FUTUROS AMANTES

Rio de Janeiro, 12 de junho de 1993

      Sou eu.

      Oi… olá… olha, você sabe que sempre começo assim essas cartas, sem saber por onde começar. Sinto-me tanto acesa cá neste início, já me vendo aplacada pelo fim. Talvez seja por aí. Então, faz isso por mim, vai me dizendo como estão as coisas contigo. Imagina se pudesse ser desse jeito!?

      Era assim quando me apaixonei por ti, lembra? Você adivinhava o que eu estava pensando, sentindo, querendo… e fazia tudo em meu nome, dizia a minha própria voz, pois ela também era sua. Eu não me sinto mais assim, mas tenho medo do que possa estar vindo ocupar o lugar disso. Essa não foi uma das minhas mentiras, infelizmente.

      Tem sido engraçado receber correspondências de “diferentes pessoas”. Por vezes tenho a impressão que você permite que o personagem salte, e participe também do interior da carta. Gostou do nome que escolhi desta vez? Aposto que não me reconheceria. Agora você tem conquistado cada vez mais fãs e amigos. Espero que um dia se lembre de que algumas dessas pessoas eram eu. Brincadeiras a parte, gosto de acreditar que esteja se divertindo com isso. Estou tentando, apesar de todos os nossos problemas. Uma brincadeira de bom gosto! Fico rindo escondida até o ano 2000, se o mundo não se acabar por lá, como preveem. Queria que antes a gente se acabasse por aqui, se não na bebedeira, no carnaval da quarta feira. Saudades do seu ombro amigo, onde eu ainda sonho, choro e rio… Por falar em Rio, os dias tem se arrastado aqui, não sei se pelo calor ou pela agonia, e fico pensando até quando conseguiremos ficar assim, cada vez mais distantes. Será como um fio que vai se esticando, até se romper? Creio que sejamos maduros demais para isso.

      Talvez esta carta fique longa, ou não. Tudo escrito à mão, como de costume. Sei que já te mandei tantas cartas, que mais pareciam bilhetes, mas caso esta não se estique nas palavras, assim será em seu pensamento; como tudo que em ti arrancha, sei que se arranja. Tantos anos e você nunca me perguntou por que só faço manuscritos. Agora deu vontade de contar, ainda que não queira saber. É só pular esta parte da carta, e será como se ela aqui nem estivesse.

      Quando eu era adolescente, adorava subir ao sótão da casa da minha avó, por lá eu encontrava coisas inimagináveis, pelo menos para uma garota. Fosse aquela casa uma pessoa, o sótão seria a sombra da sua alma. Certa vez adormeci por lá sobre uma poltrona velha enquanto investigava uns cacarecos. Não sei se por estar ali, mas naquela tarde sonhei ser um pássaro, voava, subia e sumia no céu, uma sensação única! Voltando para casa do sonho que não era a da minha avó, fui fazer um poema, e já sentada à escrivaninha do meu quarto com a cabeça cheia de luz, vi que minhas asas não me deixavam pegar o lápis ou coisa alguma. Aquilo me deu uma aflição medonha! Era o preço da liberdade do voo. Nunca mais eu poderia escrever. Eu lembro quando acordei, suada, o coração disparando. Esse pavor das asas não me deixarem escrever, uma sensação que nunca esqueci. Você vai me achar uma tola, e deve rir disso, mas desde aquele dia eu resolvi que não escreveria com máquinas ou coisas do tipo. É tudo muito curioso em nossa civilização, todo ano aparece algo mais moderno, mas fato é que minha mão se tornou a definitiva asa, onde alcanço meus voos.

      Me dá uma angústia pensar que provavelmente anteontem você estava a derramar essas palavras para mim, que acabei de ler ainda há pouco e me levam a te entregar estas, que estarão em breve a adentrar seu espectro, e talvez produzir sua resposta que me será endereçada. Estou para te dizer que até as suas cartas parecem letras de música, ou vice-versa.

      Meu querido, eu tenho medo do futuro, pois ele guarda um lugar onde nossas palavras são tão antigas, que talvez nem existam. Sempre tento omitir, negar aos demais esbanjando meu olhar pleno e sagaz que você tanto adora, mas você sabe o quanto sou ansiosa. São as coisas que fico imaginando… Qual será o destino das nossas cartas, depois que elas forem lidas (inclusive esta)? Da última vez você demorou a responder, e conheci um silêncio que protagonizou mil anos em poucas semanas. E se alguma de nossas cartas se restasse perdida aguardando a luz dos nossos olhos? Seria como a posta restante ou como a de algum pirata do velho mundo, lançada ao mar dentro de uma garrafa.

      Quem há de saber que somos nós a tentar desatar nossos nós? A gente se distancia, nessa tentativa de desenrolar um fio emaranhado, cada um vai segurando de um lado. E se eu te digo que quanto mais se estica, mais justos ficam os nós, vem você me falar que é depois disso o momento em que o fio se parte, nos desatando um do outro. Eu me embaraço por estarmos tão perto para as pernas e tão longe para as ideias, ou talvez fosse o contrário.  Mas até que trocando cartas dentro de uma mesma cidade, ainda somos dois loucos, como um dia fomos. Essa ideia foi boa, pois as paredes têm ouvidos, e ainda que não tivessem.

      Será o futuro um quarto escuro como se diz por aí, onde hão de encontrar um dia meus poemas guardados, minhas coisas secretas? Conhecerão meus mistérios desconhecidos por mim… Alguém bem sabido de psicologia! Imagine!? Eu fico mesmo muito aflita…

      Ai, eu danei a escrever, pareço doida usando letras, pontos e vírgulas como se remédios fossem… e são. Sei que você é um degustador das palavras. É como uma palma da mão recheada de linhas e entrelinhas diante o olhar feiticeiro de um cigano. Você é meu amigo do peito, eu fico por vezes ali na sala a observar nossas fotografias e noto o jeito de candura com o qual você sempre me olhou… Confesso que algumas já estavam emborcadas, mas a espera me fez ergue-las de novo. Eu não quero que nenhuma das nossas palavras se perca, nem as ludibriosas.

      Sinto-me só, e de certo modo gosto. Me pego falando sozinha, cantando pela casa vazia, e até assoviando. Você se lembra de quando tentava me ensinar a assoviar? Agora todo som que não encontra colisão em teu corpo, ecoa por um espaço de tempo tão curto, que toma minha atenção pelo resto do dia.

      Nesta semana fui procurar por um vestido que já não uso há algum tempo, e me deparei com aquela sua bermuda preta num canto do guarda-roupa. Deu pra sentir seu cheiro. Eu digo que o que mais me preocupa é o tempo… é ele quem vai arrancando o cheiro e o gosto das coisas, assim como do corpo, todos os sentidos… Vagarosamente ele também vai levando as lembranças da mente e os sentimentos do peito, para que não possamos nos dar conta. E ainda permanecemos aqui na demora do sopro de uma vida inteira, pela urgência do “quem sabe”.

      Será que temos a mesma calmaria de uma praia sem ondas? A gente que é aqui do Rio, fica a olhar por demais o horizonte azul… Mas eu reparei que, de longe, todo mar é calmo… Você viu que a maré tem subido silenciosamente? Outro dia me lavou os pés já no calçadão. Eu li uma matéria no jornal que falava de algumas cidades litorâneas do mundo diminuindo de tamanho.

      Desta vez não esperarei por respostas. Se não puder me mandar uma carta, pode ser um retrato, um poema, o que você quiser, quando, e se sentir vontade. A expectativa é o mal do milênio. Há coisas que nem são coisas, não cabem em linhas ou entrelinhas, são de uma beleza tão leve e delicada, que viajam no tempo, ficando ali suspensas no ar, no aguardo de algum suspiro distraído… então, desculpe-me se não falei de amor, é que ele dispensa palavras.

