-chave que indicam essa perspectiva).

O modo como Chico entoa a canção sempre me levou a esse cenário. A mulher está pensativa, falando consigo própria, é um verdadeiro discurso interno de convicção da sua nova vida, para no momento certo olhar para aquele que um dia foi tão importante, e dizer: você não é mais. Daí me veio a ideia da cena teatral, na qual embora ela fale com o ex-marido, não o faz diretamente, e sim por telefone, num diálogo no qual ela pode lançar todas essas assertivas sem o risco de ser agredida ou até morta (basta imaginar o risco de uma mulher dizer diretamente a um homem naquela época – e até na atualidade – Quantos homens me amaram / Bem mais e melhor que você). Desse modo indireto, falando pelo telefone, ela consegue externar com toda convicção sua nova fase da vida, cantando sem mais nem porquê e se vendo mais jovem.

Mais recentemente, Ivete Sangalo fez sua interpretação da música, emprestando uma narrativa contundente, ao mesclar sentimentos de uma alegria evidente por estar na nova situação de liberdade, contando sua história sem qualquer penar. Dá a impressão de uma mulher efetivamente liberta do passado, ao ponto de externar algo tão denso com a alegria contagiante típica da forma que Ivete tem de cantar (Álbum Ivete, Gil e Caetano, de 2012).

CLIQUE AQUI PARA OUVIR A GRAVAÇÃO DA MÚSICA COM A IVETE SANGALO (2012)

Ouvindo qualquer uma dessas versões de Olhos nos Olhos, a conclusão a que se chega é de que a arte, por ser indubitavelmente inesgotável, adquire um caráter personalíssimo ao encontrar cada apreciador, comportando sempre muitas interpretações, isso é o que a torna indispensável.

 Grande Hotel / Wilson das Neves / Chico Buarque / 1997

Vens ao meu quarto de hotel
Sem te anunciares sequer
Com certeza esqueceste que és
Que és uma senhora
Vejo-te andar de tailleur
Atravessando a novela
Sentes prazer em falar
De sentimentos de outrora

Deito-me no canapé
Não sem antes abrir a janela
E ver tuas palavras ao léu
Jogas conversa fora
Sabes que estive a teus pés
Sei que serás sempre aquela
Pretendes me complicar
Mas passou a nossa hora

Não me incomodo que fumes
Podes mesmo te servir à vontade do meu frigobar
Ou levar um souvenir
Dispõe do meu telefone
Desejando, liga o interurbano pra qualquer lugar
E apaga a luz ao sair

Quando eu pensava em dormir
Tu chegas vestida de negro
Vens decidida a bulir
Com quem está posto em sossego
Entras com ares de atriz
Sabes que sou da platéia
Deves pensar que ando louco
Louco pra mudar de idéia, não?
Pensas que não sou feliz
Entras com roupa de estréia
Deves saber que ando louco
Louco pra mudar de idéia

WILSON DAS NEVES E CHICO BUARQUE CANTAM “GRANDE HOTEL” NO SHOW CARIOCA (2007)

SOU DA PLATEIA

A dança resultante de um samba-de-gafieira, ou gafieira, como muitos abreviam, é um bailado de um casal em passos surpreendentes e ágeis, num vai-e-vem repleto de coreografias, nas quais ambos desenvolvem movimentos próprios, isolados, e depois atuam de modo sincronizado, em conjunto; essa linguagem corporal é muito ligada a um Rio de Janeiro com sua típica malandragem na expressão da dança alegre e com toques de sensualidade.

Sim, Grande Hotel é um samba sincopado – certamente nem utilizam mais essa expressão, muito em voga até os anos 1970, por meio de sambistas como Donga –, porque ele tem um ritmo mais apoiado na percussão, com melodia bem elaborada, enfatizando a riqueza musical da cadência. Mais especificamente, Grande Hotel é um samba-de-gafieira, subgênero do samba sincopado, com estímulo à dança.

Essa música sempre me induziu a uma cena de samba-de-gafieira, em cenário dos anos 1970, até pelo reforço da linguagem poética contida na narrativa da música, o encontro entre dois antigos amantes num quarto de hotel a desfrutar dos pequenos luxos que ele proporciona, além da possibilidade de se ter a intimidade fora de um ambiente com outras pessoas. Ali eles poderiam bailar à vontade, sem receio de nada, espalhando pelo quarto toda a coreografia sensual do aguardado encontro.

Por conta dessa imagem que a canção me remete, imaginei a possibilidade de uma costura com Olhos nos Olhos, considerando a história por mim imaginada da mulher que está em busca dos amores antigos para revivê-los, em face de sua nova condição de separada (na época, falava-se desquitada), tudo girando nos anos 1970.

Essa parceria de Chico Buarque com Wilson das Neves é o resultado de muito tempo de convivência, por atuarem juntos em gravações de discos e também nos palcos.

De certo modo, Grande Hotel é um retrato da figura sempre sorridente de Das Neves, como era carinhosamente chamado por seus companheiros de estrada musical. Nessa canção se tem de modo muito nítido as raízes do samba da melhor expressão de um Rio de Janeiro de outrora.

Esse tempo de outrora, claro, diz respeito aos anos 1950, certamente o auge do encantamento de uma cidade repleta de luz e som, mas se estendeu esse período, a meu ver, até os anos 1970, depois disso se teve o corte abrupto de um país que se tornou tenebroso e triste em face da ditadura, violentamente instalada no país.

O samba Grande Hotel faz um corte e nos leva a uma cena particularmente restrita, mas que é um microcosmo dessa ampla felicidade que se anunciava com data marcada para findar. Um quarto de hotel com seus elementos de conforto, por se ter ali coisas que certamente não se encontravam nos quartos das casas daquele tempo. Um frigobar, pequena geladeira própria para ser utilizada em ambiente pequeno, como um quarto, para se ter fácil acesso a pequenos luxos gustativos, como simplesmente uma água gelada. Um telefone, artigo requintado nos anos 1970, pois havia um elevadíssimo preço para se ter uma “linha telefônica”, porque o consumidor era obrigado a comprar ações da companhia telefônica para o uso do serviço, isso demandava até financiamento por longos meses a fim de se instalar um telefone em casa.

E até uma televisão adornava aquele quarto de hotel com seu diferencial em termos de atrativos. Embora na letra da música não se tenha explicitamente a referência a uma televisão, Chico inseriu sutilmente a percepção desse objeto, quando o eu lírico da canção diz que a mulher andando de tailleur, atravessou a novela, ou seja, a cena é justamente ela com um conjunto composto de casaco e saia, passando em frente à televisão ligada, que transmitia naquela ocasião uma novela, por ser na década de 1970 a expressão maior do divertimento televisivo no Brasil.

A sensação de riqueza daquele que está ali para oferecer o melhor ao seu amor, é justamente a possibilidade de ofertar à ela todos esses pequenos luxos que um quarto de hotel proporcionava naquela época: o frigobar, podendo até levar um souvenir, garrafinhas de bebidas, salgadinhos, coisas típicas que preenchem aquele serviço; deitar no canapé, espécie de pequeno sofá, de dois lugares, ideal para namoros; usar o telefone, inclusive realizar uma ligação para outros estados, o interurbano, de elevado custo à época.

Além desse ambiente de pequenos prazeres materiais, o eu lírico se sente muito elegante por estar ali, e não só utiliza a segunda pessoa do singular no modo de tratamento (vens, te anunciares, esqueceste…) como também passa a falar palavras em francês, que na época se incorporavam ao linguajar da classe mais favorecida, num estrangeirismo que indicava sofisticação, não só nas palavras propriamente em francês, como tailleur e souvenir, e aquelas que se adaptaram à nossa língua e de origem da língua francesa, como hotel (hôtel) e telefone (téléphone).

Enfim, a canção nos relata esse momento sublime de alguém que quer receber o seu amor da melhor forma possível, num quarto de hotel com seu ambiente de pequenos luxos, e ali realizarem uma dança não só no sentido induzido pelo ritmo da música (um samba-de-gafieira), mas a música da sedução, dando a entender que é um reencontro, de muitos que já ocorreram entre eles, inclusive na situação pretérita à separação da mulher, mostrando que ambos se enamoravam ainda quando ela carregava a condição de casada (Com certeza esqueceste que és / Que és uma senhora).

Exatamente por isso achei possível a conexão entre essa música e Olhos nos Olhos, dentro do contexto da narrativa na qual me propus a expor em linguagem teatral. Ela seria a continuidade da nova fase anunciada pela mulher que se mostrava refeita após a separação – na verdade ela vinha se refazendo muito antes disso –, e o encontro após ela telefonar para François (a personagem por mim criada) a fim de que pudessem reviver, mais uma vez, aqueles encontros em tardes de outrora no Grande Hotel.

O toque de vigor da canção está no jogo de sedução do casal, notadamente por parte dela, agindo com ares de atriz, ao ensaiar a retirada após ficarem juntos ali naquele quarto (E apaga a luz ao sair), realizando um retorno triunfal e proposital após curto intervalo (Quando eu pensava em dormir / Tu chegas vestida de negro / Vens decidida a bulir / Com quem está posto em sossego). Daí a possibilidade, nessa minha tentativa de costurar as duas canções (Olhos nos Olhos e Grande Hotel) numa linguagem de dramaturgia, de o segundo ato dessa imaginada peça teatral se resumir à própria música, entoada por François, pois ali se tem toda a cena apta a mostrar que ele sempre foi “da plateia”, aquele que admira toda a atuação de sua amada, sempre disposto a mudar de ideia: de espectador para atuante na cena da dança do amor em ritmo de gafieira.

disco Das Neves

Ô SORTE!
(Uma homenagem a Wilson das Neves)

O carioca Wilson das Neves inaugurou a vida em 14 de junho de 1936, mas para nossa tristeza, saiu de cena em 26 de agosto de 2017, com 81 anos de vida recém-completados. O disco Caravanas, do Chico, acabava de ser lançado, anunciando uma provável turnê desse trabalho, que de fato ocorreu a partir de dezembro daquele ano.

No show, antes de cantar Grande Hotel, Chico lança essas palavras: “ele nos acompanhou por mais de trinta anos, em tantas viagens, tantos camarins, tantos palcos, tantos momentos felizes… este show é dedicado a Wilson das Neves. A benção, Das Neves!

A turnê Caravanas teve início em 13 de dezembro de 2017, no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, e findou em 22 de setembro de 2018, no Centro de Eventos do Ceará, em Fortaleza.

Wilson das Neves integrava a equipe musical do Chico desde 1982, quando começou a acompanhá-lo. O primeiro registro como músico da banda consta no disco de 1984 (Chico Buarque é o nome do álbum, embora seja mais conhecido como Vai Passar, por ser uma das faixas mais festejadas do disco). Cantaram juntos Tereza da Praia (Tom Jobim – Billy Blanco) e Sou Eu (Ivan Lins – Chico Buarque) na turnê do show Chico (novembro de 2011 a maio de 2012, e registro feito em CD e DVD com o nome Na Carreira, Biscoito Fino, 2012).

Músico respeitadíssimo, estreou como cantor em 1996, com o disco O som sagrado de Wilson das Neves, e ali consta exatamente a música Grande Hotel, primeira parceria com Chico Buarque.

capa CD O SOM SAGRADO DE WILSON DAS NEVES

contra capa CD O SOM SAGRADO DE WILSON DAS NEVES

Outra parceria de Das Neves com o Chico é Samba para o João, que integra o álbum Se me chamar, ô sorte (2013). Aliás, esse “ô sorte!” era o mais conhecido de seus bordões, embora por ele não tenha sido talhado; na verdade, o sambista Roberto Ribeiro assim falou ao descobrir que Wilson das Neves também era torcedor da Escola de Samba Império Serrano. Mas o fato é que “ô sorte!” virou marca registrada de Das Neves, mesmo com outras frases engraçadas que construiu ao longo da vida e que foram fundamentais para alegrar os amigos.

Wilson das Neves era esse baterista, cantor e compositor que emprestou o brilho de sua batida certeira nos instrumentos não só a gigantes da música brasileira como Tom Jobim, Caetano Veloso, João Bosco, Gilberto Gil, Carlos Lyra, Ney Matogrosso, mas também a estrelas internacionais como Sarah Vaughan, Michel Legrand e Sean Lennon.

Quando Wilson das Neves entrou no estúdio de gravação do álbum Chico, de 2011, a fim de integrar um dueto para a interpretação de Sou Eu (Ivan Lins – Chico Buarque), mereceu a observação do atento produtor musical Vinicius França: “voz limpinha, tá um rouxinol, hem!”. A cena consta no documentário Dia Voa, reveladora dos bastidores desse álbum. Ali também se vê o depoimento do próprio Chico, sobre o registro em disco dessa música: “eu poderia gravar sozinho, mas quando eu falei – não, vamos chamar o Wilson das Neves! – parece que deu um colorido novo para a música… eu não queria deixar esse samba de fora, eu adoro esse samba… adorei o Das Neves lá, e ele entrou naturalmente no samba com a maneira dele de cantar, a divisão dele, variação melódica também, tomou as liberdades dele…”.

Pois é… Wilson das Neves, que criou o bordão “eu tenho tudo, porque não quero nada”, teve de fato tudo; o reconhecimento de sua arte, a possibilidade de se expressar em sua mais legítima morada lírica – o samba – ao lado de tantos talentos, fazendo parte da trajetória do Chico, como músico e parceiro, em gravações em estúdios e nos shows ao vivo. O mesmo Chico que não somente percorreu toda a turnê Caravanas em sua homenagem, como também colocou seu chapéu durante a interpretação de Grande Hotel. O recado foi evidente. Chico não só tirou o chapéu para o Das Neves; ele incorporou na alma a grandeza desse espetacular artista. Ô sorte!

Das Neves e Chico

 

AS VITRINES

BRINCANDO, GOSTANDO DE SER

Essa é daquelas lembranças cujo esquecimento desconhece. Alguns de nós estávamos lá boquiabertos, com nossos sentidos munidos de aplausos arrebatados, compondo o mais que respeitável público. Como o descortinar de um palco que revela grandioso elenco, surge em 1981, Almanaque; disco de Chico Buarque.

