IOLANDA (YOLANDA)

CHICO E PABLO CANTANDO

Qual o destino das canções? Os ouvidos, certamente; em vozes diversas, arranjos repensados, interpretações múltiplas, atravessando anos, décadas, gerações. Algumas refletem a sina de ser reinventadas pelo processo lírico surpreendente da versão. Nascem de um modo, cumprem a beleza sonora em sua língua de origem. Depois, quando têm a felicidade do encontro com um poeta de idioma diferente, moldam-se novas roupagens semânticas. Outra trilha se apresenta. A canção terá o privilégio de sua estrutura original, e a ela se agregar uma leitura derivada, o duplo destino paralelo de uma bilíngue sonoridade. Assim aconteceu com Yolanda, da língua espanhola de Cuba, vertida em Iolanda, da língua portuguesa do Brasil.

TERNAMENTE

Naquela tarde de abril de 1970, na maior ilha do Caribe, a pequeníssima Lynn, em seus poucos meses de idade, no colo da mãe a lhe amamentar, ouvia sem entender as notas de um violão, dedilhadas por aquele homem sorridente de voz intensa. Ela certamente não lembraria esse momento no futuro a chegar, a memória infantil parece ficar reservada num local sagrado e intocável, cujo acesso somente se dá em ocasiões mágicas de passeios pelos sonhos. Talvez nessa viagem onírica ela viesse um dia a recordar aquela cantiga mansa, e perceber que os versos ali entoados falavam de um amor eterno. Ainda que em sonho, quem sabe ela até reviveria, o que testemunhou na antiga tarde de sua existência, quando um homem abriu a porta da casa dizendo, ao olhar ternamente para uma mulher: “mira lo que hice por ti!”, enquanto a música inundava o ambiente. Ela provavelmente encontraria nalgum canto da memória a cena do pranto de sua mãe, escorrendo feito rio em busca de um mar de possível ternura. Lynn sequer compreendia, na aurora de sua inocência, que aquele homem, seu pai, se chamava Pablo; e sua mãe, o nome da canção, Yolanda.

Yolanda Benet
Yolanda Benet

Daquele momento tão íntimo, compartilhado somente por Pablo, Yolanda e Lynn, não se imaginava o quanto a música alcançaria espaços e tempos, atravessaria décadas, seria enaltecida em discos e shows, ficaria para sempre registrada na língua espanhola, e ainda haveria de merecer a versão em português de um artista brasileiro que, àquela altura em que Lynn presenciava o nascimento da música, já iniciava sua parceria com Tom Jobim, em letras perfeitamente estruturadas, tal à canção nascida Zíngaro, rebatizada como Retrato em Branco e Preto.

Esse artista, Chico Buarque, alguns anos após aquele momento de ternura no qual Pablo entoou Yolanda ao chegar a casa, mais precisamente em 1978, viajou a Cuba a fim de integrar o júri do prêmio Casa de Las Americas. Naquele evento, Pablo e Chico se conheceram. E porque a vida é tecida nessa imensa e desconhecida trama chamada destino, em 1984 seria moldada a versão de Yolanda para o português. Nascia Iolanda.

VERSOS EM VERSÃO

Traduzir é algo difícil, como se sabe; nem sempre há a mesma sonoridade entre os dois idiomas que dialogam, além das expressões que cada língua, com sua cultura própria, possui. A tradução, porém, tanto quanto possível, se prende a uma tentativa de se trasladar palavras de um idioma para outro, preservando ao máximo o formato original.

Fazer uma versão de versos musicados é ainda mais complexo. Porque traduzir é como revelar o que foi dito por alguém, a outrem; ao passo que elaborar uma variante é a arte de exprimir a própria interpretação do texto ou o que é sentido diante dele. Desta forma, na versão, as palavras se reinventam, as possibilidades se multiplicam.

No caso de Yolanda, Chico percorreu um caminho em busca do lirismo dos versos na língua portuguesa, a sonoridade de nosso idioma, e também a utilização de figuras que melhor funcionassem de acordo com nosso imaginário, que é justamente o que dá sentido à língua escrita e falada.

Em Yolanda, na estrutura original do espanhol, o autor da música começa dizendo que aquela canção não deveria ser somente mais uma canção, pois o desejo dele era o de que a música fosse uma declaração de amor.

Esto no puede ser
No mas que una cancion
Quisiera fuera una declaracion de amor

Essa declaração deveria ser tão romântica, que ninguém reparasse na forma como os versos foram feitos, isso porque, como diz Pablo Milanés, a preocupação com a palavra poderia travar o que ele sentia em abundância.

Romantica
Sin reparar en formas tales
Que ponga un freno a lo que siento ahora a raudales

Aponta-se ali a dificuldade de se dizer em palavras (a forma) o real sentimento (a essência).

Para uma simples tradução dos versos “Sin reparar en formas tales / Que ponga un freno a lo que siento ahora a raudales”, teremos “Sem reparar de tais maneiras / Que ponha um freio no que sinto agora em abundância”; se quisermos traduzir buscando um sentido a partir das figuras de linguagem utilizadas por Pablo, não seria desarrazoado dizer “Sem que a atenção para com a forma / Venha a travar os sentimentos que sinto agora tão intensamente”.