      Um grande e apertado abraço, já que os beijos nunca são para sempre.

cartas envelopes

 

 

 

 

Futuros Amantes

Chico Buarque/1993

Não se afobe, não
Que nada é pra já
O amor não tem pressa
Ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário
Na posta-restante
Milênios, milênios No ar

E quem sabe, então
O Rio será
Alguma cidade submersa
Os escafandristas virão
Explorar sua casa
Seu quarto, suas coisas
Sua alma, desvãos

Sábios em vão
Tentarão decifrar
O eco de antigas palavras
Fragmentos de cartas, poemas
Mentiras, retratos
Vestígios de estranha civilização

Não se afobe, não
Que nada é pra já
Amores serão sempre amáveis
Futuros amantes, quiçá
Se amarão sem saber
Com o amor que eu um dia
Deixei pra você

FUNÇÃO DE AMOR

Tenho procurado aqui – rabiscando ensaios e arriscando contos – lançar meu olhar sobre a arte buarqueana. Desta vez, a liberdade que toda obra artística proporciona ao destinatário que dela se preenche, me fez imaginar que “Futuros Amantes” bem poderia ser uma carta, em resposta a outra que chegara às mãos do eu lírico que entoa a canção. Uma troca de correspondências de quem finalmente aguarda ser correspondido. É um salto um tanto quanto inusitado no desdobramento sensorial que a música proporciona.

“Futuros Amantes”, gravada em estúdio para o disco “Paratodos”, de 1993, também foi interpretada pelo Chico em shows devidamente registrados. “Chico ao vivo” (CD de 1999), “Carioca ao vivo” (CD e DVD de 2007), “Na Carreira” (CD e DVD de 2012) e “Caravanas” (CD e DVD de 2018).

A canção de ritmo inebriante, tal sopro de primavera a beira-mar, apresenta diversas e sutis camadas de linguagem no poema musicado, remetendo a muitas imagens que saltam da música para a realidade. A ânsia, o silêncio, os guardados, e os tão bem guardados que passaram de escondidos a esquecidos, a posta restante (hábito desconhecido nos tempos de hoje), a cidade maravilhosa, ainda que submersa, os escafandristas, os sábios, retratos, poemas, vestígios, as cartas, mentiras… lá está tudo, se não submetendo o amor, a ele submetido.

Quando aí mergulho, nem tão bem paramentado quanto o sujeito a bordo do escafandro, vislumbro a cena deste explorando um Rio, que agora é inteiro do mar. Ávido por possíveis estranhezas de um povo que se restou antigo, ele vaga pela casa, vai rumando o quarto, conquistando coisas que desnudam almas. Não satisfeito ele flutua até o sótão, um vão de memória e sentimento, de onde só se pode fugir escorrendo através da escadaria, ele se dá conta de que, se nos desvãos era onde se sonhava, a casa seria onde se vivia, e o porão onde se morava. É uma metáfora inconsciente que surge, a tentativa de o mergulhador adentrar na história e nas emoções daqueles, que, no passado, viveram suas vidas com a expectativa do amor. Munido de liberdade me arrisco também num rabisco da cena: o escafandrista avista a descida e se lança para o que sugere o caminho de volta, agora, porém, com tamanha bagagem, que jamais lhe permitiria voltar ileso ao seu estado sonhador.

escafandrista na escada

Imagino também cenários de um trabalho da ciência com seu pragmatismo, visando conseguir dados reais (os vestígios buscados pelos exploradores), sendo depois submetidos à análise dos sábios (pesquisadores, professores, filósofos), em suas tarefas subjetivas de atribuir sentido aos objetos encontrados. Sentido este, sobre tais coisas, extraído de estudo tão aprofundado, que correlacionado a outros dessa mesma civilização, sofreria equivocada mutação, transformando cartas, poemas, retratos… em mentiras. Então ali, toda essa certeza que gravita o estudo e a ciência, é estranhamente submetida ao que levita. Paira suspenso no ar, vai enganando todo saber, sublima despercebidamente, transpondo cada camada atmosférica, chegando então a ser aduzido pelo suspiro, tomando qualquer par de pulmões recheado com um coração apertado – o amor! Assim como os sonhos, essa matéria, de nós mesmos é tão própria, que de nós se apropria. Tal como Shakespeare entendia, feitos da mesma argamassa que compõe tanta realidade (“Nós somos do mesmo tecido de que são feitos os sonhos”, minha tradução livre de “We are such stuff as dreams are made on”Próspero, na Cena I do Ato IV de “A Tempestade”).

Chico ainda nos traz a dubiedade ao utilizar o termo “quiçá”, e incuráveis que somos, cremos que seja fato certo – e não provável – que os futuros amantes se valerão daquele amor pairando no ar, numa espécie de ampliação da lei da conservação da matéria, pensada no século XVIII pelo pai da Química, Antoine Lavoisier, tão conhecida por todos: na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Estaria então a mais nobre das substâncias do ser, emoldurada na metafísica dessa fórmula. E foi assim, fazendo arte, especificamente esta, que Chico vestiu suas asas, catou seu arco e fincou em todo peito uma flecha, tal como um homem fez certa vez com sua bandeira na lua. Nesta música, a tão sonhada imortalidade do amor é reafirmada, só que desta vez, sob uma perspectiva jamais pensada, e por sinal bem mais digna de credulidade.

Com a palavra o próprio Chico, no registro feito no DVD “Chico Buarque Romance” (2006), o sétimo DVD da série com a retrospectiva do trabalho do artista:

“Essa música eu tava mexendo no violão, comecei a fazer a melodia, e aí a primeira coisa que apareceu foi exatamente ‘cidade submersa’, isolada de tudo, porque cantarolando parecia … cidade submersa… parecia que a música queria dizer isso, e eu tinha que ir atrás depois, tinha que explicar essa cidade submersa, tinha que criar uma história. Apareceu exatamente a cidade submersa antes de qualquer outra coisa. Aí eu coloquei esses escafandristas e esse amor adiado, esse amor que fica pra sempre, essa ideia do amor que existe, assim como algo que pode ser aproveitado mais tarde, que não se desperdiça, passa-se o tempo, passam-se milênios, e aquele amor vai ficar até debaixo d’água, e vai ser usado por outras pessoas, o amor que não foi utilizado, porque não foi correspondido, então ele fica ímpar, e fica ímpar pairando ali, esperando que alguém apanhe e complete a sua função de amor”.

CHICO FALA COMO SURGIU “FUTUROS AMANTES”

 

SINHÁ

SÁ SINHÁ

Venham! Desta vez iremos por ali, numa trilha aberta, porém estreita, que culmina numa clareira onde, enquanto a sabiá canta, a água balança. Nalguns trechos, porém, a mata se refez, e deve nos ferir.

Ouvidos abertos… olhos atentos. É num caminho sonoro de letras que a interpretação aperta o passo.

A palavra desconhece o tempo, bem como a arte, ambas são vagões a bordo dos quais viajamos ao passado, e também ao futuro. Sinhá me pegou pela mão, e foi me levando.

Chegando lá eu chorei. Mas voltei, por ver mais adiante as lembranças do agora, onde esse emblemático pedaço da história do Brasil se chama injustiça.

