LOUCURA
“Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?”
Fernando Pessoa
(versos finais do poema “D. Sebastião,
Rei de Portugal”. Mensagem.
Rio de Janeiro: Edições de
Janeiro, 2014. p. 37)
Foram-se os foliões, na quarta-feira de cinzas a cidade lentamente retoma sua rotina, terminaram os dias de brincadeiras, as bandeiras penduradas nos postes e fios começam a se desmanchar. Fantasias rasgadas espalhadas no chão, feito alegria morta pelo carnaval findo, toda gente sofrendo com a volta ao dia a dia. Não interessa, em plena avenida vazia, lá está ela! Ainda sambando… é uma infeliz, dizem alguns, mas eu penso, não… é feliz em seu mundo acetinado, debochada que só ela.
Eu era muito jovem àquela época, mas conseguia elaborar na cabeça esses pensamentos, só não falava a ninguém, pois quem sabe zombariam de mim, dizendo que invento coisas inimagináveis. Mas foi exatamente o que me veio à mente… seu mundo de cetim… a dor… o pecado… o tempo perdido… algo enfim, sobre jogo acabado…
Ela desatinou, ouvi alguém comentar ao meu lado, uma palavra talvez, pouco usual. É… eu era moço demais para dispensar o dicionário, contudo, não o bastante para ignorar a inveja daquele senhor de olhar grave ao constatar que tal mulher se entregara à loucura. Foi minha conclusão. Nunca a esqueci, nos carnavais após aquela cena eu ia à mesma avenida, na quarta-feira de cinzas, para rever o espetáculo radiante daquela que desatinou. Em vão. Aguardava ansioso seu desfile solitário, lindo e louco.
Cresci, amadureci, a velhice me aguarda na esquina; mas em todo carnaval, é dela que me recordo. Porém, o mais curioso dessa história, vem agora. Certo dia, ao atravessar a Avenida Brasil, era o ano de 2000, depois de 32 anos daquele desfile da jovem desvairada, vejo uma multidão formando um burburinho ao redor de alguém que agitava sem parar os braços erguidos. Enquanto eu ia me aproximando lentamente, meu coração acelerado vinha à boca cantando. Sim, era aquela que desatinou no final dos anos 1960 e até virou notícia nos jornais daquele tempo.
Na hora me veio aquela cena do seu mundo de cetim… o gingado, o jeito de sambar! Foi como a identifiquei, passados mais de 30 anos. Exalando a preservação de sua essência, ela triunfava em alegria espontânea sem se preocupar com ninguém, os olhares críticos lhe eram indiferentes, como se ela sentisse pena dos que, em sua normalidade, não se entregavam às coisas boas e simples da vida. Eram todos cadáveres adiados que procriavam, só isso, como alertou Fernando Pessoa quanto à desvantagem de não ser louco.
Desfilando como veio ao mundo, em plena agitação do trânsito, carros buzinando, não sei se por censura ou aborrecimento pelo tráfego lento, já que muitos paravam e até desciam dos veículos para saber o que ocorria, ela debochava dos que vaiavam sob a chuva que seu samba promovia, arremessando-lhes a água por ela pisoteada no chafariz.
Soltei uma gargalhada como nunca o fizera antes em momento algum de minha vida. Não dancei, mas meu sorriso era tão largo, se ela me visse, creio pensaria que em minha cabeça eu transformava as buzinas dos carros em verdadeiras orquestras.
A dor não presta. Essa frase me veio na hora, lembrei de um professor de biologia no colégio no dia em que ele nos revelou que as flores, na verdade, eram feridas abertas. A planta se valia daquele artifício para que os insetos e aves buscassem o pólen naqueles coloridos propositais, e assim cumprissem a sina de espalhar pelo mundo as sementes que fariam surgir novos seres. O professor certamente viu a cara de espanto de todos nós. Uma ferida… como assim? A flor, uma ferida aberta? Então ele lançou a frase que ficou retida na memória. Não explicou nada, deixou para que descobríssemos um dia a sabedoria daquela sentença: “a dor não presta; já a felicidade… ah, esta sim, é de presteza absoluta!” E nos deu as costas, para escrever no quadro da sala de aula o restante da matéria a ser lecionada naquele dia.