Em Iolanda, Chico transmitiu efusivamente esse sentimento, elaborando uma cadência poética sonora em língua portuguesa, unindo as imagens da inspiração e da palavra. Ele qualifica a forma de “justa”, a projetar essa angústia do poeta procurando nas palavras o sentimento exato, cujo feitio encontrasse o molde certo de onde foi feito, em que não ficasse oprimido e fechado, nem perdido e vago – que lhe coubesse e lhe vestisse, precisamente justo. A beleza na sequência da ideia se dá a cada instante, especialmente quando Chico utiliza novamente a palavra “forma” no verso seguinte, dessa vez como sinônimo de “maneira”. Entendo aqui, pelo emergir da emoção também de uma fonte, sendo a forma uma maneira pela qual ela sai do interior para o exterior, tal um rio, cujo nascedouro vem do âmago da Terra.

Quem dera fosse uma declaração de amor
Romântica
Sem procurar a justa forma
Do que me vem de forma assim tão caudalosa

Entregando ou devolvendo a mesma sensibilidade à própria carne, o que se tem é tanto uma “forma” quanto a outra, de assim expressar que somos feitos em maior parte de água, como se manifestam nossos cinco conhecidos sentidos, interagindo com os demais ignorados. O sangue, a linfa, o suor, a lágrima, a saliva; tudo que jorra ou escorre de nós é do pulso que pulsa, diz da vida viva, a criatura caudalosa que quando seca morre, se não por fora, um tanto por dentro.  Assim, é improvável se ater à configuração do termo, diante da manifestação do sentimento fluido e expansivo, seja num “copo até aqui” de qualquer coisa que se sinta, e que transborda, seja contido por nossas estruturas corpóreas, como num cálice que se cala.

Continuando, observa-se que a versão às vezes se mostra idêntica aos versos originais, como na segunda parte da música.

Si me faltaras
No voy a morirme                                                                                
Si he de morir
Quiero que sea contigo
Mi soledad
Se siente acompañada

Se me faltares
Nem por isso eu morro
Se é pra morrer
Quero morrer contigo
Minha solidão se sente acompanhada

imagem 4

Adiante, diferente, mas não divergente da versão de Pablo, Chico preferiu a imagem da busca pelo colo da mulher amada como zona de conforto e acolhimento diante da referida solidão. Encontro tal curiosidade não como mudança, e sim um complemento lírico ou projeção do sentimento de ternura. Temos que, enquanto Pablo fala da “mão” por onde se guia, acompanha e auxilia, Chico diz do “colo” que afaga, consola e aconchega. É a mão que puxa para o colo que ampara… quando se fala na necessidade de aplacar o exílio com o amor.

Por eso a veces se que necesito
Tu mano, tu mano
Eternamente tu mano

Por isso às vezes sei que necessito
Teu colo, teu colo
Eternamente teu colo

Um dos trechos da música no qual se percebe toda a sutileza e encanto da versão feita pelo Chico, é a passagem que faz referência ao enlace amoroso dentro de um cenário de extrema beleza de véus que se despem, sejam sentimentais, sejam das sete saias clássicas da cigana, que perfaz seu íntimo ritual de entrega do coração.

Tu me desnudas
Con siete razones
Me abres el pecho siempre que me colmas

Chico transfere essa alegoria do movimento do afeto em versos diferentes, fazendo um antagonismo poético entre o ato de desprendimento (despir a pele e abrir o peito) e de acumulação (acumular de amores). É uma aparente contradição naquilo que se junta e depois se solta, o sentimento acumulado se libertando na ação de amar.

A minha pele vais despindo aos poucos
Me abres o peito quando me acumulas
De amores, de amores
Eternamente de amores

Na parte final da música, a estrutura permanece quase intocada. Somente um verso da versão faz uma troca de palavras, a emprestar beleza e sonoridade moldadas em língua portuguesa. Ao invés de manter a estrutura original do espanhol falando que se renuncia a ver o sol em cada manhã (Renuncio a ver el Sol cada mañana), Chico nos diz: “eu abro mão do sol de cada dia”.

Si alguna vez
Me siento derrotado
Renuncio a ver el Sol cada mañana
Rezando el credo
Que me has enseñado
Miro tu cara y digo en la ventana
Yolanda
Yolanda
Eternamente Yolanda
Yolanda
Eternamente Yolanda
Eternamente Yolanda

Se alguma vez
Me sinto derrotado
Eu abro mão do sol de cada dia
Rezando o credo
Que tu me ensinaste
Olho teu rosto e digo à ventania
Iolanda
Iolanda
Eternamente Iolanda
Iolanda
Eternamente Iolanda
Eternamente Iolanda

Muitas tardes vieram depois daquela de abril, do distante ano de 1970, na qual a pequeníssima Lynn presenciou o nascimento de uma canção envolvendo aquele cenário, onde seu pai cantava o nome de sua mãe para ambas. Tantas tardes, e chegou um dia do ano de 1984 no qual Chico Buarque fez sua versão para a língua portuguesa, e outros dias, tardes e noites vieram e virão com Yolanda e Iolanda a ecoar em tantos lugares. Pablo Milanés ainda canta em seus shows essa música, vários artistas gravaram tanto Yolanda quanto Iolanda, e Chico, no show “Caravanas”, de 2017, a interpreta de maneira inédita, mesclando as duas estruturas poéticas, a da letra original, em espanhol, e a sua versão em português.