O deslumbramento começa ao observar aquela capa, em seu recado para muito além do estético, a pautar os anos 1980; estávamos saindo dos psicodélicos anos 1970 com suas luzes e discotecas, a roupa espalhafatosa, calça de barra alargada, cabelos longos, medalhões pendurados no peito. A colorida década de 70 refletia o momento da pós-euforia gerada pela libertação em movimentos políticos e culturais dos anos 1960, retratada pela simbologia dos hippies.

Por lá, final dos anos 1970 e início dos 1980, a plataforma veiculadora da música era o disco de vinil, sucedido nos anos 1990 pelo CD (compact disc), chegando por aqui com o streaming de agora. Assim, a pretensão de ouvir determinada música, antecedia uma prática ritualística, já que qualquer descuido afetaria a vida útil do disco.

Era preciso colocar com cuidado a agulha da vitrola por sobre os sulcos que formavam aquela prensa de acetato, a chamada bolacha ou LP. A sigla refere-se à expressão long play, para diferenciar do compacto simples – disco de vinil com somente uma ou duas músicas de cada lado –, geralmente vendido como prévia antes do lançamento do LP.

O gesto brusco perpetuaria ali uma ranhura, deixando o objeto marcado feito um dorso para sempre tatuado, uma linha, que assim como as linhas das mãos, traça um destino, neste caso, o da inutilidade do disco, tornando-o inaudível. A bolacha, de doce, passaria a amarga.

bolacha almanaque 2

Um long play era, de certo modo, um artigo de luxo, sendo sua aquisição natural para poucos, deleite para alguns, e sonho para tantos. Quando se lançava um vinil no mercado, os que podiam comprar, após a aquisição na loja, caminhavam em direção à casa, antevendo a tarde que seria de descobertas de novas músicas.

Enquanto o disco tocava na vitrola, acompanhava-se tudo pelo encarte, tanto as letras das canções quanto elementos sobre a gravação: direção, produção, arranjos, músicos… O devoto do LP ficava ali enredado na música tocada no aparelho de som, mas também no manuseio do encarte e na leitura daquelas informações. O degustar da bolacha era enfim, uma experiência sensorial tripartida entre o tato, a visão e, claro, a audição; especialmente saborosa, mas bem abstraída do paladar.

vitrola anos 1980 1

De início, há aqui dois convites de embarque, o da saudade e outro da vontade. Ao leitor que experimentou essa época, concede-se uma viagem no tempo rumo à lembrança. Naquele que não a vivenciou, conceba-se um vagão que transita no espaço etéreo, o da imaginação. Em seguida iremos à trilha de uma música concomitantemente nostálgica e moderna, daí algo de seu magnetismo. Permita-se, e boa estada.

Chico Buarque, o mesmo que revelou seu universo de arte ao Brasil nos anos 1960 com o sucesso de A Banda (1966), fortalecido pelo teor de lucidez de suas músicas nos doídos anos 1970 da repressão política e social no período militar, chegava aos insondáveis anos 1980, sem se saber o que viria.

Porém, como artista sempre à frente de seu tempo, Chico já apontava, em seu disco Vida (1980), a primeira escavação nesse túnel da modernidade em ritmos de uma música brasileira que parecia clamar por uma sofisticação – até por homenagem a Tom Jobim – e ao mesmo tempo de uma sinceridade cotidiana quanto às letras. Tínhamos ali o preservar da felicidade em tempos difíceis (Vida), a diferença entre iguais no amor (Mar e Lua), a troça no salão de gafieira regado a suores e embebido em ciúmes (Deixe a Menina), dentre outras percepções de um Brasil autêntico naquele disco inaugurando a década de oitenta.

Eis que chega, logo após Vida (1980), o disco Almanaque (1981). Imaginemos essa cadência. Apreciar o trabalho da arte de capa feita por Elifas Andreato, colher o long play de sua zelosa capa, ler o encarte recheado de informações, ironias e preciosidades, tudo bem bolado pelo próprio Chico Buarque, juntamente com Elifas, além de desenhos do caricaturista Miercio Caffé.

Antes mesmo de entregar o disco à vitrola, num silêncio preparatório do que viria, convém consumir um deleitoso tempo a fuçar tantos detalhes naquele trabalho valioso, nos deixando levar a um cenário de feitura dos almanaques, como ali mesmo consta, um “Magazine Annual Ilustrado” e suas informações, anedotas, ilustrações e charadas, além do calendário de 1982, encimado com os olhos cor de ardósia do artista.

capa almaque FRENTE

encarte ALMANAQUE com as vitrines

encarte ALMANAQUE do ouitro lado com miele caffe

Depois de percorrer esse caminho, seja com os pés no chão da memória, seja com a cabeça aérea da ilusão, é o momento de sacar a bolacha preta de seu armazenamento de proteção que faz um barulho bem característico, quase como quem abre um bombom e o plástico farfalha numa previsão de gula. Com cuidado se coloca o LP entre as mãos esticadas, comprimindo somente as laterais, para não manchar com os dedos os caminhos circulares do que se transformará em som. E… pronto! Disco pousado no centro do prato que começa a girar, o braço da agulha é movimentado, dando início à viagem pelo novo disco do Chico.

Se a surpresa fosse gente, aquilo seria a sua voz. Um susto sonoro, isso foi o que me marcou no início de As Vitrines, a primeira música do LADO A do LP. Eu não consegui identificar aquele estranho som. Foi como se estivesse diante o mar que lá vinha crescente e inevitável engolir minha base para recuar me chamando. Era o anúncio da gama de cadências musicais por vir. Algo rápido, como o rasante de um avião rompendo qualquer barreira de som a preparar os tímpanos. Não sei o que era aquilo, um misto de cortinas abrindo (essa foi a imagem que me veio), o anúncio de uma história como se faz num filme (o famoso rufar de tambores e sopros nas aberturas de filmes da 20th Century Fox também passeou pela minha cabeça).

Era especial demais para ser descrito como um som não identificado, rápido e certeiro. Mas poderia ser simplesmente como a onda, crescente e depois decrescente, que assim compõe a imensidão do oceano inteiro. O encarte me diz que o efeito sonoro veio de um sintetizador utilizado nos anos 1970, chamado de mini-moog, operado por Zé Roberto Bertrami. Curiosamente esse sintetizador foi produzido somente até o ano de 1981, justamente o do lançamento do disco.

Então essa introdução representa o fecho de uma época, a dos anos 1970. Era o anúncio dos anos 1980 que finalmente chegava, não somente com a novidade do estilo musical, mas com o formato totalmente inusitado, e assim era a nova década anunciada já na primeira música: As Vitrines.

Após essa introdução atípica, desse elemento sonoro do mini-moog, surge a voz do Chico, de uma evidente calma: “Eu te vejo sumir por aí”… adornada pelo baixo de Novelli e a bateria de Paulinho Braga, depois o marcante violão de Hélio Capucci, mais adiante a guitarra de Hélio Delmiro, tudo entremeado pela percussão de Sidinho Moreira, e ao fundo a maravilha de cordas de vários músicos (identificados abaixo na imagem); além do luxo do piano de Francis Hime, responsável pelos arranjos da música.

cordas em AS VITRINES

“Te avisei que a cidade era um vão”… é a continuação de um passeio imprevisível, pois logo após se desenha aparente diálogo ou advertência sem qualquer retorno. Os travessões na letra da música indicavam que de fato alguém estava a falar “-Dá tua mão / -Olha pra mim / -Não faz assim / -Não vai lá não”. Eu já não sabia se a súplica era de um ou de vários, àquela destinatária da letra… ou ainda daquela que inspirara tudo, ao seu vigia, na tentativa de desarmar seu ciúme. Era um início musical no mínimo desconcertante, de estética lírica surpreendente.

Considerando a realidade dos anos 1980 e de certas expressões utilizadas naquele contexto, me parecia que o homem dizia à mulher que não deveria ela ir ao centro da cidade, avisada das armadilhas e assédios. Tais versos com travessões indicariam outros homens dizendo a ela, quando de sua passagem pelo vão no qual seu homem a viu sumir… ele a acompanhando de longe sem ela saber, andando pelas calçadas, quando de repente a mulher ingressa num desses vãos: uma galeria.

galeria menescal luzes e vitrine

“Os letreiros a te colorir / Embaraçam a minha visão”. Aparecem os letreiros a colorir aquela a quem se olha, e a partir daí tudo se desenvolve entre corredores, vãos, vitrines, elementos de uma típica galeria do Rio de Janeiro. A galeria era a antecessora do shopping center.

“Eu te vi suspirar de aflição / E sair da sessão, frouxa de rir”. A meu ver, a sessão da qual ela saía não era a de cinema, e sim de terapia. É pouco provável que a palavra sessão diga respeito a um filme; geralmente as galerias só têm lojas, e em cima delas, um prédio com salas comerciais e escritórios, cujo acesso se dá por escadas e elevadores, dentro da galeria. Nos anos 1980, época da feitura da canção, se falava muito em sessão, quando alguém se referia à sessão de terapia. Atualmente se fala só terapia, mas isso é hábito de pouco tempo para cá.

O fato de ela estar aflita, antes de falar com o psicólogo ou psicanalista, e depois sair aliviada, parece encaixar na cena do voyeur que a acompanha e a observa, ela agoniada se dirigindo para o setor de salas e escritórios, pelo elevador ou escadas, ele aguarda, e após a sessão, percebe quando ela retorna à galeria.

Aos olhos dele ela deveria parecer apenas tranquila e serena após sua “análise”, mas ela está um pouco mais do que isso, frouxa de rir… talvez pelo prazer que experimentasse ali, talvez pela sensação de ter corrido tudo como planejado, já que ela teoricamente desconhecia o maior deleite de seu vigia.

já te vejo brincando - AS VITRINES

A música então dá uma guinada, não somente melódica, mas no estilo dos versos, e esses novos que se anunciavam, ficariam em mim, desde a primeira escuta, como os mais marcantes e representativos de algo diferente naquela canção: “Já te vejo brincando, gostando de ser / Tua sombra a se multiplicar”… nesse instante, a música assume outro tom, parte para outro caminho musical, diferente do pautado até então na canção. A sombra que se multiplica é decorrente das luzes vindas das vitrines, a parte mais iluminada da galeria, mas é possível identificar nesse verso a multiplicidade da personalidade da mulher, com suas diversas formas de agir, na oscilação do humor: suspirando de aflição – frouxa de rir. Aquele lado dela, que a princípio estava escondido dele, nas sombras, acabara de se desdobrar para mais uma vez satisfazê-la e cismá-lo.

“Nos teus olhos também posso ver / As vitrines te vendo passar”… como é possível ver nos olhos de alguém as vitrines vendo essa pessoa passar? Seria um flerte consigo, ou ainda entre aqueles que apelidaram seus olhos de vitrines, espaço por onde se expõe e oferta algo? Sim, nesse caso os sentimentos, já que os olhos não mentem. Estariam aqueles ali, efusivos, como vitrines abarrotadas, aguardando pela reciprocidade. Os olhos que saíram de casa opacos, agora brilhavam?

Fato é, que quando ouvi pela primeira vez esses versos musicados, com eles me identifiquei. Em meus anos de adolescência e timidez, descobri uma estratégia para admirar a beleza feminina. Posicionava-me em frente a uma vitrine, por fora da loja, porque ao lado estava a moça a investigar com os olhos o interior daquele ambiente, visualizando bolsas, sapatos, vestidos; assim eu podia, com calma, olhar o vidro e seu reflexo, deslumbrar-me sem precisar encará-la de frente. Muitas vezes, nessa minha inocente mirada para as vitrines – quando na verdade estava a enriquecer meu olhar com a moça ali tão próxima –, percebia em seu olhar que algo mais a olhava: as vitrines.

Sentia certo ciúme, porque o objeto inanimado e transparente podia encará-la de frente, eu não. Ainda assim, essa frustração não era suficiente para abandonar minha timidez e girar meu pescoço para captar seu perfil. As vitrines sempre ganhavam de mim, eu tinha que me conformar com isso. Aliás, essa é a finalidade das vitrines: vencer. Ao expor de maneira atrativa o que se pode comprar dentro do estabelecimento, surge ali uma espécie de chamada para levar o cliente em potencial ao interior do comércio.

A galeria é uma emboscada a desacelerar o passo apertado do transeunte, e dentro dela outras arapucas surgirão: as vitrines. Elas enxergam quem passa e capturam qualquer um para seu mundo. Chico coloca o artefato como referência maior da canção, não é à toa que o título da música é exatamente o nome do espelhado ser. As vitrines representam um salto em termos de narcisismo.

galeria menescal vitrines bem iluminadas

O Mito de Narciso, por demais conhecido, vem do personagem da mitologia grega que representa o símbolo da vaidade. A lenda fala do belo grego, orientado pelos oráculos a não admirar a própria beleza, sob pena de se ver amaldiçoado, mas isso não evitou que ele se apaixonasse pela própria imagem, ao vê-la refletida no lago. Com a invenção do espelho, esse narcisismo surge na humanidade como segundo salto, pois todos nós passamos a desenvolver nossas vaidades sem limites, a partir da facilidade de nos ver em acessíveis reflexos.

Além disso, observou Fernando Pessoa pela voz de Bernardo Soares no Livro do Desassossego, deixamo-nos de nos curvar para olhar nossa imagem no lago (tal Narciso) e a soberba nos apoderou de vez. Diz o poeta: “O homem não deve poder ver a sua própria cara. Isso é o que há de mais terrível. A Natureza deu-lhe o dom de não a poder ver, assim como de não poder fitar os seus próprios olhos. Só na água dos rios e dos lagos ele podia fitar seu rosto. E a postura, mesmo, que tinha de tomar, era simbólica. Tinha de se curvar, de se baixar para cometer a ignomínia de se ver. O criador do espelho envenenou a alma humana”.

O terceiro salto do narcisismo se dá com as vitrines, pois elas de fato captam o narcisista ao interior do local que serviu de atração (a loja comercial), e refletem a possibilidade de decompor o instinto meramente vaidoso em algo perigoso, por induzir ao consumo desnecessário, transformando a admiração em autoconsumação do inútil.

Primeiro foi a lição de humildade dada pela natureza (para se ver no lago, se curve), depois veio a invenção do espelho a espalhar no dia-a-dia a empáfia da vaidade.