Sei que revisitando aquela contagiante alegria, gritei com os olhos: Viva a folia! Pois a gargalhada já era o suficiente para atrair o olhar recriminador dos curiosos que ali não percebiam a grandiosidade da loucura.
Não me aproximei, jamais quis saber seu nome, fiquei exultante só por constatar que até hoje ela segue seu destino, rega suas plantas e sabe muito bem: o resto são sombras de árvores alheias… como nos ensinou Ricardo Reis, que nem existe, mas é poeta fruto da bendita loucura de Fernando Pessoa.
Gosto de palavras, já disse antes. Mas nada falei quando dei as costas ao espetáculo daquela que provou ser dura na queda, não se entregando à normalidade medíocre da sociedade, permanecendo perdida na avenida a cantar seu enredo, desobediente à datação do carnaval. Só pensei, quase numa benção secreta dirigida a ela: o sol ensolarará a estrada dela, depois saí cantando pela avenida um la-ra-rá recortado daquela palavra.
Minha felicidade maior foi a de constatar que ela ainda samba e, melhor, não somente nas quartas-feiras de cinza; agora, todo dia para ela é carnaval. Um drible majestoso na rotina. Assim ela fez seu destino. Até me dei conta naquele instante de que a palavra “desatino” parece muito com “destino”, só uma letra de diferença… o “a”, talvez separando ou quem sabe unindo o prefixo “des”, que indica uma ação contrária, ao sufixo “tino”, cujo significado gira em torno da sensatez. Com esse gosto por trinchar e trilhar palavras, arrematei comigo: ela desatinou o próprio destino!
A vida é bela.
OUÇA AQUI: “ELA DESATINOU” – GRAVAÇÃO DE 1995, NO DISCO UMA PALAVRA
Ela Desatinou
Chico Buarque/1968
Ela desatinou
Viu chegar quarta-feira
Acabar brincadeira
Bandeiras se desmanchando
E ela inda está sambando
Ela desatinou
Viu morrer alegrias
Rasgar fantasias
Os dias sem sol raiando
E ela inda está sambando
Ela não vê que toda gente
Já está sofrendo normalmente
Toda cidade anda esquecida
Da falsa vida da avenida onde
Ela desatinou
Viu morrer alegrias
Rasgar fantasias
Os dias sem sol raiando
E ela inda está sambando
Quem não inveja a infeliz
Feliz no seu mundo de cetim
Assim debochando
Da dor, do pecado
Do tempo perdido
Do jogo acabado
CLIQUE PARA VER: GRAVAÇÃO EM ESTÚDIO DE “DURA NA QUEDA”, PARA O DISCO CARIOCA (2006)
Dura na Queda (Ela Desatinou nº 2)
Chico Buarque/2000
Perdida
Na avenida
Canta seu enredo
Fora do carnaval
Perdeu a saia
Perdeu o emprego
Desfila natural
Esquinas
Mil buzinas
Imagina orquestras
Samba no chafariz
Viva a folia
A dor não presta
Felicidade sim
O sol ensolará a estrada dela
A lua alumiará o mar
A vida é bela
O sol, a estrada amarela
E as ondas, as ondas, as ondas
Bambeia
Cambaleia
É dura na queda
Custa a cair em si
Largou família
Bebeu veneno
E vai morrer de rir
Vagueia
Devaneia
Já apanhou à beça
Mas para quem sabe olhar
A flor também é
Ferida aberta
E não se vê chorar
O sol ensolará a estrada dela
A lua alumiará o mar
A vida é bela
O sol, a estrada amarela
E as ondas, as ondas, as ondas
EU LÍRICO
“(…) na palavra livre se contém toda a
possibilidade de o dizer e pensar.”
Fernando Pessoa
(Livro do Desassossego. Lisboa: Editora
Tinta da China, 2017. p. 397)
O pequeno conto “Loucura”, como puderam constatar durante a leitura, traz uma narrativa na primeira pessoa do singular, numa história construída a partir de duas músicas do Chico, distanciadas pelo tempo, porém atreladas na temática: aquela que mantém o espírito do carnaval mesmo após o fim da festa. Ela Desatinou é de 1968. Dura na Queda, de 2000; essa, aliás, recebeu um subtítulo: Ela Desatinou nº 2, o que evidencia a conexão musical entre as canções.