Tem-se nessa apresentação, todo o encantamento que a música provoca, como se estivéssemos em pleno mês de abril, num florescer constante. Chico canta dizendo o sentimento que lhe vem de forma assim tão caudalosa, ainda que a palavra não encontre a sua justa forma, porque nós é que estamos a bordo do amor, e não o contrário. É sobre o olho ser menor do que a própria lágrima, assim como é o barco, menor do que o rio.

Eternamente Yolanda.

Eternamente Iolanda.

Chico e Pablo, 2007.
Chico e Pablo (2007)

YOLANDA

Pablo Milanés /1970

Esto no puede ser
No mas que una cancion
Quisiera fuera una declaracion de amor
Romantica
Sin reparar en formas tales
Que ponga un freno a lo que siento ahora a raudales
Te amo, te amo
Eternamente te amo

Si me faltaras
No voy a morirme
Si he de morir
Quiero que sea contigo
Mi soledad
Se siente acompañada
Por eso a veces se que necesito
Tu mano, tu mano
Eternamente tu mano

Cuando te vi
Sabia que era cierto
Este temor de hallarme descubierto
Tu me desnudas
Con siete razones
Me abres el pecho siempre que me colmas
De amores de amores
Eternamente de amores

Si alguna vez
Me siento derrotado
Renuncio a ver el Sol cada mañana
Rezando el credo
Que me has enseñado
Miro tu cara y digo en la ventana
Yolanda
Yolanda
Eternamente Yolanda
Yolanda
Eternamente Yolanda
Eternamente Yolanda


Pablo Milanés. Show em Havana (2019)

IOLANDA

Música de Pablo Milanés / Versão de Chico Buarque / 1984

Esta canção
Não é mais que mais uma canção
Quem dera fosse uma declaração de amor
Romântica
Sem procurar a justa forma
Do que me vem de forma assim tão caudalosa
Te amo, te amo
Eternamente te amo

Se me faltares
Nem por isso eu morro
Se é pra morrer
Quero morrer contigo
Minha solidão se sente acompanhada
Por isso às vezes sei que necessito
Teu colo, teu colo
Eternamente teu colo

Quando te vi
Sabia que era certo
Este temor de achar-me descoberto
A minha pele vais despindo aos poucos
Me abres o peito quando me acumulas
De amores, de amores
Eternamente de amores

Se alguma vez
Me sinto derrotado
Eu abro mão do sol de cada dia
Rezando o credo
Que tu me ensinaste
Olho teu rosto e digo à ventania
Iolanda
Iolanda
Eternamente Iolanda
Iolanda
Eternamente Iolanda
Eternamente Iolanda


Simone gravou com Chico Buarque essa versão no disco “Desejos” (1984)

 

LETRA IOLANDA POR E ESP - CARAVANAS 2

 

Autor: mantovanni

Mantovanni Colares - um dia inesquecível: o primeiro encontro com Chico Buarque, ao me receber gentilmente no Camarim, antes de um show em Fortaleza, Ceará, Brasil (15/5/1993).

4 pensamentos em “IOLANDA (YOLANDA)”

  1. Caro amigo Mantovanni,
    Que maravilhoso texto!
    Suas palavras fluem límpidas. As informações não turbam o encantamento da canção.
    Suas notas sobre tradução são cirúrgicas.
    O que mais sobressai é a amorosidade da canção e de sua versão.
    Parabéns ao Pablo, ao Chico, à Yolanda e ao Mantovanni.
    Abraços

  2. Chico, grande letrista/ poeta. Pablo poeta/letrista, que expressa as dores da alma e do amor, por sua mulher e seu povo sofrido, mais creio, feliz.
    Espetacular, o ensaio sobre Yolanda/Iolanda do mestre Mantovanni. Eu, e meu ídolo Chico, ficamos gratos por tão belo texto.
    josetneto2010@Hotmail.com
    Grande abraço.

  3. PARABÉNS, MANTOVANNI. UM TEXTO BEM CLARO, LÚCIDO, CATIVANTE, DE FÁCIL INTERPRETAÇÃO, E QUE TRADUZ DE FORMA BEM SIMPLES, MAS COM UMA CRIATIVIDADE LITERÁRIA DIGNA DE ELOGIOS, TODO O SENTIMENTO MUSICAL DO ARTISTA. NÃO SABIA DA ORIGEM DA MÚSICA, DA VERSÃO ETC., SEQUER QUE HAVIA SIDO TRADUZIDA PELO PRÓPRIO CHICO APÓS O TAL ENCONTRO QUE O DESTINO PROPORCIONOU. O DESTINO NÃO NOS É PERMITIDO ALTERAR, É DIVINO, É SUPERIOR A NÓS E ACONTECE, SIMPLESMENTE. PARABÉNS.

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