Sinhá

João Bosco/Chico Buarque/2010

Se a dona se banhou
Eu não estava lá
Por Deus Nosso Senhor
Eu não olhei Sinhá
Estava lá na roça
Sou de olhar ninguém
Não tenho mais cobiça
Nem enxergo bem

Pra que me pôr no tronco
Pra que me aleijar
Eu juro a vosmecê
Que nunca vi Sinhá
Por que me faz tão mal
Com olhos tão azuis
Me benzo com o sinal
Da santa cruz

Eu só cheguei no açude
Atrás da sabiá
Olhava o arvoredo
Eu não olhei Sinhá
Se a dona se despiu
Eu já andava além
Estava na moenda
Estava pra Xerém

Por que talhar meu corpo
Eu não olhei Sinhá
Pra que que vosmincê
Meus olhos vai furar
Eu choro em iorubá
Mas oro por Jesus
Pra que que vassuncê
Me tira a luz

E assim vai se encerrar
O conto de um cantor
Com voz do pelourinho
E ares de senhor
Cantor atormentado
Herdeiro sarará
Do nome e do renome
De um feroz senhor de engenho
E das mandingas de um escravo
Que no engenho enfeitiçou Sinhá

OS ANOS 1800, A HUMANIDADE E O BRASIL

Quando a humanidade já caminhava para o final dos anos 1800, acompanhava perplexa as descobertas científicas a apontar um novo mundo. O telefone (1876), a lâmpada elétrica (1879), as ondas de rádio (1888), o cinema e o raio-x (1895). Sigmund Freud publicava em 1895 seu estudo sobre o inconsciente e os sonhos.

No universo literário, obras grandiosas eram editadas nesse período. Guerra e Paz, de Liev Tolstói (1869). Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski (1866). Orgulho e Preconceito, de Jane Austen (1813). Folhas de Relva, de Walt Whitman (1855).

Antes de 1814 Beethoven já alcançava seu ponto alto de criação. Debussy fez suas mais conhecidas cantatas entre 1888 a 1889. Brahms estreia seu Réquiem Alemão em 1868, e Schubert, em 1824, embora doente, compunha.

Todavia, mesmo com tanto engenho e arte rondando o mundo, no Brasil o século XIX se aproximava ainda com a terrível chaga da escravidão, considerando-se normal um ser humano ser proprietário de outro ser humano, nesse comércio de almas vindas da África, a gerar a separação de uma sociedade entre pessoas livres e cativas.

navio negreiro 2

Os números impressionam. Foram praticamente quatro séculos de escravidão na América. Quase 36 mil viagens de navios negreiros entre África e Brasil. Estima-se que 4,8 milhões de africanos tenham desembarcado no nosso país, e existia sim escravidão em todo o território nacional, não só no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Pernambuco, como se costuma pensar. Do Rio Grande do Sul ao Amazonas fincou-se a vergonhosa marca da mão de obra escrava. O Brasil foi o último país nas Américas a debelar a exploração do seu semelhante pela cor da pele, alegando tê-la de fato abolida. Esses dados estão na obra “Dicionário da Escravidão e Liberdade: 50 textos críticos”, organizada por Lilia Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes, publicada pela Editora Companhia das Letras.

Outro livro precioso sobre o tema, “O Destino da África – cinco mil anos de riquezas, ganância e desafios”, de Martin Meredith, da Editora Zahar, nos chama a atenção para o fato de que, entre o século XVI e o XIX, aproximadamente 24 milhões de homens, mulheres e crianças da África foram vítimas dessa barbárie, atravessando o atlântico rumo às Américas.

Um aspecto, porém, vale ser ressaltado. Fala-se que a escravidão é própria da humanidade, pois desde os mais antigos agrupamentos os vencidos na guerra se transformavam em escravos, para servir aos vencedores. Utiliza-se até o argumento de que na própria África a escravidão era uma característica comum em várias sociedades daquele continente, tribos escravizando outras tribos. Todavia, nessas diversas formas de escravidão, havia a libertação dos descendentes desse fardo, pois não se tinha como identificar nos filhos dos vencidos a marca dos pais como não libertos.

É nesse detalhe que se revela toda a perversidade da escravidão do americano para com o africano, porque os filhos de escravos não se livravam da cor de origem, a pele continuava a demonstrar que aquele era descendente de seu povo injustiçado e, portanto, escravizado continuaria, nem que fosse no preconceito, como ainda acontece em pleno século XXI.

Lilia Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes tocam com precisão nessa ferida, ao lembrar que “[a] escravidão que atou, durante cerca de quatro séculos, a África à América, mostrou-se especialmente perversa porque os seus efeitos se prolongaram nos descendentes dos que lhe sofreram a violência. Se em quase todas as sociedades se discrimina e socialmente se exclui, humilha ou rebaixa quem tem antepassado escravo, este podia em muitas delas – em Roma, por exemplo, ou em Axante, ou no Mali – conseguir esconder sua origem, porque cativo e homem livre não diferiam na aparência. No caso americano, isso não era possível, porque escravo era sinônimo de negro” (ob. cit., p. 14).

negros sentados

Eis o porquê da escravidão se manter sorrateira sob as camadas sociais, aflorando no dia-a-dia de modo brutal, como o emergir do monstro na lagoa, chegando por vezes à violência extrema. Quem há de esquecer que por detrás da morte de grandes figuras humanas defensoras de valores universais, no perverso assassinato, também não estava o gosto pela escravidão, o ódio da cor? Muita gente há sim de esquecer, o que não faz com que isso deixe de existir, outras estão a negar, o que infelizmente também não as fará deixar de sentir. É inimaginável, mas é real, com provas fatídicas e estatísticas.

Martin Luther King que o diga. Ativista político e líder do movimento dos direitos civis nos Estados Unidos nos anos 1950 e 1960, contra a discriminação racial, foi assassinado com um tiro. Outro ativista norte-americano daquele mesmo período, Malcom X, um dos mais populares líderes pelo movimento dos negros, também morto a tiros.

No Brasil, quando se tem a conjugação de elementos identificadores dos que mais sofrem preconceitos sociais, tudo isso se funde numa vergonhosa e injustificável covardia. A pele preta de uma mulher homoafetiva é metralhada no meio da rua, sem chance de defesa, após ela cumprir sua função pública de representante do povo. A parlamentar que conheceu a morte através de uma execução, em pleno ano de 2018, ao ser atingida, concedeu vida eterna à democracia: Marielle Franco.

Em meio a toda essa mancha histórica da escravidão, um ponto se destaca, a beleza que surge da tragédia, porque a África, com sua imensidão, as inúmeras comunidades, as diversificadas línguas, os múltiplos costumes, tudo isso veio para as Américas, juntamente com os africanos. Os talentos daquele povo passariam a incorporar nossa própria história, na mistura das raças, na construção de outros paradigmas no campo das artes, da dança, da música.

De fato, dentre esses talentos, destacavam-se os musicais dos benue-kwas. Como nos informa Martin Meredith, “[s]uas apresentações envolviam o rufar polirrítmico de tambores de diferentes tons – ritmos que acabariam por se incorporar à produção musical no mundo moderno” (ob. cit., p. 39). E entre os descendentes dos benue-kwas estão os iorubás.

Pois é justamente nesse cenário de iorubás, escravos, senhores de engenho, herdeiros sararás e sinhás, que João Bosco e Chico Buarque trouxeram ao mundo musical uma das mais belas, profundas, enigmáticas e emocionantes canções que já se fez, num retrato social e antropológico marcante dessa nossa raça brasileira. “Sinhá”, feita em 2010, é o sopro lírico por sobre as feridas da vergonhosa escravidão, a chance de olharmos para nós mesmos e compreendermos nossa brasilidade.

familia mesa com escravos

“As palavras estão cheias de falsidade ou de arte; o olhar é a linguagem do coração” pontuou William Shakespeare. “Os olhos são a janela da alma e o espelho do mundo”, é a frase atribuída a Leonardo da Vinci. A proposta deste blog é de abrir as janelas da alma do Chico enquanto artista, e mesmo que por estreitas frestas, possamos juntos, enxergar seu coração, aquele que fala na linguagem da arte, espelhando o mundo que é. A arte é para ser interpretada sob diversas formas, em inúmeras miradas, com suas incontáveis possibilidades. A meu ver é o que dá ao artista a qualidade de viajante do tempo e do espaço, a bordo de sua arte, que ganha vida própria aterrissando na alma de seus espectadores.