As vitrines nos deslocam da realidade, tornamo-nos presas fácil de sensações exteriores (o clarão do interior da loja, os letreiros coloridos, as mercadorias dentro do estabelecimento), deixamos de observar o outro e a nós mesmos, elegendo como valor maior os objetos, as coisas.

galeria menescal noite vista de fora

“Na galeria / Cada clarão / É como um dia depois de outro dia / Abrindo um salão”. Eu logo entendi a referência à galeria na canção, como sendo o cenário no qual tudo se desenvolve, porque na minha cidade, Fortaleza, também havia essa espécie de corredor ou passagem que une uma rua a outra, por dentro de prédios e lojas comerciais. As pessoas escolhiam o atalho para chegar mais rápido ao seu destino; todavia, pelo desenho desse verdadeiro passeio público coberto, estreito, pouco iluminado, restavam as luzes das lojas que se enfileiravam por todo seu trajeto, com as vitrines coloridas e letreiros de neon.

Era justamente por isso que muitos esqueciam a pressa, entravam nas lojas e faziam compras. Cada clarão da loja funcionava como um dia depois de outro dia. A armadilha era certeira. Uma teia enredando o andarilho que, de repente, se torna um consumidor de coisas que talvez nem precise. Abria-se o salão da loja, para receber quem pelos corredores passasse.

“Passas em exposição / Passas sem ver teu vigia / Catando a poesia / Que entornas no chão”. Especificamente essa história, gosto de imaginá-la na Galeria Menescal, em Copacabana, por sua simetria e imponência, corredores e vãos a mostrar um tempo que ficou parado no tempo, com elegância e beleza, tal aquela que passa em exposição, a caminhar e roubar a atenção de todos que ali também passeiam.

Ela brinca com os reflexos da própria imagem ao passar pelas lojas, se olhando e adorando o que vê. Enquanto as vitrines a veem passar, ela se dá conta daquele momento despretensioso e feliz. Se antes ela se angustiava com os olhares de quem a acompanhava, agora ela brinca, exalando toda a poesia de sua liberdade e autenticidade. Ela imagina a cena, mas está leve, não se importando com quem venha a colher sua poesia. Aos olhos dele, ela agora carrega um viço curioso, além dos olhos brilhando, a pele radiante; admirá-la é inevitável.

A poesia ela entorna, tão plena em si, que seu pote interno da líquida felicidade transborda, está tudo ali a ficar no caminho, como matéria da qual se fará poema e canção. Ela sequer olha o vigia, mas adora que ele procure de toda maneira captar o momento, já que é um vedor incansável. Nesse instante ela percebe o sentido de tudo. As vitrines, na sua verticalidade de espelho, fazem escorrer as imagens, mas o chão é horizontal, e ali fica a poça da poesia que transbordou.

Saber que o vigia cata a poesia é um aceno para a provável vitória do lirismo por sobre o narcisismo, nesse seu terceiro estágio da prevalência das coisas em relação aos sentimentos. A vitrine a vê passar, chama-a para o interior da loja, confia em seu poder de sedução para que ela se renda aos atrativos materiais. Todavia, ainda que ela assim o faça, o mais importante ocorrerá na galeria. O vigia a vê, recolhe a poesia, que toma nova feição, a de cantiga, cujo título será a advertência para tomarmos cuidado com o tal objeto envidraçado por detrás do qual se expõem mercadorias.

A melhor maneira de interagir com as vitrines é brincando e vendo nossa sombra a se multiplicar; gostando de ser, enfim, nada além de nós mesmos.

galeria menescal dentro

As Vitrines

 Chico Buarque/1981

Eu te vejo sair por aí
Te avisei que a cidade era um vão
-Dá tua mão
-Olha pra mim
-Não faz assim
-Não vai lá não

Os letreiros a te colorir
Embaraçam a minha visão
Eu te vi suspirar de aflição
E sair da sessão, frouxa de rir

Já te vejo brincando, gostando de ser
Tua sombra a se multiplicar
Nos teus olhos também posso ver
As vitrines te vendo passar

Na galeria
Cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão

SAIR? SUMIR…

“Eu te vejo sair por aí”. Esse é o verso inicial, que consta não somente nos encartes do vinil e do CD, mas no próprio site oficial do Chico (chicobuarque.com.br). Entretanto, em todas as gravações, seja a original em estúdio (1981, no disco Almanaque), seja em show – e foram várias com a inserção de As Vitrines –, Chico jamais falou sair, e sim sumir.

Confesso não ter conseguido, em pesquisas, saber o porquê dessa divergência entre a letra original (sair) e o que Chico resolveu cantar (sumir).

letra de AS VITRINES no site CHICO

Mas acredito que, se Chico decidiu entoar sumir, essa é a palavra que revela seu sentimento ao cantar. Eu só penso em Fernando Pessoa, pronto para ir à gráfica com seus poemas datilografados (o antecessor de “digitados”) e, de repente o Poeta resolve dar outro nome, ou mudar palavras em versos, que assim ficaram ali, registrados os ajustes à mão, em tinta de caneta, gerando até discrepâncias em publicações ao longo do tempo. Entretanto, algumas mudanças foram decisivas para termos o que conhecemos hoje de sua obra. Por exemplo, o famoso poema Tabacaria, se chamava Marcha para a Derrota, ajustado a caneta quando já pronto. Da mesma forma foi com seu único livro publicado em vida, Mensagem, cujo título datilografado era Portugal.

No caso de As Vitrines, ao falar em “Eu te vejo sumir por aí”, a ação que se desenvolve na música já nos leva para um cenário no qual ela está caminhando na rua, o vedor, o vigia, acompanhando à distância, abruptamente ela dá uma guinada na galeria (quem vem andando pela calçada não consegue ver de longe a entrada da galeria), e, portanto, ela “some”.

Caso o verso fosse “Eu te vejo sair por aí”, isso nos remeteria a um cenário no qual ela estaria saindo de casa, o início da música seria nesse contexto; quando, na verdade, tudo indica que ele já estaria seguindo a mulher, que saiu de casa e está a caminhar pelas ruas, quando inesperadamente adentra o vão da galeria.

galeria menescal vista da rua

AS MUITAS VITRINES

Lembro demais daquele dia em que ouvi, atônito, pela primeira vez, As Vitrines. É uma sensação perene, repetitiva.  Desde o mini-moog na introdução fiquei atento, para entender toda a história.

Eu testemunhava naquele instante algo de novo na música brasileira, nos estreantes anos 1980, e nem imaginava, nos meus 17 anos de idade, que estava diante de uma das músicas mais enigmáticas e perenes, em termos atemporais, da obra do Chico.

Não é à toa que As Vitrines foi por ele interpretada em diversos shows, com o registro em CD e/ou DVD (Ao vivo em Paris – Le Zenith, 1990; As Cidades ao vivo, 1999; Carioca ao vivo, 2007; e Caravanas ao vivo, 2018).

 O ANAGRAMA

Ao observarmos o encarte do vinil – e também do CD – do álbum Almanaque, veremos o belo trabalho de arte a mostrar a letra de As Vitrines, contendo um espelhamento, com a colocação de todo o poema musicado em quatro ângulos de visão, como se houvesse ali uma vitrine que refletisse as palavras, a constar em seu sentido inverso. O curioso, porém, é que numa dessas projeções, Chico não se limita ao espelhamento.

LETRA AS VITRINES do encarte com ESPELHAMENTO E ANAGRAMA

“Vi tuas fúrias e predileção”. Você não encontrará esse verso na música. Na verdade, ele está em “Eu te vi suspirar de aflição”, só que de maneira transposta. É um anagrama feito pelo Chico, a partir da segunda estrofe, como se fosse outra música.

Anagrama, segundo o Dicionário Houaiss, é a transposição de letras de palavra ou frase para formar outra palavra ou frase diferente. Então com as letras do verso Eu te vi suspirar de aflição, Chico forma outro, utilizando cada letra dali, montando o verso Ler os letreiros aí troco.

Algum significado se pode extrair dessa transposição? Bem, o próprio Chico, em entrevista, ao ser indagado sobre esse anagrama, disse que tudo não passou de uma brincadeira; na verdade os novos versos não teriam qualquer sentido aparente.

Retirado do site chicobuarque.com.br
Retirado do site chicobuarque.com.br

OUTRAS VITRINES

A revisora dos textos deste blog, Laura dos Santos Teixeira Dias, tão logo encerrou o trabalho de revisão de AS VITRINES, falou-me de ter escrito há algum tempo um texto sobre o anagrama da música, pois aquele jogo de letras e palavras construído pelo Chico sempre lhe chamou a atenção.

Pedi para ver o material. Fiquei absolutamente surpreso. Eu jamais imaginaria interpretação inusitadamente complexa e certeira como aquela.

E mesmo sendo surpreendente, a narrativa faz todo o sentido em relação ao enredo da canção e seu anagrama, por isso solicitei autorização para publicar neste espaço.

Agradeço à Laura Dias por ceder seu texto para publicação, riquíssimo em estilo e no domínio da língua portuguesa, além de extraordinário em seu conteúdo, a reafirmar as inesgotáveis possibilidades de interpretação quanto à obra musical de Chico Buarque, cuja preciosidade se comprova em ofícios literários como esse.

É um presente para as leitoras e os leitores do blog; as buarqueanas e os buarqueanos certamente merecem.

anagrama de AS VITRINES do encarte

VITRINE ADENTRO

Laura dos Santos Teixeira Dias

Eu vi o sorriso do artista nos olhos do homem, e ouvi um menino fazendo arte. Chico cantou!

Elas estavam ali esparrodadas, como se fossem eu numa rede, todas as letras numa teia, tão bem dispostas. A leitura do anagrama era um caminho que dava gosto de percorrer, por vezes amargo pela amargura do ciúme… um labirinto apenas. Suas palavras em idiomas diversos eram os quadros, sem os quais não se têm as paredes, cujas traduções comungavam concomitantemente do pulso cardíaco e do cerebral. De fato! Algo da psicologia…

Por vezes, o que as vitrines nos ofertam, é um pouco de nós. Sim, só um pouco; do lado de cá nos espelhando, e do lado de dentro nos revelando, mas também nos escondendo. E essa é a graça do que se passa, ainda do que nem sempre se sabe.

O anagrama de As Vitrines é tão leal à própria forma, que parece transportar e transbordar a palavra, a fim de manter seu conteúdo fiel à mente do catador de poesia, que na letra, canta o que sente, enquanto no espelhamento, evade do que pensa. Se o eu lírico de As Vitrines com seu anagrama é poliglota, eu não sei, mas quem dá voz a ele, bem como quem possa ter inspirado a personagem, acredito que seja.

Ele que a vê sair e sumir… suspirar, rir e brincar. Ele que acredita deduzir do que ela está gostando. Ele da visão por vezes embaraçada. Ele que enxerga quem a vê, através dos olhos dela. Ele, pobre de si, antes de perder-se dela, perdeu-se de amor.

Eu fico cá a pensar que, aos olhos dele, assim feito ela, é a letra da música. Ambas brincando de encontrar, esconder e revelar, não muito (claro que não), mas algo de si, em seus reflexos, sombras e afins, sendo o anagrama as entrelinhas da letra; o primeiro aquilo que se pensa, a segunda aquilo que se diz. Expondo tanta conjectura, realmente não sei se:

Ao tentar decifrá-la
ele se confundia
e se punha a chorar copiosamente.
Ele a viu ceder de cabeça quente,
àquilo que preferia
desajustada, mas
certa do que fazia.
Ela ditava o próximo passo
daquele que a seguia
acreditando que o frescor da noite
a devolveria.
Ele com sua venda
sempre a postos a lhe dizer:
Não foi nada!
Protegendo-o, não do clarão,
mas da clareza,
remontando sua família.
Ele se pergunta com quem
se parecem as suas crias.
Eu me pergunto se a poesia derramada
catada pelo vigia,
era a que o doutor doido, a ela
ainda a pouco cedia.
Então aquele que não usurpou
mas ocupou o seu lugar
agora estaria saciado.
Era o prazer dos adultos
feito o brinquedo é para as crianças,
voando até as estrelas.
Ele a via levitando lasciva
dissimulada, dirigia-se a guerra
vestida de saias.

Enquanto isso fico aqui acordada
com quem estaria sonhando.
Haja, mas…
viva a fantasia
refletida nas vitrines
duma galeria.

Enfim, vasculhando minhas memórias, imaginei que se Machado de Assis viajasse no tempo, ele me diria que ela é Capitu, e seu analista é Escobar. Sendo então o eu lírico de As Vitrines, Bentinho! Ele, aquele que ao tentar conter a mulher, teria sido alertado por ela em suas falas carinhosas e compreensivas diante o ciúme do marido, o Dom Casmurro. Um Bento envelhecido, recluso e introspectivo, mas acima de tudo, teimoso:

-Dá tua mão
-Olha pra mim
-Não faz assim
-Não vai lá não

Por vezes me pergunto se foi exatamente como se deu: primeiro ela saiu, mas depois sumiu, e permanece assim, como ainda se canta.

Foto Leo Aversa
Foto Leo Aversa

A TÍTULO DE CURIOSIDADE, APÓS A LEITURA DO TEXTO
DE LAURA DOS SANTOS TEIXEIRA DIAS

O anagrama:

Ler os letreiros aí troco
Embaçam a visão marinha
Vi tuas fúrias e predileção
Errar sisuda, sã fora de eixos

Doce vento, grandes beijos do jantar
Um militar saber tuas polcas
Bem postos meus veros antolhos
Patavinas, sorvetes, diners

Na alegria
A cara do clã
Um doutor doido me cedia poesia
Um absalão rindo
Pião, sexo, asa, espaço
És súpita virgem avessa
A asteca do piano
Quão sonha no center

Eis os versos da letra da canção, com seus respectivos anagramas, destacados em itálico.