Muito a propósito, fiz questão de inserir várias expressões e versos das duas músicas no decorrer do conto – tais referências estão em itálico –, a fim de demonstrar que é possível fazer montagens de trechos de determinada obra literária e poética, embora pudesse também ter alterado os termos, evitando suas inserções de modo literal, preservando, porém, o sentido.
A liberdade na expressão da escrita é uma das coisas mais formidáveis que o ser humano já criou; a imaginação sendo capaz de construir mundos, fazer nascer verdadeiras pessoas, personas, as personagens. É um sistema de comunicação muito peculiar. Qualquer elemento comunicativo contém o emissor, o receptor e a mensagem. Basta imaginar a mais simplória das situações: em plena rua, alguém pergunta ao outro onde ele pode encontrar a parada de ônibus mais próxima. O emissor é o que fez a pergunta, o receptor é o outro que foi abordado na rua, e a mensagem é o questionamento, um pedido de ajuda.
Na literatura – e na arte em geral – esse fenômeno se mostra presente, mas, como disse, se torna muito peculiar a comunicação porque existem diversos elementos gerando situações variáveis. Nem sempre o escritor é o emissor, quem vos fala. Ali pode estar outra pessoa ou uma personagem, o que se costuma chamar de eu lírico. A mensagem se submete a várias possibilidades, uma vez que toda obra de arte está sujeita às interpretações, de acordo com o receptor. Esse modo de assimilar a comunicação sofre influência não só em relação à pessoa que recebe a mensagem, mas principalmente ao tempo e espaço em que a obra artística está inserida. Quando se fala em tempo e espaço, diz-se da cultura, dos valores, das circunstâncias em geral; de tudo enfim que se transforma de acordo com o período ou com a localização geográfica de um povo.
Vejam que interessante. Se pararmos para pensar, o conto “Loucura” não é uma história narrada por mim, muito menos pelo Chico – embora eu tenha me utilizado de duas músicas dele e até de versos dessas canções –, assim como Ela Desatinou e Dura na Queda não são histórias contadas pelo Chico, embora ele seja – como artista, ao compor e cantar ambas – o aparente emissor da mensagem.
O eu lírico de Ela Desatinou é alguém a observar aquela que vem da folia, em sua tentativa de perenizar o carnaval, e chega a perceber o incômodo das demais pessoas na avenida, que já retornaram à vida normal, pois é quarta-feira de cinzas, e, no entanto ela insiste em ser feliz, emergindo a inveja dos outros. Essa pode ser a mensagem. Falo dessa forma condicional, porque a música certamente está aberta a várias interpretações. Alguém há de concluir, por exemplo, que o eu lírico também está com inveja da desatinada, até pelos versos finais repetitivos: e ela ainda está sambando, ela ainda está sambando, sambando… Vai depender de cada um a maneira como entende que essas palavras são jogadas ao vento, se com alegria, entusiasmo, desconfiança ou até raiva.
Quando surge Dura na Queda, a história parece ser a mesma. Aquela própria personagem da música Ela Desatinou, quem sabe até no mesmo cenário e local, uma repetição da história, contada de outra maneira, com outras palavras musicadas. Chico inclusive fez questão de colocar o subtítulo na canção posterior: Ela Desatinou nº 2. Sim, mas também pode ser outra brincante, bem como outro eu lírico que observa a cena, e talvez por isso esteja a contar o que vê de maneira diferente.
Preferi, porém, colocar nas duas canções o mesmo eu lírico e mostrar sua experiência na linha do tempo. Claro que me utilizei do marco cronológico de cada uma, por isso faço referência no conto ao contexto histórico e cultural em que as duas músicas foram feitas: 1968 e 2000. E realizo uma conexão entre elas, como se Dura na Queda fosse o reencontro do eu lírico com aquela mulher que desatinou.
Todavia, o eu lírico do conto “Loucura” pode não ser o mesmo eu lírico de Ela Desatinou, tampouco o eu lírico de Dura na Queda. Do mesmo modo como acredito que em nenhuma das duas canções o eu lírico venha a ser o Chico.