Pois desta vez me dispensei elaborar qualquer conto ou ensaio tendo por inspiração essa música. Sinhá é pujante como narrativa, a poesia veste sua musicalidade com beleza e dramaticidade únicas, insuperáveis.

Convido-lhes a lançar um olhar nas frestas por onde escapam as luzes, as janelas da alma do Chico, sempre a nos iluminar. Permitam-me o conduzir num percurso interpretativo da maneira como enxergo Sinhá, unindo os elementos dos fatos ali contidos e o contexto histórico no qual a música se alicerça, procurando desfiar os novelos das linhas discretas e nem sempre aparentes da linguagem lá desenvolvida. Ao final, haveremos de mergulhar na euforia dos tambores que encerram a canção, em nítido recado de comemoração e anúncio das nossas sempre mágicas possibilidades da união perpétua entre África e Brasil. Êri êre!…

mapa africa

ENTRE NHORAS E MAMAS ÁFRICA

Por vezes penso que a história da música possa ter se passado por volta de 1864, considerando que nesse período, embora decadente, a cultura da cana-de-açúcar ainda se mantinham padrões escravocratas, e nessa época a sociedade já avançava rumo às conquistas abolicionistas, que tiveram seu apogeu em 13 de maio de 1888, com a abolição formal da escravatura.

O ponto de tensão se torna bem maior naquele período, considerando a expectativa, dos então escravos, pela liberdade anunciada socialmente, pois desde 1850 não mais se fazia o tráfico de povos africanos ao Brasil. Somando-se a isso, o inconformismo dos senhores de engenho por saber que em breve perderiam a mão de obra que para eles era a conveniente, considerando a sociedade patriarcal e a cultura da violência vigiada – estendida também à mulher e filhos.

Nessa época, várias revoltas escravas já haviam estourado no país, como na Bahia, entre 1807 a 1820, e nos engenhos entre 1814 e 1835, além das que estavam prestes a ocorrer, como a do Maranhão em 1867 e em Campinas em 1882.

A canção indica o local exato do território no qual se tem o drama: uma fazenda de engenho. As referências são constantes a esse cenário (“moenda”, “engenho”, “senhor de engenho”). Foi em Pernambuco onde mais se desenvolveu a cultura da cana-de-açúcar com mão de obra escrava, mas não estou certo de que a história tenha se dado lá. Cheguei a pensar também no Rio de Janeiro, por uma referência que deixo em aberto mais adiante, já que é etéreo todo enigma buarqueano.

engenho

Bem, quando comecei a catar minhas divagações acerca de Sinhá, minha memória só fez brincar. Num desses saltos cheguei à música Saruê, de Paulo César Pinheiro e Sérgio Santos, para o disco Áfrico: quando o Brasil resolveu cantar. Lá a senhora também ganha um apelido, e dá a luz ao filho de um homem preto escravizado, que por sua vez seria o herdeiro do senhor seu marido. Simultaneamente uma mulher preta escravizada da à luz ao filho desse mesmo senhor de posses, que por sua vez seria o herdeiro da escravidão. A partir daí, mais um salto, chegando a Chico César, que lindamente falou sobre o drama dessa mulher preta chegada aos dias de hoje, em Mama África, faixa do álbum Aos Vivos, tudo denunciando que a condição de status só era reconhecida se advinda do homem. Assim, antes da abolição, eram dois caminhos completamente distintos para um mesmo resultado da miscigenação. A então escrava jamais obtinha de fato chance de salvar seu rebento da chibata. E no caso do homem a única maneira de livrar o filho da senzala, era como um saruê, possível ascendente do herdeiro sarará de Sinhá. Fato este, possível gerador do seu narrado tormento.

Aqui em Sinhá, o primeiro eu lírico é o homem escravizado. Ele é quem fala até a penúltima estrofe, quando passa então a palavra ao seu descendente, após seu último suspiro.

Em todo esse trajeto percorrido por eles dentro da música, observamos tantos verbos ao longo de seus versos, sinalizando de modo veemente para o ato de agir, em momento presente ou pretérito. Prevalecendo assim esse indício de maior movimento da primeira a quarta estrofes, onde o então escravo fala não apenas das próprias ações, como também de atuação dos demais personagens, a sinhá e o senhor de engenho. O ritmo da quinta e última estrofe muda juntamente com a sua voz e o seu tempo. O herdeiro sarará da atualidade revela-se aqui autor e cantor do conto, agindo ali diante de nós sem qualquer verbo vinculado a si, mas claramente à sua obra prima. Por fim, o último indicativo verbal, neste caso pretérito, é dito pelo segundo eu lírico, sobre o primeiro, seu honroso, e agora honrado, antepassado.

escravo forte

POR DEUS NOSSO SENHOR

De início não sabemos exatamente quem é seu interlocutor, bem como o cenário no qual ele profere as palavras, negando ter feito algo mal visto em relação à determinada senhora da Fazenda – a Sinhá, esse era o termo utilizado pelos escravos para se referir à “senhora” (Dicionário Caldas Aulete) –, mas ao que parece, ele ainda não está sofrendo um suplício ou castigo físico, pela forma, de certo modo calma, com que fala:

Se a dona se banhou
Eu não estava lá
Por Deus Nosso Senhor
Eu não olhei Sinhá
Estava lá na roça
Sou de olhar ninguém
Não tenho mais cobiça
Nem enxergo bem

Ele fala na forma condicional (se) embora dê com detalhes o ato que a Sinhá estaria fazendo, no caso, tomando banho. A imagem do banho da sinhá remete de imediato o ouvinte da música à questão da possibilidade de observação por parte do homem cativo naquele ato do banho, tendo como consequência o desejo. Por isso consta por três vezes essa indicação de uma possível mirada (olhei/olhar/enxergo) e o remate da vontade (cobiça), todos negados pelo escravo, que de pronto já se utiliza de um amparo na própria cristandade que norteia a sociedade branca, como num gesto em busca de confiança, a mostrar que ele de fato está falando a verdade (Por Deus Nosso Senhor/Eu não olhei Sinhá).

Entretanto, aquele homem bem sabe, o destino dele é o de ser torturado, e percorrendo arrastado o trajeto do local onde estava, até o tronco no qual seria acorrentando e supliciado, ele tenta convencer seu interlocutor – que não sabemos bem quem é – de que está falando a verdade.

homem branco castigando escravo

TÃO AZUIS?          

A segunda estrofe permanece na voz daquele homem cativo, mas agora a dinâmica sugerida é de um diálogo, na interação e crescente dramaticidade com o passar dos versos, que alternam ações dele e do seu interlocutor.

Ao ser posto no tronco, o escravo indaga se é de fato preciso fazer aquilo, pois ele insiste que nunca viu Sinhá, numa assertiva que já beira ao pavor, na expectativa do que está por vir, concluindo que, por ser acusado de ter estado com Sinhá – mas não sabemos ainda de que maneira – ele pode sofrer algo grave fisicamente, até mesmo uma castração, considerando a possibilidade de punir sua lascívia (Pra que me aleijar). E mais uma vez os elementos cristãos se sobressaem num discurso desesperado (juro/Me benzo com o sinal/Da santa cruz).