Os letreiros a te colorir
Ler os letreiros aí troco

Embaraçam a minha visão
Embaçam a visão marinha

Eu te vi suspirar de aflição
Vi tuas fúrias e predileção

E sair da sessão, frouxa de rir
Errar sisuda, sã fora de eixos

Já te vejo brincando, gostando de ser
Doce vento, grandes beijos do jantar

Tua sombra a se multiplicar
Um militar saber tuas polcas

Nos teus olhos também posso ver
Bem postos meus veros antolhos

As vitrines te vendo passar
Patavinas, sorvetes, diners

Na galeria
Na alegria

Cada clarão
A cara do clã

É como um dia depois de outro dia
Um doutor doido me cedia poesia

Abrindo um salão
Um absalão rindo

Passas em exposição
Pião, sexo, asa, espaço

Passas sem ver teu vigia
És súpita virgem avessa

Catando a poesia
A asteca do piano

Que entornas no chão
Quão sonha no center

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DUETO

el tres de mayo 2

Seja pelo espectro da tela original no Museu do Prado em Madrid, seja pela reprodução de sua imagem, quem se vê diante de El Tres de Mayo (1808), de Francisco de Goya, tem sua atenção voltada para o homem de veste branca. Seu olhar de desespero e súplica, de quem antevê a dor e a morte, não fixa nossa mirada.

O que ali nos leva a concentrar nossa aflição é a curiosa geometria de seus braços suspensos. Eles não estão erguidos em linha vertical; há um ângulo de intensa simbologia, as mãos espalmadas, uma luz a ressaltar a estética do possível movimento estático do medo.

Seus braços abertos refletem a reação do desarmado que não ataca nem revida, de quem pede trégua ou clama aos céus por um milagre, mesclando dignidade e coragem; o vértice entre eles é o coração, marco maior do amor.

Embora outras cenas se mostrem pavorosas – homens quedados ao chão amparados em poças de sangue, outros futuros cadáveres com mãos nos rostos a evitar o testemunho do próprio fim, soldados enfileirados com suas armas apontadas anunciando novos estampidos –, ainda assim, o que nos monopoliza em atenção é o homem vestindo a cor que simboliza a paz.

Nem mesmo seu desafortunado vizinho, com o olhar perdido de pavor, ou o padre que esquece o firmamento e reúne forças para rezar pelos mortos aos seus pés, ciente de que será também um deles, nenhuma dessas cenas laterais é suficiente para nos desviar o olhar daquela luz central de quem, num gesto, entra para a eternidade da pintura.

O quadro de Goya retrata a insurreição contra a tirania, ao mostrar o fuzilamento de cidadãos espanhóis, por terem se rebelado contra a ocupação francesa realizada por Napoleão Bonaparte entre 1808 e 1814.

Cento e cinquenta anos depois, o artista britânico Gerald Holtom, ao pousar os olhos nesse quadro, concebeu um símbolo para retratar de modo simplificado esse cenário de destruição e morte.

O ano era 1958, o trauma da Segunda Guerra Mundial pairava por sobre a Europa, havia o temor da construção de armas nucleares. Aquele movimento e postura da personagem de Goya, o levou a imaginar uma figura em sentido contrário. Ao invés do desenho em “V”, o esboço seria como se um boneco de palito “plantasse bananeira”. Sim! Com os braços para baixo e as mãos dilatadas ao chão; por que não?

A agonia e o desespero retratados por Goya, a nos instigar sobre a necessidade na transmutação do amor e da paz, agora sendo ambos os pilares dos quais se pode pensar numa sociedade humana de fato humanizada. Inicialmente numa posição que retrata onde se almeja chegar, para dali então, partir em caminho ascendente.

Assim surgiu o conhecido emblema, tão propagado dos anos 1960 até aqui, mesmo desacompanhado de qualquer legenda – peace and love (paz e amor) – era justamente essa a mensagem que ele transmitia, em tantas maneiras pelas quais a imagem viajou o mundo; pichações, cartazes, camisetas, pinturas, desenhos os mais variados.

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Também aos anos 1960, com a contagiante cultura hippie em sua simbologia de refutar qualquer tipo de violência, difundindo o amor e paz em músicas, gestos, atitudes, cores vibrantes e a liberdade dos cabelos soltos, rapidamente se incorporou mais uma expressão para esse lema: a mão fechada com os dedos indicador e médio estendidos, formando o sinal de “V”.

Depois da figura de Goya, cujo vértice é o coração, reavivada pela de Holtom, na qual o céu é o limite, temos em dois dedos, um dueto!

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E assim paz e amor percorreram a mesma trajetória, ainda que nem sempre contagiante, suplicando que se “faça amor, não faça guerra”, destituindo o duelo em nome desse dueto, alcançando já aqui, dois a entoar uma canção na qual entregam: “serás, amor, a minha paz”.

Vamos então a esse amor universal, o maior e mais forte, superior ao próprio destino, seja numa abstração formada de crenças, ou por um determinismo moldado nas ciências.

A valsa composta por Chico Buarque em 1979, para dois executantes – daí ser um dueto –, nos conduz a um diálogo entre os que se amam, cada um, certo de que o destino deles é o amor e a paz.

Ela, por acreditar em sinais trazidos por tantas manifestações etéreas e misteriosas, como a astrologia, as predições, mitologia, religião.

Ele, com respaldo em registros escritos: autos, bulas, dogmas, teses, tratados, dados oficiais, tudo convergindo para uma determinação lógica, da ciência, da razão, a indicar o futuro de ambos: em eterno dueto.

São múltiplas as crenças. Embora cada uma tenha suas próprias características, há sempre uma convergência, a do propósito de se cumprir uma destinação de aperfeiçoamento espiritual, de plenitude.

O hinduísmo e o budismo falam do Karma, ou carma, com ciclos de reencarnações gerando retornos à vida com características peculiares, a depender da ação que se faz em vida.

Essas crenças também vêm da astrologia, com os signos a influenciar as condutas, da religião e mitologia africanas com seus búzios e orixás, do catolicismo pautado pelo evangelho, e até das predições vindas de anúncios e espelhos.

A imensa riqueza de emoções adorna a crença de quem enxerga seu amor indicado em cada uma dessas manifestações. Ela confia na intuição, presságios, credos, como numa invisível e sagrada conspiração que ata num laço invisível os dois em busca de ser um só.

jogo de buzios

Em outro modo de compreensão das coisas, há a segurança do registro, da ciência, análise decorrente do conhecimento.

É nisso que ele se agarra, num sutil e inconfessável medo de parecer sensível demais caso se conduza somente pela emoção, daí que busca incessantemente o respaldo em palavras dispostas em narrativas descritivas (autos), em sinais que se prendem a um documento, atestando-lhe a autenticidade (bulas), em doutrinas aceitas de modo indiscutível (dogmas), nos estudos cientificamente construídos (teses), em manifestações de vontade com todos os detalhes (tratados), nos registros confiáveis (dados oficiais).

Ele tem a certeza do amor, mas precisa desse respaldo na razão, e é essa determinação racional que indica a origem e o fim desse amor.

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Dois caminhos aparentemente distintos, porém interligados por um elemento comum às estradas da emoção e da razão, o ponto de chegada. Com a crença ou pela ciência se chega ao que há de vir, ao acontecer, ao futuro. Eis o destino.

Todavia, na sublime interação cantada por esse dueto formado pela emoção e pela razão, há um ponto maior de convergência, superior ao próprio destino. O amor. Eles dizem com a profunda convicção – seja pela crença, seja pela ciência – que, na hipótese de os elementos abstratos do credo ou os registros seguros do que é racional, qualquer um desses dois universos, se a conclusão for a de não realização desse sentimento, então que se dane tudo; pois em dueto, eles afirmam terminantemente: tu serás o meu amor!

Eles passam a se identificar não pelo nome, mas pela palavra amor, para enfim dizerem juntos: “serás, amor, a minha paz”.

Pessoas que se amam, convém lembrar, ao falar em paz como condição do amor, nem sempre se referem ao antagonismo da guerra, embora tenhamos percorrido toda aquela trajetória, da pintura de Goya do século XIX ao movimento peace and love dos anos 1960, para mostrar o dueto simbolizado pelos dois dedos na mão fechada.

Há algo mais, misteriosamente entremeado na emoção das almas tocadas pelo bendito e indescritível sentimento do amor, e que leva à desejada paz.

Nessa corrente imperceptível a unir os amores vividos neste mundo, tão necessários e belos em todas as realizações afetivas de casais na dimensão maior da verdade, heteroafetivas, homoafetivas e quaisquer variáveis, o termo paz não se aponta necessariamente sendo uma não-guerra.

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A paz como desordem, porque geralmente a ordem é ligada à guerra, com as fileiras de soldados em seu determinismo de ataque; enquanto o coração mostra sua paz na bagunça, com o sangue nas veias nas quais os amantes se perdem.

Ainda que entre dois intérpretes, este dueto não é propriamente “entre dois”, porque nada pretende dividir. Aqui isso se trata apenas de um convite: Entre! … Mas entre, ao ponto de não mais se saber a intersecção. Enquanto o amor faz a paz pousar, ela por vezes, o faz voar.

É sobre a fé de onde parte e aonde chega toda ciência; e sobre a ciência, que nenhuma fé jamais desistiu de encontrar. A ideia de um dueto, e este é enfim nada mais nada menos que o título da música, carrega consigo a possibilidade de união plena, isto é, da comunhão; possível quando se tratam de metades.

Há aqui um enraizamento da linha em sua entrelinha, onde quando não se atinge o que está subentendido, nada se alcança, numa espécie de complemento. É o que se diz do amor, que sem a paz, se reduz a paixão; bem como o que se sabe da paz, que sem o amor, se torna solidão.

A paz no amor tem uma razão de ser. Ela põe fim à angústia da espera, dando lugar à caminhada em dueto, a partir dali. Essa é a sensação de quando amores se olham nos olhos um do outro, suspiram, e compreendem que finalmente terão a paz: ela assume, definitivamente, o lugar da aflição da saudade. É o que consta.

SIMBOLO PAZ MULTIDÃO

Dueto

Chico Buarque/1979

Ela:
Consta nos astros
Nos signos
Nos búzios
Eu li num anúncio
Eu vi no espelho
Tá lá no evangelho
Garantem os orixás
Serás o meu amor
Serás a minha paz

Ele:
Consta nos autos
Nas bulas
Nos dogmas
Eu fiz uma tese
Eu li num tratado
Está computado
Nos dados oficiais
Serás o meu amor
Serás a minha paz

Ela: Mas se a ciência provar o contrário
Ele: E se o calendário nos contrariar

Os dois:
Mas se o destino insistir
Em nos separar
Danem-se

Ela: Os astros
Ele: Os autos
Ela: Os signos
Ele: Os dogmas
Ela: Os búzios
Ele: As bulas
Ela: Anúncios
Ele: Tratados
Ela: Ciganas
Ele: Projetos
Ela: Profetas
Ele: Sinopses
Ela: Espelhos
Ele: Conselhos

Os dois:
Se dane o evangelho
E todos os orixás
Serás o meu amor
Serás, amor, a minha paz

Ele: Consta na pauta
Ela: No Karma
Ele: Na carne
Ela: Passou na novela
Ele: Está no seguro
Ela: Pixaram no muro
Ele: Mandei fazer um cartaz

Os dois:
Serás o meu amor
Serás a minha paz

Ele: Mas se a ciência provar o contrário
Ela: E se o calendário nos contrariar

Os dois:
Mas se o destino insistir
Em nos separar
Danem-se

Ela: Os astros
Ele: Os autos
Ela: Os signos
Ele: Os dogmas
Ela: Os búzios
Ele: As bulas
Ela: Anúncios
Ele: Tratados
Ela: Ciganas
Ele: Projetos
Ela: Profetas
Ele: Sinopses
Ela: Espelhos
Ele: Conselhos

Os dois:
Se dane o evangelho
E todos os orixás
Serás o meu amor
Serás, amor, a minha paz

Ele: Consta nos mapas
Ela: Nos lábios
Ele: No lápis
Ela: Consta nos Ovnis
Ele: No Pravda
Ela: Na vodca

CLIQUE AQUI PARA VER CHICO BUARQUE E NARA LEÃO CANTANDO “DUETO”

DUETOS

A canção Dueto foi composta e escrita para integrar a comédia musical O Rei de Ramos (1979), de Dias Gomes, encenada no Teatro João Caetano, em sua reinauguração, após a reforma desse que é o mais antigo teatro do Rio de Janeiro, cujas portas se abriram em 1813. A peça aborda o ódio entre dois banqueiros do jogo do bicho, Mirandão (Paulo Gracindo) e Brilhantina (Felipe Carone), em conflito com o amor existente entre seus filhos, Taís (Marília Barbosa) e Marco (Marcio Augusto).

Dias Gomes diz que, em 1975, Flávio Rangel pediu que ele escrevesse uma comédia musical. Ao aceitar o desafio, começou a redigir com entusiasmo O Rei de Ramos, primeira experiência no gênero. “Infelizmente”, destaca o escritor, “quando já tinha mais da metade da peça pronta, Flávio deixou a direção do Teatro Adolfo Bloch e o projeto foi cancelado. Durante dois anos a peça dormiu no fundo de minha gaveta. Até que, em meados de 77, eu a li para um grupo de jornalistas e homens de teatro, no Teatro Casa Grande. A boa acolhida que o texto teve por parte da reduzida platéia me animou a terminá-lo. Um dos presentes era Chico Buarque, que aceitou escrever a música” (trecho da apresentação feita pelo próprio Dias Gomes no livro O Rei de Ramos, publicado pela editora Bertand Brasil, na sua 2ª edição, de 1987).

Dias Gomes (1979)
Dias Gomes (1979)

Flávio Rangel, diretor do musical, fez questão de ressaltar que “[s]endo Chico Buarque o extraordinário poeta que é, seu trabalho foi utilizado em O Rei de Ramos inclusive na função de aclarar e reforçar passagens do texto, além de levar a ação dramática adiante e até mesmo definir personagens”; isso também é destacado por Dias Gomes, ao registrar que “O Rei de Ramos é, sobretudo, um trabalho de equipe, que se completa harmoniosamente com a colaboração de Chico Buarque e Francis Hime”. A propósito, Francis Hime foi também o diretor musical do espetáculo.

Sabe-se que uma das características das canções feitas pelo Chico com destinação certa para alguma trilha sonora de teatro, cinema ou televisão, é que as músicas acabam saltando de sua gênese, vão se afastando da origem que motivaram sua criação e adquirem vida própria.