Mudam os emissores nessas expressões artísticas, assim como a mensagem das narrativas – do conto e da canção – não é a mesma, embora possa ser, se assim desejar o receptor. A este, por sua vez, cabe a liberdade de entender o conto “Loucura” na forma conjunta de dizer a história das músicas, ou representar nova perspectiva daqueles momentos, a partir da inspiração das canções.
O eu lírico é um extraordinário recurso de construção da arte, que faz com que a imaginação ganhe voos muito além das limitações pessoais de quem escreve ou compõe. Por isso é possível fazer, por exemplo, uma canção na qual o eu lírico seja uma mulher submissa, sem que ali se tenha a aceitação do machismo. Simplesmente é a história narrada naquela circunstância. Todos os grandes artistas fizeram e fazem isso, basta lembrar de Shakespeare e a quantidade de eus líricos por ele criados com os mais abjetos desvios de caráter.
Ao se incorporar naquela expressão artística, não é você quem canta, e sim o eu lírico. Creio que o desejo de quem cria, seja se afastar da mente e do corpo, até o eu lírico assumir vida própria. Certamente é o ponto alto da maturidade de quem produz arte. Um Chico Buarque que ainda não havia chegado aos 50 anos de idade manifestou isso na canção Tempo e Artista (1993): “Já vestindo a pele do artista / O tempo arrebata-lhe a garganta / O velho cantor subindo ao palco / Apenas abre a voz, e o tempo canta”.
E NÃO SE VÊ CHORAR
“De que planeta você veio, minha filha?”,
perguntou o renomado Ary Barroso,
apresentador do programa de rádio
Calouros em Desfile, em 1953, àquela
moça magrinha que usava um vestido
da mãe, todo ajustado com alfinetes.
“Do mesmo planeta que o senhor,
Seu Ary. Do planeta fome!”,
respondeu Elza Soares.
Em meus tempos de menino as novidades chegavam pelo rádio; era o canal exclusivo de surpresas, inclusive musicais. Geralmente no período da tarde o potente aparelho alardeava vozes e sons que iam se espalhando, se impondo de cima de um armário na cozinha até o quintal lá de casa, cenário das brincadeiras de infância após os estudos.
Se acaso você chegasse, no meu chateau e encontrasse aquela mulher, que você gostou. Eu nada entendi sobre o que era chateau e muito menos de quem se falava na música, mas a voz impactante da cantora, isso não esqueci. Era diferente de tudo que eu já escutara até então. Um timbre especial, a rouquidão no final dando voltas na música. Muito depois descobri que a canção era de Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins. E também mais adiante na vida pude saber da artista dona daquela voz única, Elza Soares.
Em 1962, quando Elza fora se apresentar no Chile como madrinha da seleção brasileira de futebol, conheceria Louis Armstrong, mas ela não sabia quem ele era. O incrível foi ele constatar que mais alguém no mundo cantava com a voz rouca, a marca registrada dele. Pediu para ser apresentado a ela e a encheu de doces palavras, chamando-a de daughter. Elza se enfureceu, não entendendo porque aquele músico queria chamá-la de “doutora”, até explicarem que ele falava filha, em inglês. Ela própria contava essa história às gargalhadas. Armstrong disse ali mesmo que Elza era sua filha musical e de alma. Cantaram juntos em seguida, para delírio de todos que tiveram a sorte de estar naquele local na inesquecível noite.
Dali surgiu a oportunidade de fazer carreira nos Estados Unidos com o aval de Armstrong, mas ela renunciou certamente em nome da liberdade que tanto prezava, inclusive a de permanecer com sua grande paixão, o jogador de futebol Mané Garrincha, que abriria mão da então família para ficar com Elza.
Muitas são as histórias ao longo de sua vida, desde a desaforada e certeira resposta a Ary Barroso em sua primeira apresentação na Rádio Tupi, passando pelo inesperado encontro com Louis Armstrong, até sua moradia na Itália, já com Garrincha, onde estreitou a amizade com Chico e Marieta, casal que à época ali morava, também num exílio inevitável ante o temor da ditadura militar que endurecia seus pavorosos métodos a partir do final de 1968.