Pra que me pôr no tronco
Pra que me aleijar
Eu juro a vosmecê
Que nunca vi Sinhá
Por que me faz tão mal
Com olhos tão azuis
Me benzo com o sinal
Da santa cruz

Um ponto é relevantíssimo a essa altura: passamos a saber quem é o interlocutor do homem já ferido. Alguém com olhos azuis. Então não se tinha ali um feitor a realizar o castigo, e sim um branco, o que não era comum. A figura do feitor era justamente a do responsável por inspecionar o trabalho escravo, e era quase sempre um negro que já fora escravo, daí ser tão odiosa essa função. Os brancos deixavam a aplicação de castigos para eles, feitores, por considerar tarefa menor. Então por que nesse caso não era um feitor quem cumpria a tarefa? Nesse ponto as dúvidas começam a surgir. Sim, alguém de olhos azuis iria castigá-lo.

Há uma poética, comovente e triste beleza, no instante em que o então escravo percebe os olhos azuis do seu torturador. Um desconcertante contraste entre a candura quase celestial daquela cor, com o mal que o dono dos olhos pode fazer. A perversidade do gesto que surge contrasta com a mansidão do azul dos olhos (Por que me faz tão mal / Com olhos tão azuis).

Engenhodeaçúcar

NA MOENDA de cana, PRA XERÉM de milho?

A tortura humilha, dobra o corpo e a alma do indefeso, não só pela dor, mas pela agonia do que mais está por vir. O homem preto prisioneiro e explorado, estava ali no tronco, agora também aleijado, diante os olhos azuis que lhe impunham cada vez mais castigos. É preciso que ele confesse, assuma o que o dono dos olhos crê que ele tenha feito, ainda que não tenha feito.

O escravo admite ter ido ao açude, local do banho da Sinhá; o que era antes uma conjectura, agora parece ser real. E foi acompanhando a revoada da sabiá por entre as árvores, que ele teria chegado até lá. Como ele saberia se ela teria ou não se despido? Se o tal banho aconteceu, ele já estava em Xerém, para seu trabalho na moenda da cana-de-açúcar.

Na terceira estrofe, assim como na primeira, ele volta a se explicar. Aqui sua argumentação troca a calmaria por uma angústia aflita.

Eu só cheguei no açude
Atrás da sabiá
Olhava o arvoredo
Eu não olhei Sinhá
Se a dona se despiu
Eu já andava além
Estava na moenda
Estava pra Xerém

Aqui, ainda que subentendida, pode haver alguma referência religiosa, inclusive católica, para o despertar da compaixão do torturador branco. Estaria ela no mesmo lugar da moenda, em Xerém, a Capela Santa Rita da Posse, fundada em 1766 na propriedade do Capitão-Mor Francisco Gomes Ribeiro.  Mas o prisioneiro parece antever que o pior está por vir, de nada adianta mostrar possíveis costumes cristãos em busca de piedade.

mãos escravo acorrentada

IORUBÁ

A tortura não era só uma questão física. Suas identidades, como povo, também foram maculadas em pelourinhos espirituais. Além de tentarem transformar seres humanos em mercadorias, quiseram impor a abnegação de suas crenças, a herança preciosa de muitas gerações que moldaram uma cultura riquíssima. Por isso havia o que chamaram de banzo. Aquele choro contido dos escravos, praticamente sem lágrimas, um misto de saudade e revolta, pela esperança crua da certeza de que jamais retornariam às suas terras de origem.

Cada um chorava de acordo com suas raízes. Os iorubás, descendentes dos que dominavam como ninguém os tambores, os benue-kwas, choravam de forma ritmada, num lamento cadenciado a mostrar o banzo de tantas gerações que os antecederam.

Por isso o homem escravizado da canção não teve receio de falar, até mesmo deve ter afirmado como um desabafo, lembrando que estava em terras estranhas à sua, com a religião imposta a seu povo e que não era a das crenças de seus antepassados. Mas era assim mesmo, ele chorava feito sua gente se acostumou a se comunicar, ao som dos tambores, e orava na forma cristã se assim satisfizesse o branco (Eu choro em iorubá/Mas oro por Jesus).

Seu corpo estava sendo talhado, ele sabia que o fecho se aproximava, não resistiria, a hemorragia anunciava o fim. A perversidade não cessava, o dono dos olhos azuis, absurdamente também era dono dos olhos do escravo. Naquele instante ele perfuraria os olhos doces de jabuticaba do semelhante à sua frente. Já próximo à morte, constatando que a luz da vida se apagava, ainda teve forças para indagar ao torturador o porquê de lhe tirar a vida daquela maneira, chegando mesmo a usar o pronome de tratamento da forma como ele ainda podia mostrar o quanto dominava a língua que não era dele, até num gesto de desespero, a buscar o melhor de seu vocabulário, e isso quem diz é o próprio Chico, quando lançou essa música. Vosmecê ele falou antes. Depois vosmincê. Agora, vassuncê.

O drama vai se encerrar para ele com o fim da própria vida, que foi toda derramada, antes em lágrima, agora em sangue. Ele que se despede do pior dos mundos, único que conheceu, acreditando que este será o mesmo a ser visto pelos seus descendentes. A vida, os deuses das crenças de um povo e seus ancestrais, a mãe que ele bem lembra da beleza, tudo isso deu a luz àquele ser. Mas agora sua luz é tirada de modo vil por quem certamente vive nas trevas da própria perversidade.

Até então, o homem escravizado permanece com a palavra. Semelhante à segunda estrofe, aqui também parece haver o movimento de diálogo nas ações, ganhando agora o tom da melancolia de quem percorre um caminho sem volta.

Por que talhar meu corpo
Eu não olhei Sinhá
Pra que que vosmincê
Meus olhos vai furar
Eu choro em iorubá
Mas oro por Jesus
Pra que que vassuncê
Me tira a luz

O escravo morre e não há o que fazer. A história finda. Mas a música, não…

escravos dançando

O CONTO DE UM CANTOR

A última estrofe da música é uma guinada, tanto musical quanto poética. Após o verso no qual o homem cativo anuncia sua morte na luz que é tirada pelo torturador, a estrutura da música é alterada, sobe meio tom, e entra um novo personagem. Agora a letra ganha a voz do cantador da história, a anunciar o fim do conto. E só então se sabe que aquele que fez tamanho mal, de olhos claros como o dia, era um senhor de engenho, e a Sinhá guardava uma gestação, como resultado daquele amor.  O filho passa a ser o fruto da miscigenação e consequente fortalecimento da espécie humana enquanto organismo, ele é um dos nossos antepassados.

Hoje, graças a todos os deuses, independentemente da religião que guarda cada um, somos todos brasileiros, herdeiros sararás. Mas o herdeiro sarará que aqui canta, é Chico Buarque, seja ele oriundo dessa historia ou de tantas outras tão sofridas quanto essa, e carrega em seu sangue a inteligência musical iorubá, a voz do pelourinho, e a aristocracia da Sinhá, que lhe dá ares de senhor de engenho. Sim, no salto da penúltima para a última estrofe, a música viaja no tempo percorrendo gerações, chegando até nós, contando assim a história do Chico, a minha, a sua, a de cada um de nós brasileiros.

Esse turbilhão se desenvolve nessa última parte da canção. Muda-se não só a perspectiva, como também a cadência musical. E também se compreende toda a história, o porquê do ódio do senhor de engenho, a sua ira pessoal, os castigos aplicados por ele próprio ao escravo, e não por um feitor. Certamente isso não teria sido um ato público, ele iria se expor se assim o fizesse, tanto pela curiosidade que despertaria nos outros, a indagar o porquê de o próprio senhor de engenho realizar a barbárie de um feitor, e pelas explicações daquele, no envolvimento com Sinhá.