O diretor de O Rei de Ramos, Flávio Rangel, percebeu isso na época da peça; no prefácio do livro no qual se publicou a obra dramatúrgica de Dias Gomes, disse que três canções ali poderiam ser ouvidas “pelo seu valor intrínseco, isoladas do contexto em que a peça se move”.

Ele não disse quais eram as músicas, mas penso que se referia a Dueto; e me arrisco a dizer outra música desse rol não nominado por ele: Amando sobre os Jornais, por carregar essa característica de autonomia. Essa, aliás, é uma música bastante conhecida, a compor uma das faixas do disco Mel (1979), de Maria Bethânia, e que infelizmente nunca foi gravada pelo Chico. Provavelmente a terceira cantiga com esse traço de independência da peça é Qualquer Amor, parceria do Chico com Francis Hime, gravada por Olívia Hime no disco Essas Parcerias (1984), do Francis.

livro rei de ramos

No musical, a canção Dueto é entoada numa cena na qual o bicheiro Mirandão, pai de Taís, começa a dançar com ela uma valsa, na festa que ocorre numa quadra da escola de samba, e é nesse instante que ela e Marco se conhecem, e se apaixonam.

Esse é o registro da cena, construída por Dias Gomes, na qual surge a música:

“QUINTO QUADRO
ONDE ENTRA UM POUCO DE AMOR, POR QUE NÃO?
Quadra da escola de samba em clima de festa. Os passistas se exibem ao ritmo da bateria e cantam o samba-enredo, puxado por Pedroca.
(…)
Mirandão entra, de braço com Cida [mulher de Mirandão, interpretada por  Solange França]
(…)
MIRANDÃO
(…) Onde tá minha filha?

PEDROCA
Ela tava por aqui…

MIRANDÃO
Quero que ela dance comigo a valsa da aniversariante. Vem, vamos ver onde ela tá… (Sai com Cida.)
(…)

MIRANDÃO
(Entra, trazendo Taís pela mão.) Ei, pára! Pára!

PEDROCA
(Para a bateria:) Bateria! Mirandão tá mandando parar, porra!
 
A bateria pára.

MIRANDÃO
A valsa!

TAÍS
Que é isso, pai! Não dá vexame! Valsa em quadra de Escola de Samba!… Essa não!

MIRANDÃO
Por que não? Eu já combinei com eles. Vamos lá, pessoal da bateria! A Valsa da aniversariante! 

Paulo Gracindo como Mirandão
Paulo Gracindo como Mirandão

Com manifesta má-vontade, os surdos começam a marcar o compasso da valsa. Mirandão e Taís saem dançando. Ela constrangida, ele glorioso, sorridente. Marco vê Taís e não tira os olhos de cima dela. Ela nota também e dança olhando para ele. Outros pares entram na dança. Até que Mirandão se sente cansado. Pára. Cida vem em seu socorro.

CIDA
Que foi?…

MIRANDÃO
Acho que tou mesmo ficando velho. O coração tá rateando…
(Sai com Cida.)
 
Como que atraídos por um imã, Marco e Taís vão ao encontro um do outro e continuam a valsa, olhos nos olhos, vidrados (…).
(…)

Marília Barbosa como Taís e Marcio Augusto como Marco
Marília Barbosa como Taís e Marcio Augusto como Marco

TAÍS
Quem é você?

MARCO
Meu nome é Marco. Cheguei ontem.

TAÍS
Chegou de onde?

MARCO
De Paris. Não é espantoso?

TAÍS
O quê?

MARCO
Anteontem a gente nem se conhecia. E havia entre nós todo o Oceano Atlântico. E de repente estamos aqui, um em frente ao outro…

TAÍS
E parece que isso tinha de acontecer. Estava escrito. (Canta:)

TAÍS
Consta nos astros
Nos signos
Nos búzios
Eu li num anúncio
Eu vi no espelho
Tá lá no evangelho
Garantem os orixás
Serás o meu amor
Serás a minha paz
 
MARCO
Consta nos autos
Nas bulas (…)”

E daí segue a valsa, encantadora como é, vaticinada a atravessar o tempo e o espaço, desligando-se das fronteiras do teatro que a acolheu em seu primeiro entoar.

nara disco capa

A gravação que fez a música se deslocar de sua ambiência de dramaturgia foi a do Chico Buarque com Nara Leão, a integrar como faixa musical o disco dela Com Açúcar, Com Afeto, de 1980.

A conhecida interpretação dos dois, a conduzir os ouvintes a uma espécie de baile pautado pelo carinho, certamente é fruto do que a própria Nara Leão registrou nesse disco, “feito como se estivéssemos em casa”, assim ela escreveu. “Muita tranquilidade, bons papos. A direção e a guitarra do Burnier, mais a sensibilidade e sutileza do toque do piano do Antonio Adolfo me deram logo a certeza de que tudo ia correr maravilhosamente”; e arremata: “Foi muito bom fazer este disco. A gente se divertiu, se emocionou. Para mim, cantar as músicas do Chico é um ato natural. Como respirar. Não exige esforço, não há divergência”.

Assim, o destino dessa canção ficou por décadas como sendo o de nos embalar na percepção da certeza dos dois eus líricos quanto ao amor além da crença e da razão.

nara disco contracapa

Eis que somos surpreendidos de modo emocionante, com nova gravação de estúdio, num dueto formado por Chico Buarque e sua neta Clara Buarque, no disco Caravanas (2017).

Aqui se impõe um registro: o da bendita coragem de Clara ao debulhar os tons e as notas de uma canção cuja memória sentimental de muitas gerações já a identificava como algo pertencente ao universo desse dueto pra lá de especial – Nara Leão e Chico Buarque.

Porque estou certo de que não é fácil interpretar tal música, cujo percurso de quase quarenta anos de estrada se fez com outra voz, ainda mais sendo a da Nara.

DUETO - CHICO E CLARA

O fato é que a valentia se fez acompanhar de muito talento e personalidade, para que ouvíssemos então, admirados, Dueto com essa roupagem trazida por Clara e Chico, simplesmente nos deixando levar pela doce voz moldada por ela ao fazer aflorar o eu lírico da cantiga. Clara foi buscar essa música do Chico nos arquivos do tempo, sabendo reinseri-la no momento atual. E isso confirma o lema trazido por ela em entrevista, a revelar que sua percepção carrega o melhor da entrega de um artista ao mundo, a própria natureza e essência: “Canto o que gosto. Canto o que sinto. Vou deixar a vida me mostrar o que ela guarda pra mim”.

O tempero da nova gravação se dá também ao final, com a inserção de elementos da modernidade, inexistente no tão distante anos 1980, e que passam a fazer parte da lista do “consta”… no Google, no Twitter, no Face, no Tinder, no WhatsApp, no Instagram, no email, no Snapchat, no Orkut, no Telegram, no Skype.

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Quando da turnê do show Caravanas, Chico forma o dueto com Bia Paes Leme, instrumentista de sua banda.

O registro está no disco Caravanas ao vivo (2018), e o final é idêntico ao da roupagem da versão feita com a Clara Buarque, quanto aos elementos da modernidade, com uma diferença. Após falarem do Google ao Skype, Chico larga um “no fax…”, causando risos na plateia.

Fico a imaginar que as gargalhadas certamente emanaram daqueles que, como eu, sabem e usaram bastante o fac-símile ou fax, um telefone que possuía em suas entranhas um rolo de papel a permitir que documentos fossem enviados em cópia por outra linha telefônica acoplada a um fax, uma espécie de impressora interligada a outra por telefone. O máximo da modernidade, quando se popularizou no início dos anos 1990, precursor de tudo que é dito no final dessa nova versão, como o WhatsApp.

A fala um tanto quanto tristonha do Chico talvez reflita certa saudade de algo que já foi tão moderno e hoje é totalmente esquecido, e ainda assim passa a integrar o rol da lista das plataformas nas quais se pode pesquisar, verificar e passar mensagens aos outros sobre aquele amor que constava, em tempos anteriores ao mundo virtual de hoje, em fontes confiáveis, como num jornal que fez revolução no início do século XX, o Pravda (verdade, em russo)… Consta no Pravda…

CLIQUE AQUI PARA VER CHICO BUARQUE E BIA PAES LEME CANTANDO “DUETO” NO SHOW “CARAVANAS”

CHICO PÚBLICO

 

ELA FAZ CINEMA

EU NÃO SEI

Tão logo Anne se aproximou trajando um vestido preto, desferiu-lhe um beijo como se fosse um tiro. Seu alvo era Carso, mas ele não se dava conta disso; também… pudera! “O amor pode nascer de uma simples metáfora”, foi o que veio à mente dele, sentindo-se preso naquele instante. A imagem que, involuntariamente, lhe ocupara a cabeça foi a do próprio velório, onde a tudo enxergava e ouvia. Ali estava Anne, sua viúva, cobrindo-o com os olhos de carregar lágrimas, e aquela boca de escapar o pequeno sorriso no canto. Isso o angustiou.

Carso acabara de ler “A Insustentável Leveza do Ser”, de Milan Kundera. A parte que mais lhe impressionou no livro foi a cena na qual Tomas, que jamais se envolvia com alguém, passou a noite com Tereza, e após aquela madrugada de amor, ela teve um acesso de febre. A partir dali ele sentiu um amor inexplicável por ela… Carso guardou dois trechos do livro que lhe impactara: “Tinha a impressão de que se tratava de uma criança que fora deixada numa cesta e abandonada nas águas de um rio para que ele a recolhesse na margem de sua cama”… “Tomas não sabia então que as metáforas são uma coisa perigosa. Não se brinca com as metáforas. O amor pode nascer de uma simples metáfora”.

Afrontada pela beleza de Carso, Anne jamais esqueceria aqueles olhos de luz intensa. E foi a partir de tal despeito que ela concedeu a ele uma atitude de desdém, só para colher seu desconserto; tudo proposital. A performance teatral cresceu com ela e dentro dela. Nunca esqueceu quando chorou e ouviu pela primeira vez sua mãe gritar “vê se não faz fita!”, ao perceber que era fingimento da filha, pois havia um sorriso de canto na boca da menina. Naquela noite Anne não conseguiu dormir, imaginava-se presa na torre de um castelo, sendo obrigada a costurar intermináveis fitas de tecidos na cor vermelha, que se amontoavam no pequeno quarto de tear. Faz fita, mais fita! Era só o que lhe vinha à mente. Foi preciso a mãe, alguns dias depois, ao notar que seu apetite desaparecera, explicar que “fazer fita” era uma forma de dizer que alguém está fingindo, representando uma cena. A expressão decorre do formato redondo do rolo a guardar a película cinematográfica, e dali se puxa a ponta do filme para encaixar na máquina de projeção, então se tem a fita do filme. Fazer fita, fazer cinema, interpretar.

rolo cinema FITA 2

Depois do alívio de Anne, ao afastar o angustiante sonho de sua prisão no castelo a costurar, ela passou a caminhar mais esguia, descobrira seu talento de ser fingidora. As amigas notaram, e quem não se dava conta, pura e simplesmente, sentia seus ares da graça. Ela só não fazia propriamente a fita do cinema mesmo, mas sabe-se lá até quando, seguia chorando e um sorriso guiando. Apenas quem a conhecesse, feito sua mãe, notaria o leve dobrar do canto da boca a indicar isso. A mãe nunca revelou, mas se via participante, até certo ponto, do que aparentava uma “dupla personalidade” da filha, a constante alternância entre o riso e o choro, a comédia e a tragédia, como as máscaras do teatro. Tudo se deu porque o pai queria registrá-la como Ana, mas a mãe achou comum demais, e decidiu chamá-la de Ane. Não satisfeita, no momento do registro ainda achou por bem colocar dois “n”, Anne, o que para ela influenciou a filha a ter esse talento natural da representação na vida como se fosse um palco.

Todos querem saber a história do próprio nome. Até a adolescência Carso desconhecia a dele, quando o pai lhe disse, orgulhoso, que significava fazendeiro, sendo uma homenagem aos antepassados da família e suas vastas terras em Minas Gerais. Ele não se identificava e jamais conviveu com esses possíveis bisavós donos de latifúndios. Desde aquele dia, Carso não se conformou até encontrar a exata procedência de seu nome. Em momento particularmente feliz, descobriu que vinha dos primitivos povos germânicos, uma origem teutônica, e na verdade queria dizer lavrador. Desde então ele fez as pazes com o próprio nome, e se imaginava sendo um antigo lavrador da terra. Essa convivência com o nome, tão inerente à sua vida, passou a merecer a meditação se ele de fato soava estranho. Depois de perceber o sorriso no canto da boca de Anne, mesmo com o ar grave de seu beijo sem cortesia, imaginou que ela poderia ter achado seu nome engraçado, daí o discreto levantar do lábio, quase imperceptível.

Quando se encontraram noutra situação, Carso perguntou diretamente, sem rodeios: Você achou meu nome engraçado? Ela, exalando a indiferença, respondeu com outra pergunta: Como você se chama mesmo? O que o assustou não foi a tática de desinteresse, mas a maneira como ela disse aquilo… aérea, como se estivesse fora de si. Ele explicou pausadamente, aguardando a reação dela, que continuava distante: Significa lavrador, o homem que conhece os desejos da terra e a fecunda com muitas sementes em seu ventre. Ela lançou um olhar enigmático, ele podia jurar que um arrepio brotou de seu corpo, diante daquelas palavras, soltas num impulso. Ele não premeditava, e sua voz grave encantava as mulheres. Rapidamente, porém, Anne se recompôs na indiferença.

Foi nesse pensar do quão difícil era decifrar os sentimentos daquela mulher, que a metáfora retornou à sua mente, aquela do primeiro encontro, o beijo sem ternura e o próprio velório. Carso sabia, naquele instante em que a reencontrou, que a amava de tal maneira que nunca conseguiria se desvencilhar de alguém, cuja eterna dúvida era de quem ela seria, tanto no sentido de ser, quanto no de ter. Começo e fim. As duas palavras lhe foram praticamente lançadas em forma de sentimento. Começo de um romance e fim de mim mesmo se não estiver com ela; ele formulou rapidamente esses pensamentos. Ao lado dela sempre haverá ambiguidade, a oscilação de certezas antagônicas, quando não a do desejo latente, a de total apatia. Ele mergulhou nesse indescritível sentimento de plenitude e vazio, já que partir daquele dia, ele não mais saberia viver sem ela.