Elza foi reconhecida muito cedo em seu talento, viajou o mundo e fez fama, com seu estilo por demais surpreendente, ao ponto de a BBC de Londres a considerar, em 1999, como a cantora brasileira do milênio, junto a outras vozes internacionais, merecedoras desse título.
Ela sempre fazia questão de dizer o quanto amava o Chico, por sua generosidade, sobre a maneira como ela e Garrincha, já decididamente unidos, foram acolhidos na Itália no final dos anos 1960. Daí veio a amizade e futuras parcerias em gravações, feito na imperdível Façamos (Vamos Amar), versão de Carlos Rennó para a canção Let’s do it, Let’s Fall in Love (1928) de Cole Porter.
O disco Do Cóccix Até o Pescoço, de 2002, tem a primeira gravação de Dura na Queda; é a música inaugural desse álbum de Elza Soares.
Chico Buarque, no documentário “Elza & Mané – Amor em Linhas Tortas”, de Caroline Zilberman (Globoplay, episódio 4, 2022), conta de que modo a canção foi entregue a Elza.
“Ela apareceu lá em casa, com o produtor dela, o nosso querido Gonzaga, e pedindo uma música pro disco novo dela. E eu falei: não tenho música, acabei de gravar um disco [certamente se referia ao álbum As Cidades, de 1998, pois a música é de 2000]. Quando eu tava falando isso lá em casa, falei: é claro que eu tenho! Eu descobri que eu tinha feito, sem querer, sem pensar, eu tinha feito a música que tinha tudo a ver com ela. Não foi feito pra Elza. Mas foi… é… porque ela é dura na queda, já caiu muito! Metaforicamente, e literalmente, muitas vezes na vida”.
Esse literalmente referido pelo Chico parece ter ligação com o episódio que se deu em 1999, quando Elza sofreu uma queda do palco de dois metros, o que lhe causou fraturas, logo após cantar a primeira música numa apresentação na casa de show Metropolitan, no Rio de Janeiro, escolhida na ocasião pela BBC de Londres para representar o Brasil no projeto The Millennium Concert.
A queda de fato foi alarmante, mas ela já se acostumara a outras, as metafóricas, como referidas pelo Chico. Sua qualidade de mulher, preta, envolvida com um ídolo do futebol, o Garrincha, casado à época, rendeu-lhe muitas tentativas de rasteiras sociais.
Mas ela nunca se viu chorar. Seguia agarrada ao seu talento e com imensa disposição para divulgar sua arte, pouco importa se a achassem perdida, a cantar seu enredo fora do carnaval. Dura na Queda, ressaltou Chico, não foi feito pra Elza, mas foi… Eis aí novamente a figura do eu lírico, eixo central ao redor do qual gravitam as interpretações. Essa música pode ser vislumbrada com Elza a contar sua própria história, cantando, pois ela personifica o eu lírico, ainda que o faça se referindo a alguém na terceira pessoa.
Com seus 91 anos de idade, Elza estava em plena atividade. Além de shows, participava ativamente das redes sociais, principalmente no instagram, com publicações constantes em defesa das mulheres, além de chamar a atenção para a discriminação de pessoas pretas, carentes e em condição social de abandono. Feminista autêntica, desde sempre, sabia o quanto ainda estamos longe de abolirmos os preconceitos relacionais e estruturais de gênero e etnia, dentre tantos outros.
Nestes tempos de julgamentos vis, rotulações fáceis e agressões gratuitas, era gratificante acompanhar aquela mulher dizendo tantas verdades e cantando as músicas à sua maneira. A cantora que já foi chamada por Louis Armstrong de minha filha de alma, seguia firme. Chegou a gravar um DVD dois dias antes de cerrar as cortinas definitivas do palco da vida, inclusive com emocionante releitura musical de O Meu Guri (1981), do Chico, acompanhada somente pelo piano de Fábio Leandro.
Dura na queda, Elza foi suave na ascensão derradeira. Consta que teria falado ao seu empresário, na tarde de 20 de janeiro de 2022: acho que estou indo…. e foi, de maneira tranquila. O que fica é o registro de sua arte, a poderosa e inigualável voz, as interpretações marcantes e, infelizmente, o planeta fome do qual ela veio, ainda faminto de humanidade.