Somos então projetados para além da compreensão da história, chegando ao tempo perpétuo da festa ao final da canção.

E assim vai se encerrar
O conto de um cantor
Com voz do pelourinho
E ares de senhor
Cantor atormentado
Herdeiro sarará

Do nome e do renome
De um feroz senhor de engenho
E das mandingas de um escravo
Que no engenho enfeitiçou Sinhá           

Morre o escravo, surge a lenda. Desde as senzalas, nos morros, e espalhando-se país afora, a cada dia se contava a história de um escravo que com suas mandingas enfeitiçou Sinhá, e o filho surgido desse mágico encontro passava a ser o novo senhor de engenho. Eles carregavam em seus olhares os ares do tormento, da angústia, por se saberem filhos da dor. Mas dispensando a maldade dentro de seus olhos claros, ou concebendo o brilho em seus olhos escuros, haveriam de ser pais e mães do prazer, bem assim, tal como o samba de Caetano Veloso.

Dizem alguns que o herdeiro sarará teria se vingado pela brutalidade da morte de seu pai, e ele próprio teria apagado a luz do senhor de engenho. Outros já falavam no seu tormento pela morte de Sinhá ao dar-lhe a luz. Eram muitas as histórias. Algum tempo depois a escravidão foi abolida, mas o jovem herdeiro sarará nunca teria demandado a alforria, já carregava o nome e sobrenome do senhor de engenho, torturador. Ele nascera na Casa Grande, sendo batizado como filho legítimo do assassino de seu pai, daí seu ar atormentado.

A música termina com o elaborado batuque. A festa! É a forma com a qual mantemos sempre acesa a luz da memória da história daquele homem que com suas mandingas enfeitiçou Sinhá, e fez nascer a nossa raça.

joao bosco chico

ÊRI ÊRE

No documentário Dia Voa, no qual se revelam os bastidores da gravação do Disco Chico, de 2011, com a preparação e comentário de cada música, ao abordar Sinhá, a última faixa daquele trabalho, a imagem inicial é a de João Bosco, o notável compositor, cantor e músico, afinando seu violão em estúdio, preparando-se, o artista prestes a desfiar notas e impregnar a música com a peculiar batida. Ao fundo, a voz do Chico: “Ele tinha que estar na gravação, porque o violão do João Bosco é único, e tinha que ser aquele violão que ele tocava no MP3 que ele me mandou. Tinha que ser aquele”. Chico recebeu a música em arquivo eletrônico, elaborada por seu parceiro na canção, e a partir dessa música a letra foi moldada para contar a história de Sinhá.

“Qual é a letra desse iêiê que você falou?”, indaga Chico, durantes os preparativos da gravação . “Êri êre”, responde João. Estava ali sacramentada a participação de João Bosco também na letra. Êri êre acabou sendo o mantra final da música, o anúncio da festa daquela gente, da multiplicidade de tambores, o dialeto criado por João para adornar a cantiga em seu final apoteótico, quando todos se reúnem na floresta e fazem ecoar os tambores, anunciando que lá no engenho Sinhá se sentiu enfeitiçada pelas mandingas de um escravo. Aquele homem virou um símbolo, o anúncio de que uma nova raça estava por vir. E da pureza do azul, no olhar feroz do senhor, haveria de surgir a cor brasileira, mesclada com matiz africano, gerando esse tom tão nosso, tão de cada um de nós, que não se restringe à pele e nem mesmo à carne. Aquele homem virou um símbolo, o anúncio de que todo povo era um só, de uma raça chamada humana.

A estrutura da música, que em determinado momento sobe meio tom, diz o Chico, o levou a fazer também uma divisão poética, separando a história em duas partes. A primeira, na qual se desenrola todo o drama envolvendo o Feroz Senhor de Engenho, o Escravo e Sinhá. Após a música subir esse meio tom, eis que surge o cantador, e então percebemos que ele contava seu conto, tal cantador de cordel que ficam no meio da praça, solitário com seu violão, a convidar o povo para ouvir as sagas que foram passadas de geração em geração no boca a boca, e que acabou virando música em mãos de artistas. É o Brasil em plena praça, anunciando não só sua origem, mas a própria criação do povo brasileiro.

O cantor atormentado põe fim à sua tormenta ao dividir com os ouvintes sua história. Isso anuncia que desde o nascimento do primeiro filho da mãe gentil Sinhá, firmou-se nossa identidade, com o ritmo do samba em suas origens iorubás, renascido em pitadas da bossa brasileira. Essa festa do samba não ocorre somente nas florestas, mas também nos litorais, nos sertões, nos pantanais, nas caatingas, nos pampas, em todo esse imenso país há um som que nos identifica como raça. As mandingas de repente se resumem no dialeto criado por outro brasileiro em seu gingado. Êri êre!

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A SINA DE SINHÁ

Sinhá foi, simbolicamente, a responsável pela miscigenação de nosso povo, por isso ela é a protagonista da história, a canção leva seu nome. Pouco sabemos de Sinhá, nada de sua imagem, ela não tem voz na música, reforçando assim que naquele tempo, para não dizer até hoje, as mulheres não tinham suas vontades respeitadas ou opiniões ouvidas, e que tudo se resolvia entre os homens. Tudo decorre em função dela, mas a ação se desenvolve entre o Feroz Senhor de Engenho e o Escravo, e ao final surge o Herdeiro Sarará, casado com seu tormento, mas acompanhado de seu violão.

Assim, Sinhá gravita por toda a cantiga, como se fosse uma estrela guia. Ela tem seu destino a cumprir, que é acolher em seu útero gentil todos os filhos deste solo, o compartilhamento das raças, fazendo a única raça de fato existente entre nós, cujo nome é raça humana, na beleza de uma mistura, onde tanto o sangue do branco quanto o do preto têm a mesma cor. Naquele momento em que o amor se planta a semente, não mais importará que os olhos azuis do senhor de engenho se mostrem ferozes, embora pela cor, devessem anunciar a paz. Talvez o ódio dele seja o de saber que seus descendentes abandonariam aquela cor, para carregar a luz em outras tonalidades, olhar preto, castanho ou cor de mel. Sinhá pintou este país de cores diversas, todas igualmente belas. De sua formosa palheta espiritual de tintas a compor seus sonhos e desejos, surgiu a arte definitiva de um novo país. Sinhá, a mãe da raça Brasil, hoje sabemos qual foi sua sina.

Foto Leo Aversa
Foto Leo Aversa

A LUZ QUE SE TIRA E A LUZ QUE PERMANECE

O Escravo, quando em sua reta final da existência, exaurido em sangue, mutilado, talhado e humilhado, ainda tem forças para indagar ao seu algoz: “Pra que que vassuncê me tira a luz?”. Ao que tudo indica, não comportava essa interrogação num apelo para evitar o pior, ele já sabia do fecho naquele instante. A pergunta foi uma tentativa de deixar na cabeça do Feroz Senhor de Engenho o recado religioso: vassuncê não é Deus! Tanto se benzeu o Escravo com o sinal da Santa Cruz, orou por Jesus, para mostrar àquele dos olhos tão azuis que sempre temos que nos render ao que transcende, somos mortais, e só Deus põe e tira a luz de um ser.

O cruel castigador nada ouvia, nem alcançava aquelas sábias palavras, vindas de um homem escravizado. Certamente ele só se deu conta do recado quando Sinhá deu a luz ao filho que ele acabou por colocar seu nome e renome, e que seria inevitável aquele rebento, mesmo com ares de senhor, ter a voz do pelourinho.