La Dolce Vita (1960) – Federico Felini
La Dolce Vita (1960) – Federico Felini

A alternância, a partir dali, seria a companheira fiel de Carso, porque a convivência com Anne obedeceria a um roteiro como se fosse algum filme, a bordo duma gangorra de emoções, brincando de pendular entre certezas e dúvidas. Mas por mais imprecisa que ela fosse, ele estava certo de que a precisava, e conhecendo o quanto bem ela fazia ao seu coração, jamais a deixaria ir embora. A confusão era leve, mas constante, dizia que ela jamais seria de alguém; mas pensava se nem mesmo dele. A liberdade parecia-lhe nata, como se nela entranhada, de corpo e alma. Nem em silêncio, escondido sozinho, ele ousaria afirmar que ela de fato o amava, porque ela saia de si assim, de repente, quando menos se esperava. Anne fazia parecer que se preparava para ele, ora soltando os cabelos, ora se atirando lânguida na cama. E Carso? Se via flutuando rumo a um desconhecido, porém, desejado céu.

Ele ficava ali petrificado, diante o olhar fulminante de Anne, temendo repreensão, desejando submissão, mas acreditando estar acidentalmente no rumo de um transe. Ela merecia os aplausos de Carso, e tantos pedidos de desculpas por parte dele ela insinuasse, ele a pediria, só para não ir embora.

O que Carso não sabia – aliás, ninguém sequer adivinharia – é que Anne o amava de maneira absolutamente completa. Ela suspeitava do olhar de dúvida a saltar dos olhos luminosos dele, e não refletia nenhuma certeza. Quando se jogava na cama, Anne mergulhava como se profundamente, numa entrega ao abismo da paixão, tudo de maneira tão teatral, que aquele lance era exatamente para que ele percebesse que ela, a ele pertencia.

The Graduate (1967) – Mike Nichols
The Graduate (1967) – Mike Nichols

Com o tempo ela foi compreendendo que seus gestos causavam um olhar de espanto nele, a insegurança era evidente. E de fato, para ele, tanto o choro quanto o riso dela, eram brincadeiras especialmente excitantes, poupando algo que se abriga entre as sensações e as expressões. Em determinado momento, após ele sugerir timidamente a suspeita de que Anne carregava uma pedra dentro do peito, a ocupar o lugar sagrado de seu órgão vital, ela deu-se à indignação, jurando o contrário. Mas se depois de presenciar a reação dela, o olhar dele permanecia a boiar, no instante seguinte era daqueles olhares que agitam, denotando para além da presença de um coração; era latência, como se diz de um coração inflamado pelo desejo.

Anne, naquele momento, ficou a imaginar se Carso também não fazia fita, incorporando algum cavalheiro no grande estilo masculino, de não deixar transparecer as emoções mais íntimas.

Foi nesse cenário que ela se deu conta do quanto estava ligada para sempre a ele. Anne jamais leu Milan Kundera, não sabia que o amor pode surgir de uma metáfora, mas naquele dia viajou de volta à infância, ao castelo no qual fazia intermináveis fitas coloridas, a se espalhar pelo chão, e viu a imagem de um príncipe de exuberantes olhos chegar até ela, de modo repentino, a envolver os dois com aquelas fitas, de tal modo que passaram a ser um só, embrulhados num tecido cujo suor embebeu e descoloriu as metragens coladas em seus corpos. E foi naquela mescla das peles retintas, que ela entendeu da fita de ambos, um para o outro, mas também consigo, num espetáculo cotidiano de certeza e dúvida. E o que é o amor senão o talvez acompanhado do sim?

Les Amants (1958) – Louis Malle
Les Amants (1958) – Louis Malle

Ela Faz Cinema

Chico Buarque/2006

Quando ela chora
Não sei se é dos olhos para fora
Não sei do que ri
Eu não sei se ela agora
Está fora de si
Ou se é o estilo de uma grande dama
Quando me encara e desata os cabelos
Não sei se ela está mesmo aqui
Quando se joga na minha cama
Ela faz cinema
Ela faz cinema
Ela é a tal
Sei que ela pode ser mil
Mas não existe outra igual

Quando ela mente
Não sei se ela deveras sente
O que mente para mim
Serei eu meramente
Mais um personagem efêmero
Da sua trama
Quando vestida de preto
Dá-me um beijo seco
Prevejo meu fim
E a cada vez que o perdão
Me clama
Ela faz cinema
Ela faz cinema
Ela é demais
Talvez nem me queira bem
Porém faz um bem que ninguém
Me faz

Eu não sei
Se ela sabe o que fez
Quando fez o meu peito
Cantar outra vez
Quando ela jura
Não sei por que Deus ela jura
Que tem coração
E quando o meu coração
Se inflama
Ela faz cinema
Ela faz cinema
Ela é assim
Nunca será de ninguém
Porém eu não sei viver sem
E fim.

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contra capa CD CARIOCA

CINEMA

O conto “Eu Não Sei”, de minha autoria, inspirado na canção “Ela Faz Cinema”, é mais um exemplo das amplas possibilidades da arte buarqueana, considerando as intermináveis camadas de linguagem discretamente pontuadas nos versos das letras musicais, tanto os mais acessíveis quanto os subterrâneos.

Há versos que geram de imediato uma imagem do contexto da canção, como os que falam da desconfiança do eu lírico quanto ao bem querer de sua amada. Todavia, constam também ali versos enigmáticos, a sugerir outros subtextos; basta lembrar os que dizem que ela nunca será de ninguém, e ainda assim faz ao eu lírico um bem que ninguém faz. Outras sutilezas escondidas são colhidas ao se descobrir que em determinado ponto, revelam referências à passagem inicial do conhecido poema Autopsicografia (O poeta é um fingidor / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente), de Fernando Pessoa. É quando o eu lírico da canção diz que ela mente, mas não sabe se ela deveras sente o que mente para ele.

Além disso, a música é repleta de metáforas. Ela vestida de preto a dar um beijo seco no eu lírico, como se o findar daquele relacionamento, fosse para ele o fim da própria vida. Noutras passagens, há indicações envolvendo a sensualidade, como na figura do coração dele que inflama, uma sutil referência à excitação masculina.

Outro aspecto de destaque na música é o uso das palavras, em interessante gangorra de emoções – tal o sentimento do eu lírico em suas certezas e dúvidas – pois há uma alternância nos versos entre afirmações (quando / ela faz / sei / não existe / prevejo / nunca) e incertezas (não sei / ou / talvez / porém).

A estrutura narrativa também se iguala a um filme, já que o pano de fundo da história é a possível interpretação de sentimentos de alguém que parece agir como uma atriz, a “fazer fita” (expressão explicada no conto). O início é dramático, com um choro, passando por diversas “cenas” ao longo da canção de momentos entre o casal, como se fossem tomadas cinematográficas nas quais podemos visualizar esses instantes (ela soltando os cabelos, saltando na cama, mentindo, dando um beijo seco, pedindo perdão). No final, a música termina exatamente como se encerra uma película cinematográfica, com a palavra FIM.

CHICO POR INTEIRO CD CARIOCA

Em estilo bossa nova, o samba “Ela Faz Cinema”, logo de início, se mostra contagiante na introdução musical, e somos levados assim por todo o percurso da canção com sua estrutura de iluminada cadência, nos induzindo a ouvir de novo e sempre. A produção musical é do maestro Luiz Cláudio Ramos, responsável por todo o disco “Carioca” (2006), e que também toca violão nessa faixa, juntamente com os músicos Jorge Helder, no Baixo Acústico; João Rebouças, no piano Fender Rhodes e teclados; Wilson das Neves, na Bateria; e Marcos Suzano, na programação e percussões.

CD COM DVD CARIOCA

Aliás, o disco “Carioca” se fez acompanhar de um relevante registro das gravações e conversas sobre as músicas que o compõem, um documentário em DVD, denominado “Desconstrução”, dirigido por Bruno Natal. Ali sabemos que Chico elaborou uma música sobre as atrizes, falando de seus olhos infantis, quando morava em Paris e pela primeira vez viu mulheres nuas na tela do cinema, pois essa música faria parte de um dos programas elaborado por Roberto de Oliveira, filmado em Paris, da série de documentários a respeito da obra de Chico Buarque. Todavia, o próprio Roberto de Oliveira queria mais uma música sobre atrizes, dessa vez para inserir em outro programa que ele preparava, sobre cinema.  Chico argumentou que já fizera a música sobre as atrizes, mas ele insistiu muito, daí ele compôs “Ela Faz Cinema”, cujo nome da canção se firmou no estúdio de gravação, após ele perguntar ao Roberto: “Faz Cinema ou Ela Faz Cinema? O que você prefere?”, ao que ele disse: “Eu acho Ela Faz Cinema mais bacana”. “Então está batizada! Ela Faz Cinema”, sentenciou Chico.

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CASUALMENTE

Quando aqui ingressamos numa canção, vamos ao percurso das emoções. Abaixo, a gravação da música em estúdio nos dará a passagem para essa viagem dos tempos, memórias e anseios de reviver o melhor dos instantes, a casualidade.

LA CANCIÓN SENTIMENTAL

É o ano de 1777, dois jesuítas espanhóis estão sentados em frente àquela construção praticamente pronta, a beber água após a pausa do exaustivo trabalho. Centenas de outras pessoas estão ali próximas aos padres, a passar todo o dia carregando e dispondo pedras. Quase trinta anos antes, em 1748, quando nem esses dois religiosos estavam no local, começou a construção do que viria a ser a Catedral daquele pequeno vilarejo perdido no mundo, a Ilha de Caobana, como os nativos a chamam. Séculos antes, em suas navegações de exploração por novos lugares, Cristóvão Colombo a encontrou e tentou batizá-la de Ilha de Juana, em homenagem à filha do rei de Espanha, mas esse nome não vingou.

Um dos padres é noviço, agitado, tem o olhar inquieto, até o suor que escorre pela sua testa parece querer um caminho mais acelerado para o destino de pingar ao chão; o outro é comedido, tem o olhar cansado de quem muito já viu e ainda assim anseia por mais tempo. Naquele intervalo da labuta de tantos afazeres para erguer o enorme templo, o primeiro indaga se valia a pena tamanho esforço, pois nem eles sabem dizer quantas almas no futuro haverão de admirar a grandiosa arquitetura. O segundo padre, com seu encargo de maturidade, diz ao iniciante que aquela construção seria para sempre. Séculos depois, pessoas que por ali passassem ainda seriam atraídas para ingressar na igreja, sentariam lá dentro e, talvez alguma, mesmo sem fazer isso de modo racional, refletindo solitária sobre sua vida e existência, perceberia que somos pequenos seres passageiros a bordo de momentos que se vão para nunca mais voltar, inclusive aquele e este.

O noviço emudeceu, ficando a conjecturar, pois custava-lhe imaginar a cena, só conseguia ver a imensa edificação. No ímpeto da juventude, abastado de certezas, ele se valeu da crueza da própria convicção em relação às torres laterais da Catedral, igualmente posicionadas, porém bem diferentes: se não foi erro, então era um planejamento grosseiro. Diante o que acabara de ouvir, o outro missionário se levantou e chamou o amigo para caminharem para ali bem próximo, até o local de onde poderiam ver o mar, na verdade, um braço do Oceano Atlântico, chamado posteriormente de Bahía de la Habana. Experiente, apontou ao jovem que olhasse para aquelas águas à sua frente. Ele o fez, mesmo sem entender. Em seguida, o seu mentor orientou que ele fechasse os olhos por instantes, depois os abrisse, para novamente encarar o mesmo pedaço de oceano. Feito isso, circunspecto, ele disse ao rapaz: “Mira, hasta el mar es lo mismo! Pero… no es igual…”.

Sim, o inquieto jesuíta constatou que era diferente o cenário até então fixado em sua memória de observador, pois as pequenas ondas cambiantes faziam novo desenho de espuma branca em fundo esverdeado. Surpreso, seus olhos brilharam; no fato de as torres não serem iguais, estaria enfim a aquela mensagem: nada neste mundo é igual quando se olha uma segunda vez. As torres diferentes assim diziam essa verdade. Ele moveu a cabeça de modo afirmativo, agradecendo aquele que tinha como seu mestre.

Catedral de la Virgen María de la Concepción Inmaculada de La Habana
Catedral de la Virgen María de la Concepción Inmaculada de La Habana

Eles ficaram ali, recebendo um pouco daquela maresia, antes de retornar ao trabalho. Não fora o velho jesuíta quem criara a preciosa lição, mas ele pôde eximiamente interpretá-la e reproduzi-la. Do canto da sua boca escapou um sorriso, como o de quem pensa ou lembra, admitindo o pecado da vaidade. Ele trouxe tal sabedoria dos seus antigos estudos da filosofia grega, estava escrito naquele livro que não poderias entrar duas vezes no mesmo rio, do pensador Heráclito, da Grécia Antiga, citado por Platão em seu diálogo Crátilo. Foi daí que se desenvolveu na Filosofia a ideia segundo a qual, quando alguém entra pela segunda vez num rio, ali já não é mais a mesma pessoa, assim como o rio também não é o mesmo.

Em relação à obra ser eterna e se transformar num ambiente de visitas constantes, o experiente padre tinha razão. Séculos se passaram, muita coisa aconteceu naquela ilha dominada pelos espanhóis ainda em 1898, até mesmo uma revolução no ano de 1959, que removeu a ditadura de Fulgencio Batista. Mas as pessoas continuavam a passar em frente à Catedral, oficialmente denominada de Catedral de la Virgen María de la Concepción Inmaculada de La Habana, e entravam naquela construção barroca do Século XVIII para meditar sobre a vida. Exatamente do modo como o paciente jesuíta previu.

E foi isso o que ocorreu com a jovem Lynn, em 2017, duzentos e quarenta anos depois daquela conversa entre os padres espanhóis. Ela entrou na Catedral após caminhar pelas ruas de Havana à procura de um sentimento perdido de sua distante infância, era difícil buscar no baú da memória algo que sequer lembrava, pois com poucos meses de idade não seria capaz de reter aquele dia tão mágico. Só tempos depois ela soubera da existência do fato, onde seu pai chegou em casa e a encontrou no colo da mãe, que a amamentava, e Pablo entoou a música feita para aquela que gerou a pequenina Lynn e lhe dava a seiva da vida. A canção era Yolanda, todos conheciam, não só naquela Ilha, mas em muitos lugares do mundo, inclusive no imenso e musical país chamado Brasil, trazida por Chico Buarque em versão própria, que aflorou Iolanda.

Todos os momentos são únicos, mas certamente o da criação artística é algo que transcende, e poucos o presenciam. O nascimento de uma música, por exemplo, só o próprio artista que a criou e quem esteja com ele naquele instante são os espectadores, até que múltiplos ouvidos destinatários da canção passem a fazê-la algo que pertença a uma multidão. E por vezes e vezes aquela música será interpretada por novos cantores, ou reproduzida sua gravação original décadas à frente, até séculos ela pode percorrer, no caso de sua aceitação pelas gerações seguintes.

A música que aquela frequentadora da Catedral de Havana queria ouvir novamente como se fosse pela primeira vez, ela já sabia de cor, a escutara pela voz de tantos artistas! A cantiga carregava o nome de sua mãe, Yolanda, mulher singular que se tornou plural não só por causa da versão denominada de Iolanda, mas também pelas diversas gravações que se deram em relação àquela música.

A jovem Lynn refletia no interior daquele silencioso templo. Por mais que ela ouvisse tantas vezes e em diversas vozes a música Yolanda, o que ela mais queria era a sensação da qual não lembrava, ouvi-la pela primeira vez no colo da mãe e sendo soprada pelo berço criativo do coração do seu pai, que a compôs dias antes de retornar à casa e encontrar o cenário da mulher a alimentar a filha.

A canção, a mulher, o crepúsculo, a Catedral, tudo se embaralhava em lembranças, e se Lynn mergulhasse profundamente num torpor de antigas palavras gravadas naquelas paredes pelo insondável registro da memória, ela até poderia ouvir o eco de uma sentença firmada séculos atrás por um padre que ajudou a construir aquela igreja…“Mira, hasta el mar es lo mismo! Pero… no es igual…”.

Ela andou perdidamente o dia todo pelas ruas da cidade de Havana, tentando encontrar essa canção sentimental porventura escondida nalgum beco do passado, com fé ela encontraria, dizia para si em voz alta, mas no íntimo a voz interior já anunciava o fecho daquela busca: “No volverá nunca más… ya no veré otra vez nada igual…”.

Impossível realizar aquele desejo, sem dúvida, porque teria que ser a mesma canção no exato momento em que foi cantada pela vez primeira, talvez ela esteja até escondida entre as sonoridades vindas do próprio mar, mas de nada adiantava suplicar por aquele momento, o que vinha à sua mente eram as palavras da mãe, a lhe contar as saborosas lembranças sobre o dia em que Pablo soprou Yolanda pela primeira vez. Ao contar essa história à filha, Yolanda sorria e dizia com os olhos a brilhar: exquisitos recuerdos!

 Lynn e sua mãe, Yolanda, no tempo atual. Foto de 2013, retirada de reportagem no site cancioneros.com
Lynn e sua mãe, Yolanda, no tempo atual. Foto de 2013, retirada de reportagem no site cancioneros.com

Eram recordações que Lynn gostaria de ter, porque estava casualmente no colo da mãe quando Yolanda passou a ser uma canção, mas sabia que não recordaria do fato, por ser pequena demais. Ainda assim, ela gostava de imaginar essa possibilidade. Então, de vez em quando, acessava um aplicativo de músicas em seu celular, escolhia aleatoriamente algum intérprete de Yolanda, ficava a ouvir e imaginar como teria sido a cena no dia em que ela testemunhou tudo no colo de sua mãe.

Naquele momento, teve vontade de ouvir novamente a canção, mas a gravidade do silêncio daquela Catedral a convidava para fazer isso somente do lado de fora. Ela saiu, avistou a praça e para lá caminhou, ainda a tempo de perceber o crepúsculo. Sentou-se em frente à igreja, ativou seu celular, queria dessa vez a música com sonoridade diferente, a da língua portuguesa, por isso procurou em Iolanda, a versão do Chico Buarque, amigo de seu pai, ela recorda de ter visto o artista quando ainda criança, lembra muito bem do sorriso dele e como eram animadas as conversas entre ele e Pablo.

Ao olhar a tela do celular, procurando nos arquivos de músicas do Chico, em busca de Iolanda, se deu conta de que esse artista acabara de lançar um novo disco, estava lá no aplicativo, “Caravanas” era o nome, ela não compreendeu bem o termo, mas passou a vista nas nove canções do álbum. E para sua surpresa, viu uma palavra, o nome da sétima canção, esse termo ela conhecia bem: Casualmente. Era palavra da língua espanhola. Talvez em português se tenha essa mesma palavra, pensou. Por curiosidade, acionou o play da faixa sete, e qual não foi seu espanto, ao perceber que a canção era de fato em espanhol.

tela streaming caravanas

A surpresa maior, porém, foi constatar que Casualmente era a história de uma canção sentimental perdida e que alguém queria buscá-la novamente pelas ruas de Havana. Ela não se conteve ante a emoção, o pranto veio à tona, inacreditável ouvir naquele momento a voz de Chico Buarque a cantar uma história da qual ela própria acabara de viver. Estava tudo ali, la canción, la mujer, el crepúsculo, la catedral

Por uma coincidência, que sabemos ter outros nomes a depender das convicções de cada um – destino, acaso, vontade divina – ela enxugará as lágrimas quando a canção estiver prestes a encerrar, olhará para sua frente e só então perceberá que as duas torres da Catedral são diferentes. Lynn nunca prestara atenção nisso. Será exatamente nesse instante, após ver as duas torres não iguais, que ela balbuciará as palavras “no es igual… no es igual…”. Por coincidência também, essas palavras serão as mesmas entoadas pelo cantor nos dois versos finais da música. Assim como são duas as torres da Catedral. Do mesmo modo, duas são as musas da canção sentimental que se busca escutar novamente: Yolanda e Iolanda.

O encanto da casualidade sempre faz falta, como diz a música (Pero siempre hace falta el encanto de la / Casualidad), e nesse caso tudo se deu casualmente, a partir de uma sentimental canção.

Foto retirada do site musicaememorandum.com
Foto retirada do site musicaememorandum.com

CAUSA E EFEITO

Gilberto Gil nos diz que “a arte sempre foi uma bailarina, ela sempre bailou sobre as questões humanas, todas elas, sempre se permitindo insights mais profundos, visões mais soltas, mais livres do que seja o homem em relação a tudo: as relações humanas, as ideologias, os conflitos humanos. E sempre voltada para o aprofundamento da visão humana sobre si própria, a humanidade; e sobre a natureza, o universo etc. Então são muito variadas as formas que a arte pode nos ajudar, a refletir, a entender, a compreender, a propor tarefas para o futuro” (depoimento em seu instagram, @gilbertogil, no Dia Nacional das Artes, 12 de agosto de 2020).

Esse pequeno conto, “La Canción Sentimental”, escrito sob a inspiração de Casualmente e sua possível conexão com Iolanda (Yolanda), é um bailar de bolero a partir da proposta original. A ideia de fazer uma ponte entre as duas canções só foi possível porque no show “Caravanas” (2017/2018) Chico as interpreta em sequência, primeiro Iolanda (Yolanda) e depois Casualmente. Também porque, ao saber da história de como Pablo Milanés apresentou a música Yolanda à sua mulher, com a filha Lynn nos braços, recém-nascida, pude desenvolver uma imagem desse cenário, que está em texto deste blog ao analisar a música Iolanda (Yolanda). Foi dessa perspectiva, da pequenina Lynn como espectadora privilegiada daquele instante, que percebi quão sentido fazia entrelaçar as duas músicas, exatamente como ocorre no show.

O próprio Chico nos conta sobre a trajetória de Casualmente, e nesse caso o que se percebe é a grande generosidade do Artista, ao tentar fazer a letra da música do Jorge Helder especialmente para a cantora Omara Portuondo. Um envolvente bolero, com estrutura musical desse que, além de um grande músico, se revela escultor de melodias marcantes, como foi o caso de “Bolero Blues” (2006), também letrada pelo Chico e igualmente analisada neste blog, em suas primeiras postagens.

Com a palavra, Chico Buarque.

“Dois anos atrás [2015] o Jorge Helder me mandou essa música, esse bolero, dizendo que a Omara Portuondo vinha gravar aqui um disco, e ele ia produzir o disco da Omara Portuondo, aí ele me mandou e eu falei: ‘ô Jorge, legal, então eu vou tentar fazer uma música em espanhol’. E comecei a fazer, fiz esse começo todo, falando de Havana, pois era pra Omara gravar. Eu comecei a fazer, ainda brinquei como ele, ‘está aqui, baixou um Neruda…’. E ele falou ‘chefia, não vai ter mais o disco, a Omara não pode viajar, ela não vem mais’. Então, desisti. Aí eu já tava aqui – esse ano já [2017] – no finalmente do disco, e falei: ‘puxa, tem aquela música do Jorge, o bolero… vou voltar, vou pegar!’. E acabou que eu fiz a letra toda em espanhol. Ela veio.” (Depoimento dado pelo Chico em “Por dentro do Caravanas” – Spotfy. Ao falar em “baixou um Neruda”, ele se referia certamente à inspiração no estilo do poeta chileno Pablo Neruda, que o levou a compor a letra em espanhol).

Seja de uma maneira ou de outra, é interessante observar que Casualmente nos mostra a história de um sentimento que se busca resgatar e que não mais se consegue, nunca sendo de igual sensação, o que torna cada instante único. Daí as amplas possibilidades de interpretação da música, inclusive com esse desdobramento de uma história surgida em Iolanda (Yolanda).

Chico Buarque no estúdio gravando o disco Caravanas, 2017.
Chico Buarque no estúdio gravando o disco Caravanas, 2017.

CANTARÍA QUIZÁS

Outro aspecto notável, é que a letra elaborada em espanhol pelo próprio Chico, recebe dele um aconchegante recheio em português; são os versos da estrofe inicial da música, que ele mesmo traduz em seguida.

No volverá nunca más
La canción sentimental
Que casualmente en La Habana escuché cantar
A una mujer
Como ya no veré
Otra vez nada igual

Essa parte o próprio Chico repete em português mais adiante.

Não voltará nunca mais
A canção sentimental
Que casualmente em Havana escutei cantar
Uma mulher
Como já não verei
Outra vez nada igual

Vale a pena destacar o sabor que Chico dá a certas palavras; por exemplo, ojalá, que é o nosso oxalá, bastante utilizada, de origem árabe para uns (da expressão in sha’allh, que significa se Deus quiser) e africana para outros (do iorubá Òrìsànlá). Ele oferece em português o verso detentor dessa palavra, ressaltando o oxalá, e logo no verso seguinte retorna ao espanhol.

Regressarei, oxalá
Algum dia a la ciudad

A palavra quizás presente em Casualmente, além de ser muito utilizada no espanhol, acabou tendo uma dimensão enorme em termos de sonoridade, por conta do bolero Quizás, Quizás, Quizás, mundialmente conhecido, do compositor Osvaldo Farrés, que é cubano! Então, acredito, quizás não esteja por duas vezes ali à toa.

Chico utiliza um fenômeno linguístico que envolve palavras semelhantes na grafia em línguas diversas, mas possuem significados diferentes. O doutor em linguística Valdecy Oliveira Pontes, em texto sobre esse tema, nos lembra que Antenor Nascentes, ainda nos anos 1930, denominou essa ocorrência de palavras heterossemânticas, atualmente conhecidas como “falsos cognatos”, “falsos amigos” ou “cognatos enganosos”, o que é muito comum no espanhol, por ter esse idioma uma aproximação ortográfica e de sonoridade com nossa língua, “a confundir o leitor, cuja tendência é a de se guiar pelo significado aparente do vocábulo. A palavra espanhola ‘berro’, p. ex., não significa ‘berro’, em português, mas ‘agrião’. ‘Aula’ quer dizer ‘sala de aula’ e ‘brincar” é ‘saltar’” (O tratamento dado à variação linguística na tradução dos falsos amigos nos livros de língua espanhola selecionados pelo PNLD 2011).

Chico se vale de uma dessas palavras heterossemânticas do espanhol, exquisito, que não significa esquisito, como aparenta, e sim requintado, sofisticado, algo delicioso. Daí que a expressão exquisitos recuerdos pode ser traduzida como deliciosas lembranças.

O mar de Havana. Foto retirada do site InViaggio
O mar de Havana. Foto retirada do site InViaggio

Casualmente

Jorge Helder/Chico Buarque/2017

No volverá nunca más
La canción sentimental
Que casualmente en La Habana escuché cantar
A una mujer
Como ya no veré
Otra vez nada igual

Regresaré, ojalá
Algún dia a la ciudad
Y perdidamente en sus calles voy a buscar
Por la penumbra
El momento fugaz
Que no puedo
Olvidar

Semejante canción
Sonaria quizás
Junto al mar
Sin embargo jamás
Con aquella mujer
Tan singular

Cantaría quizás
Semejante mujer
En um bar
Sin embargo jamás
La canción que le voy
A suplicar
Y suplicar

Não voltará nunca mais
A canção sentimental
Que casualmente em Havana escutei cantar
Uma mulher
Como já não verei
Outra vez nada igual

Regressarei, oxalá
Algum dia a la ciudad
Y perdidamente en sus calles voy a buscar
Por la penumbra
El momento fugaz
Que no puedo
Olvidar

Exquisitos recuerdos
Me llevam a aquella ciudad
Pero siempre hace falta el encanto de la
Casualidad

La canción, la mujer
El crepúsculo, la catedral
Hasta el mar de La Habana es lo mismo, pero
No es igual
No es igual

Tradução livre de Casualmente (com exceção dos versos já traduzidos pelo próprio Chico Buarque):

Não voltará nunca mais
A canção sentimental
Que casualmente em Havana escutei cantar
Uma mulher
Como já não verei
Outra vez nada igual

Regressarei, oxalá
Um dia para a cidade
E perdidamente em suas ruas vou procurar
Através da escuridão
O momento fugaz
Que não posso
Esquecer

Essa canção
Quiçá ecoasse
Junto ao mar
No entanto nunca
Com aquela mulher
Tão singular

Cantaria quiçá
Tal mulher
Num bar
Porém nunca
A canção que a ela hei de
Implorar
E implorar

Não voltará nunca mais
A canção sentimental
Que casualmente em Havana escutei cantar
Uma mulher
Como já não verei
Outra vez nada igual

Regressarei, oxalá
Um dia para a cidade
E perdidamente em suas ruas vou procurar
Através da escuridão
O momento fugaz
Que não posso
Esquecer

Deliciosas lembranças
Me levam àquela cidade
Mas sempre faz falta o encanto do
Acaso

A canção, a mulher
O crepúsculo, a catedral
Até o mar de Havana é o mesmo, mas
Não é igual
Não é igual

Eis o vídeo completo do show “Caravanas” (2017/2018), clique e surgirá o exato momento em que Chico interpreta Iolanda (Yolanda) e depois Casualmente.