A luz permaneceu, graças à Sinhá. A luz que se tira e a luz que permanece se uniram num laço indissociável da história que não se apaga com chicote, não se amarra num tronco o destino achando que ele possa ficar prisioneiro. A liberdade é um dom que supera o ódio racial, nem sempre assim foi, mas um dia há de ser, plenamente.

Houve um tempo em que meninos pobres do brejo da cruz, muitos deles pretos, já no Brasil do século XX, chegavam a ficar azuis, tamanha a fome e desamparo daquela gente, depois desencarnavam. Ainda assim, o Poeta sabia que esses mesmos meninos, os sobreviventes, não mais azuis, mas invisíveis perante a sociedade, se disfarçariam tão bem, que ninguém haveria de perguntar de onde eles vinham… faxineiros, guardas-noturnos, bombeiros, babás… eles viraram luz, a luz da sobrevivência, a luz que permaneceu luminosa, acesa. Falta-lhes a luz do respeito da sociedade.

DAS MANDINGAS DE UM ESCRAVO

Escutemos novamente Sinhá. É preciso unir esses mais de cento e cinquenta anos numa só chama e chamado. O conto de um cantor nunca há de se encerrar para nós, pois cada brasileira e brasileiro será sempre herdeira ou herdeiro da alma sarará.

 

 

GOTA D’ÁGUA

A VOZ QUE RESTA

Uma das coisas que mais impressionava Joana enquanto aguardava o ônibus naquela calçada esfarelada de cimento e pedra – talvez o lugar mais decente do conjunto habitacional em que morava – eram as pequenas flores que escapavam pelas frestas daquele chão. Sustentadas em caules verdes finíssimos, elas eram alçadas para fora, sem que ninguém tivesse lançado ali sementes ou derramado uma gota d’água sequer. Era o solo infértil dando a luz.

“A vida que se tem me parece mais teimosa do que a vida que se leva”, era o que ela pensava. Achando um tanto quanto inteligente essa frase, ela duvidava ter saído de sua cabeça, preferindo acreditar que guardou esse pensamento de alguma cena de novela, mesmo não lembrando exatamente em qual delas ouviu isso.

As flores miúdas a deixavam intrigada, desviando sua atenção do calor escaldante naquela parada de embarque ao coletivo, onde o mormaço testava a paciência dos usuários do precário serviço de transporte público. Esse clima insuportável justificava o nome do desbotado, imenso, mas apertado, conjunto habitacional “Vila do meio-dia”. Dizem os mais antigos que o nome foi dado numa mesa regada à champanhe, entre risadas e comemorações dos empreiteiros que fizeram fortuna ajuntando tijolos fajutos, construindo poleiros sob a pretensão de serem apartamentos, e diante de relatos dos operários de que lá o sol parecia estar sempre a pino. Pronto. Fez-se ali o batismo do local, as ratazanas de cartola não dispensariam um momento daqueles para extrapolar o senso sádico sob pretexto de ironia.

A sensação que Joana carregava no peito, porém, era de um imenso alívio. Tudo aquilo em breve seria passado. Um passado sem saudade, pois morrer é não mais lembrar. Ela sofria com lembranças, no final de cada dia ficava a revisar na cabeça o que aconteceu no correr das horas, parecia reviver cada instante à noite, e isso lhe dificultava o sono. Apenas uma recordação ela guardava como a joia rara da sua conturbada mente. O dia em que conheceu Jasão. Ela quase estourou numa gargalhada quando ele disse o nome esquisito. Nem para ser João; era Jasão de Oliveira. O riso dela foi contido pelo brilho dos olhos dele, que pareciam marejados. Não eram lágrimas, mas era como se um agitado oceano ficasse a orbitar seus olhares. “A paixão está para a vida assim como as ondas estão para o mar” foi o que ela pensou imediatamente, sendo para sempre refém daquele homem.

Joana tinha esses rompantes de frases, mas não dizia a ninguém. Mulher tendo ideias era visto como algo perigoso não só na Vila do meio-dia, mas em todo o imenso país, mergulhado numa espécie de bruma cinzenta de vigilância. Ninguém sabia quando a pessoa ao seu lado era um informante, o clima era de medo, ainda que discreto. Os anos 1960 anunciavam movimentos de liberdade e cores, os hippies, porém na nossa década de 70, o que pautava a moral era a estética dos militares, que estavam no poder. Por isso mesmo, Joana não entendia a euforia das pessoas, a dizer aos quatro cantos que agora teriam suas casas próprias. Pagando por mês uma prestação, um dia seriam donas de alguma coisa ali. Nessa Vila; era onde estava o futuro daquela gente, mas ela só conseguia enxergar o proprietário de todos os cubículos abrindo a boca escancaradamente ao receber os aluguéis. Creonte era dono de tudo e assim sempre seria.

O ônibus não chegava, e lembrar Creonte fez subir um ódio pelo seu corpo, que quase estremeceu. Jasão a abandonou, com os dois filhos, para se casar com a filha do todo poderoso. “Aquela esquálida, se não for alma penada é desalmada, até o nome é de dar medo”, pensava Joana. Alma Vasconcelos, assim se chamava, e doía imaginar que Jasão fora interesseiro, estava de olho na boa vida que teria por causa do dinheiro de Creonte, vindo da exploração da pobre gente da qual ele um dia fez parte.

Ela entregou-se em tudo por Jasão, essa era a sensação maior do abandono. Ela passou às suas mãos a alegria, era uma mulher radiante antes de transferir todos os instantes de felicidade para o bem do homem que tanto precisou dela, até para fazer sucesso com um samba, que era dela. Dizem as más línguas que Creonte encheu de dinheiro os donos das rádios para tocar a música toda hora, chamavam isso de jabá, mas o fato é que a cantiga era contagiante, e Jasão fez fama de bom sambista. O que ninguém sabia, é que Joana dedilhou cada nota e costurou todas as palavras daquela música, mas nunca alegou publicamente essa autoria, nem jogou na cara do vaidoso homem que parecia acreditar ser o inspirado autor da canção. Ele mal sabia o que estava sendo dito nas linhas, que dirá nas entrelinhas.

Joana não deu apenas a alegria a Jasão; mais do que isso, ela colocou sua mente, espírito, sua arte, as ideias, tudo nas mãos dele. Ela não via mais serventia no próprio corpo, já que todo sopro de vida que a movia, estava agora por refrescar Jasão. Certa vez ela até achou que isso era parecido com as casas da Vila do meio-dia. Ele se apossou de Joana como se fosse um inquilino, a pagar o aluguel com seu falso amor, e sabia que nunca seria de fato dono dela, ainda que mostrasse com veemência que mandava em tudo, alma e corpo, daí passou a maltratá-la, surrando-a, subjugando-a, humilhando-a, dia após dia, até ela dizer, “toma meu corpo, ele já não me serve mesmo, você já carregou minha alma há tempos”.

O ônibus chegou, pessoas subiram, Joana ficou inerte. Não iria a lugar nenhum, só queria findar em paz seus derradeiros momentos, ali, no meio da rua, ficaria como uma estátua imóvel para servir aos comentários e espanto de todos. E se o que não era assim bem visto, não era enfim bem quisto, jamais a perdoariam pelo que fez. O veredicto de seu julgamento já se dera antes mesmo do ato final. Ela não se importava. Ninguém acreditaria que ela comprou aquele veneno de rato para de fato tentar dizimar a praga noturna a invadir sua casa em busca de comida. Ela não fez nada planejado. Seu único plano era ser feliz com Jasão, foi ingênua por achar que um homem aceitaria depender de uma mulher com mais talento, talvez ele a tenha abandonado por não suportar isso, Joana era surpreendentemente criativa, mas nem se sabia o porquê, de origem humilde, tida como pouco letrada, era quase um milagre o domínio das palavras cuja demonstração ela não fazia em público, somente na intimidade do casal Joana proferia suas ideias, os olhos dele cheios de oceano brilhavam mais ainda, anotava tudo, pedia para ela repetir, suava num sorriso nervoso em mistura de espanto e inveja.