 

IOLANDA (YOLANDA)

CHICO E PABLO CANTANDO

Qual o destino das canções? Os ouvidos, certamente; em vozes diversas, arranjos repensados, interpretações múltiplas, atravessando anos, décadas, gerações. Algumas refletem a sina de ser reinventadas pelo processo lírico surpreendente da versão. Nascem de um modo, cumprem a beleza sonora em sua língua de origem. Depois, quando têm a felicidade do encontro com um poeta de idioma diferente, moldam-se novas roupagens semânticas. Outra trilha se apresenta. A canção terá o privilégio de sua estrutura original, e a ela se agregar uma leitura derivada, o duplo destino paralelo de uma bilíngue sonoridade. Assim aconteceu com Yolanda, da língua espanhola de Cuba, vertida em Iolanda, da língua portuguesa do Brasil.

TERNAMENTE

Naquela tarde de abril de 1970, na maior ilha do Caribe, a pequeníssima Lynn, em seus poucos meses de idade, no colo da mãe a lhe amamentar, ouvia sem entender as notas de um violão, dedilhadas por aquele homem sorridente de voz intensa. Ela certamente não lembraria esse momento no futuro a chegar, a memória infantil parece ficar reservada num local sagrado e intocável, cujo acesso somente se dá em ocasiões mágicas de passeios pelos sonhos. Talvez nessa viagem onírica ela viesse um dia a recordar aquela cantiga mansa, e perceber que os versos ali entoados falavam de um amor eterno. Ainda que em sonho, quem sabe ela até reviveria, o que testemunhou na antiga tarde de sua existência, quando um homem abriu a porta da casa dizendo, ao olhar ternamente para uma mulher: “mira lo que hice por ti!”, enquanto a música inundava o ambiente. Ela provavelmente encontraria nalgum canto da memória a cena do pranto de sua mãe, escorrendo feito rio em busca de um mar de possível ternura. Lynn sequer compreendia, na aurora de sua inocência, que aquele homem, seu pai, se chamava Pablo; e sua mãe, o nome da canção, Yolanda.

Yolanda Benet
Yolanda Benet

Daquele momento tão íntimo, compartilhado somente por Pablo, Yolanda e Lynn, não se imaginava o quanto a música alcançaria espaços e tempos, atravessaria décadas, seria enaltecida em discos e shows, ficaria para sempre registrada na língua espanhola, e ainda haveria de merecer a versão em português de um artista brasileiro que, àquela altura em que Lynn presenciava o nascimento da música, já iniciava sua parceria com Tom Jobim, em letras perfeitamente estruturadas, tal à canção nascida Zíngaro, rebatizada como Retrato em Branco e Preto.

Esse artista, Chico Buarque, alguns anos após aquele momento de ternura no qual Pablo entoou Yolanda ao chegar a casa, mais precisamente em 1978, viajou a Cuba a fim de integrar o júri do prêmio Casa de Las Americas. Naquele evento, Pablo e Chico se conheceram. E porque a vida é tecida nessa imensa e desconhecida trama chamada destino, em 1984 seria moldada a versão de Yolanda para o português. Nascia Iolanda.

VERSOS EM VERSÃO

Traduzir é algo difícil, como se sabe; nem sempre há a mesma sonoridade entre os dois idiomas que dialogam, além das expressões que cada língua, com sua cultura própria, possui. A tradução, porém, tanto quanto possível, se prende a uma tentativa de se trasladar palavras de um idioma para outro, preservando ao máximo o formato original.

Fazer uma versão de versos musicados é ainda mais complexo. Porque traduzir é como revelar o que foi dito por alguém, a outrem; ao passo que elaborar uma variante é a arte de exprimir a própria interpretação do texto ou o que é sentido diante dele. Desta forma, na versão, as palavras se reinventam, as possibilidades se multiplicam.

No caso de Yolanda, Chico percorreu um caminho em busca do lirismo dos versos na língua portuguesa, a sonoridade de nosso idioma, e também a utilização de figuras que melhor funcionassem de acordo com nosso imaginário, que é justamente o que dá sentido à língua escrita e falada.

Em Yolanda, na estrutura original do espanhol, o autor da música começa dizendo que aquela canção não deveria ser somente mais uma canção, pois o desejo dele era o de que a música fosse uma declaração de amor.

Esto no puede ser
No mas que una cancion
Quisiera fuera una declaracion de amor

Essa declaração deveria ser tão romântica, que ninguém reparasse na forma como os versos foram feitos, isso porque, como diz Pablo Milanés, a preocupação com a palavra poderia travar o que ele sentia em abundância.

Romantica
Sin reparar en formas tales
Que ponga un freno a lo que siento ahora a raudales

Aponta-se ali a dificuldade de se dizer em palavras (a forma) o real sentimento (a essência).

Para uma simples tradução dos versos “Sin reparar en formas tales / Que ponga un freno a lo que siento ahora a raudales”, teremos “Sem reparar de tais maneiras / Que ponha um freio no que sinto agora em abundância”; se quisermos traduzir buscando um sentido a partir das figuras de linguagem utilizadas por Pablo, não seria desarrazoado dizer “Sem que a atenção para com a forma / Venha a travar os sentimentos que sinto agora tão intensamente”.

Em Iolanda, Chico transmitiu efusivamente esse sentimento, elaborando uma cadência poética sonora em língua portuguesa, unindo as imagens da inspiração e da palavra. Ele qualifica a forma de “justa”, a projetar essa angústia do poeta procurando nas palavras o sentimento exato, cujo feitio encontrasse o molde certo de onde foi feito, em que não ficasse oprimido e fechado, nem perdido e vago – que lhe coubesse e lhe vestisse, precisamente justo. A beleza na sequência da ideia se dá a cada instante, especialmente quando Chico utiliza novamente a palavra “forma” no verso seguinte, dessa vez como sinônimo de “maneira”. Entendo aqui, pelo emergir da emoção também de uma fonte, sendo a forma uma maneira pela qual ela sai do interior para o exterior, tal um rio, cujo nascedouro vem do âmago da Terra.

Quem dera fosse uma declaração de amor
Romântica
Sem procurar a justa forma
Do que me vem de forma assim tão caudalosa

Entregando ou devolvendo a mesma sensibilidade à própria carne, o que se tem é tanto uma “forma” quanto a outra, de assim expressar que somos feitos em maior parte de água, como se manifestam nossos cinco conhecidos sentidos, interagindo com os demais ignorados. O sangue, a linfa, o suor, a lágrima, a saliva; tudo que jorra ou escorre de nós é do pulso que pulsa, diz da vida viva, a criatura caudalosa que quando seca morre, se não por fora, um tanto por dentro.  Assim, é improvável se ater à configuração do termo, diante da manifestação do sentimento fluido e expansivo, seja num “copo até aqui” de qualquer coisa que se sinta, e que transborda, seja contido por nossas estruturas corpóreas, como num cálice que se cala.

Continuando, observa-se que a versão às vezes se mostra idêntica aos versos originais, como na segunda parte da música.

Si me faltaras
No voy a morirme                                                                                
Si he de morir
Quiero que sea contigo
Mi soledad
Se siente acompañada

Se me faltares
Nem por isso eu morro
Se é pra morrer
Quero morrer contigo
Minha solidão se sente acompanhada

imagem 4

Adiante, diferente, mas não divergente da versão de Pablo, Chico preferiu a imagem da busca pelo colo da mulher amada como zona de conforto e acolhimento diante da referida solidão. Encontro tal curiosidade não como mudança, e sim um complemento lírico ou projeção do sentimento de ternura. Temos que, enquanto Pablo fala da “mão” por onde se guia, acompanha e auxilia, Chico diz do “colo” que afaga, consola e aconchega. É a mão que puxa para o colo que ampara… quando se fala na necessidade de aplacar o exílio com o amor.

Por eso a veces se que necesito
Tu mano, tu mano
Eternamente tu mano

Por isso às vezes sei que necessito
Teu colo, teu colo
Eternamente teu colo

Um dos trechos da música no qual se percebe toda a sutileza e encanto da versão feita pelo Chico, é a passagem que faz referência ao enlace amoroso dentro de um cenário de extrema beleza de véus que se despem, sejam sentimentais, sejam das sete saias clássicas da cigana, que perfaz seu íntimo ritual de entrega do coração.

Tu me desnudas
Con siete razones
Me abres el pecho siempre que me colmas

Chico transfere essa alegoria do movimento do afeto em versos diferentes, fazendo um antagonismo poético entre o ato de desprendimento (despir a pele e abrir o peito) e de acumulação (acumular de amores). É uma aparente contradição naquilo que se junta e depois se solta, o sentimento acumulado se libertando na ação de amar.

A minha pele vais despindo aos poucos
Me abres o peito quando me acumulas
De amores, de amores
Eternamente de amores

Na parte final da música, a estrutura permanece quase intocada. Somente um verso da versão faz uma troca de palavras, a emprestar beleza e sonoridade moldadas em língua portuguesa. Ao invés de manter a estrutura original do espanhol falando que se renuncia a ver o sol em cada manhã (Renuncio a ver el Sol cada mañana), Chico nos diz: “eu abro mão do sol de cada dia”.

Si alguna vez
Me siento derrotado
Renuncio a ver el Sol cada mañana
Rezando el credo
Que me has enseñado
Miro tu cara y digo en la ventana
Yolanda
Yolanda
Eternamente Yolanda
Yolanda
Eternamente Yolanda
Eternamente Yolanda

Se alguma vez
Me sinto derrotado
Eu abro mão do sol de cada dia
Rezando o credo
Que tu me ensinaste
Olho teu rosto e digo à ventania
Iolanda
Iolanda
Eternamente Iolanda
Iolanda
Eternamente Iolanda
Eternamente Iolanda

Muitas tardes vieram depois daquela de abril, do distante ano de 1970, na qual a pequeníssima Lynn presenciou o nascimento de uma canção envolvendo aquele cenário, onde seu pai cantava o nome de sua mãe para ambas. Tantas tardes, e chegou um dia do ano de 1984 no qual Chico Buarque fez sua versão para a língua portuguesa, e outros dias, tardes e noites vieram e virão com Yolanda e Iolanda a ecoar em tantos lugares. Pablo Milanés ainda canta em seus shows essa música, vários artistas gravaram tanto Yolanda quanto Iolanda, e Chico, no show “Caravanas”, de 2017, a interpreta de maneira inédita, mesclando as duas estruturas poéticas, a da letra original, em espanhol, e a sua versão em português.

Tem-se nessa apresentação, todo o encantamento que a música provoca, como se estivéssemos em pleno mês de abril, num florescer constante. Chico canta dizendo o sentimento que lhe vem de forma assim tão caudalosa, ainda que a palavra não encontre a sua justa forma, porque nós é que estamos a bordo do amor, e não o contrário. É sobre o olho ser menor do que a própria lágrima, assim como é o barco, menor do que o rio.

Eternamente Yolanda.

Eternamente Iolanda.

Chico e Pablo, 2007.
Chico e Pablo (2007)

YOLANDA

Pablo Milanés /1970

Esto no puede ser
No mas que una cancion
Quisiera fuera una declaracion de amor
Romantica
Sin reparar en formas tales
Que ponga un freno a lo que siento ahora a raudales
Te amo, te amo
Eternamente te amo

Si me faltaras
No voy a morirme
Si he de morir
Quiero que sea contigo
Mi soledad
Se siente acompañada
Por eso a veces se que necesito
Tu mano, tu mano
Eternamente tu mano

Cuando te vi
Sabia que era cierto
Este temor de hallarme descubierto
Tu me desnudas
Con siete razones
Me abres el pecho siempre que me colmas
De amores de amores
Eternamente de amores

Si alguna vez
Me siento derrotado
Renuncio a ver el Sol cada mañana
Rezando el credo
Que me has enseñado
Miro tu cara y digo en la ventana
Yolanda
Yolanda
Eternamente Yolanda
Yolanda
Eternamente Yolanda
Eternamente Yolanda


Pablo Milanés. Show em Havana (2019)

IOLANDA

Música de Pablo Milanés / Versão de Chico Buarque / 1984

Esta canção
Não é mais que mais uma canção
Quem dera fosse uma declaração de amor
Romântica
Sem procurar a justa forma
Do que me vem de forma assim tão caudalosa
Te amo, te amo
Eternamente te amo

Se me faltares
Nem por isso eu morro
Se é pra morrer
Quero morrer contigo
Minha solidão se sente acompanhada
Por isso às vezes sei que necessito
Teu colo, teu colo
Eternamente teu colo

Quando te vi
Sabia que era certo
Este temor de achar-me descoberto
A minha pele vais despindo aos poucos
Me abres o peito quando me acumulas
De amores, de amores
Eternamente de amores

Se alguma vez
Me sinto derrotado
Eu abro mão do sol de cada dia
Rezando o credo
Que tu me ensinaste
Olho teu rosto e digo à ventania
Iolanda
Iolanda
Eternamente Iolanda
Iolanda
Eternamente Iolanda
Eternamente Iolanda


Simone gravou com Chico Buarque essa versão no disco “Desejos” (1984)

 

LETRA IOLANDA POR E ESP - CARAVANAS 2