Assim nasceu Gota d’Água. Ela só sabia mirar os olhos dele, ficava presa ali, como a maresia no mar, e no medo de perdê-lo, imaginou ele um dia indo embora. “Eu te mato”, ela disse, e ele riu. “Você me bate, me despreza, você tem seus casos, mas se me largar, eu te mato. Meu coração é o copo d’água que mata a sede, mas é também o pote de mágoa capaz de lhe tirar a vida. Cuidado com a gota que pode fazê-lo transbordar.” Ele se assustou mais com as palavras de Joana do que com a ameaça. “E qualquer desatenção, faça não, pode ser a gota d’água”. O olhar dela quando disse isso foi tão fixo que ele não ousou nenhuma expressão; um gesto podia ser o gatilho.

Jasão nunca esqueceu aquela tarde quente no quarto abafado, onde faziam amor e samba. Ele teve pesadelos terríveis naquela noite, sonhou com a beleza de uma cachoeira que se anunciava entre pedras úmidas e plantas escancaradamente verdes, mas que se avolumava, e era tanta água que parecia o fim do mundo. Depois alguém disse a ele, numa conversa de bar, onde ele contou parte do sonho, que já vira algo parecido, e que se chamava cabeça d’água. “Toda cabeça d’água começa com uma gota”, ele pensou, e ficou muito assustado por ter criado algo tão poético, parecia a Joana, foi aí que ele se deu conta de que ela estava tomando conta dele por inteiro, pois até mesmo quando pensava em algo inteligente, parecia ser por influência dela. Naquele bar entre amigos, na madrugada enquanto ele batucava “seu” samba numa caixa de fósforos, Jasão teve a certeza de que era o momento de deixar Joana. “Pode ser a gota d’água, pode ser a gota d’água, pode ser a gota d’água”, o coro de bêbados repetia os versos da cantiga, copos levantados, eufóricos, anunciando o dia que começava a surgir por detrás de nuvens carregadas de chuva.

Os agitados companheiros de bar nem imaginavam que naquela barulhenta madrugada, a música também era entoada noutro lugar, só que numa cadência triste, a voz solitária de Joana, defronte à cama vazia, de pé, dava o verdadeiro tom da música da maneira como ela imaginou desde quando soprou as primeiras notas e as adornou com melancólicos versos.

Já lhe dei meu corpo, não me servia
Já estanquei meu sangue, quando fervia
Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta

Pro desfecho da festa
Por favor
Deixa em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção
– faça não
Pode ser a gota d’água

“Vou te matar!” Ele ria. “Vou me matar!” Ele ria ainda mais alto. Joana percebeu que essas ameaças não adiantavam, Jasão estava de casamento marcado com Alma, seria uma festa e tanto na Vila do meio-dia, não se falava noutra coisa. Seria a noite toda do casamento com o grupo de samba cantando Gota d’Água, porque depois dessa música o dito compositor de talento nada mais fez. Ela parecia saber exatamente quando teve a ideia da vingança perfeita, foi no dia em que chamou a atenção do filho mais velho, eram garotos com idades muito próximas um do outro, pareciam até gêmeos. Joana deu um grito de repreensão por uma bobagem, coisa de criança mesmo, “Jasãozinho, pára com isso!” Então ela se deu conta de que não era só o nome, o filho carregava a sina de um dia ser Jasão, como todos os Jasões daquele conjunto habitacional, daquela cidade, daquele país, maltratariam mulheres, era melhor nem virarem adultos para carregar esse destino dos homens. Então teria vindo como um facho de luz o pensamento macabro. “Eu posso evitar que eles virem adultos, eu cravarei no coração de Jasão essa marca. Ele há de carregar as duas cruzes nas costas. Vai ser a dor de cada dia.”

Depois desse momento, ela inacreditavelmente agiu com a calma própria dos justos. Quando chegou teoricamente o dia marcado no seu calendário da vingança, alimentou, banhou, e preparou as crianças para o sono. Mas esse sono seria diferente dos demais. No último alimento, haveria também o passaporte da derradeira viagem. Quando o dia amanheceu ela sentiu a rigidez em ambos os filhos, era a consequência e certeza. Saiu de casa sem se despedir daqueles que não iriam crescer, nem careciam mais de abraços e beijos. Rumou em passos firmes para o local onde se pega ônibus na Vila do meio-dia, na bolsa o resto do maldito veneno de ratos, suficiente para si própria.

Ela pensou em tudo isso enquanto a parada de ônibus esvaziava, as pessoas na agitação normal do dia-a-dia, entupindo os coletivos lotados, espremendo-se em busca de chegar no horário correto ao trabalho. Um jovem que ficou praticamente pendurado na porta do transporte olhava sem entender aquela senhora sentada, tão calma, certamente optando por aguardar o próximo ônibus. Sorte dela não ter horário, ele pensou. Mal sabia ele que a hora dela chegara. Mesmo que tivesse prestado mais atenção, não perceberia que ela retirou algo de dentro da pequena bolsa, levando em seguida sua mão a boca. Joana deglutia ali um naco de certa substância, com um ar distante de quem já sabe o que lhe aguarda, e não se importa com isso.

Seria uma imagem aflita, porém rica, imaginar o pranto escorregando pela face de Joana, em seu último suspiro, atingindo aquelas pequenas flores no chão de cimento, regando-as ante a aridez do cenário. Do pote fazendo-se um coração; da gota d’água, a lágrima de mágoa.

Nada disso aconteceu. A morte de Joana foi seca, tal como ela se sentia. Ela deu um grito, ninguém ouviu. Ela se inclinou para o lado, ali ficou, não notaram, demorariam a percebê-la inerte. O desfecho da festa se deu muito antes, com a gota que faltava para a explosão de loucura que a levaria ao gesto de vingança. Ninguém testemunhou esse momento, era só ela e Jasão. Carregando sua mala com os poucos pertences, ela implorou pela última vez, “Não vai, por favor!”. Ele baixou a cabeça, sonegando seus olhos de oceano responsáveis por fisgá-la na paixão do primeiro encontro. Virou as costas seguindo adiante, e ouviu a poucos passos uma voz estranhamente rouca, nem parecia Joana com seu tom sempre muito firme e sonoro.

Aquela frase dita por ela, num eloquente sussurro, o atordoaria até o fim de seus dias. Noite após noite ele sonharia com um imenso e escuro vazio, onde a fala da definitiva separação ecoaria repetidamente: “Jasão, olha a voz que me resta…”.

gota dagua no escuro - 2

Gota d’Água

Chico Buarque/1975

Já lhe dei meu corpo, minha alegria
Já estanquei meu sangue quando fervia
Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta pro desfecho da festa
Por favor

Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d’água

Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d’água

Já lhe dei meu corpo, não me servia
Já estanquei meu sangue quando fervia
Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta pro desfecho da festa
Por favor

Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d’água
Pode ser a gota d’água
Pode ser a gota d’água

Observação: A letra da música aqui transcrita está exatamente da forma em que Chico cantou no show Caravanas – 2017/2018. Após a repetição da segunda estrofe, eis que resurge no primeiro verso, a letra original, trazendo um abismo que parece um detalhe. E desta maneira ela se encontra na peça homônima, qual seja, “não me servia” em vez de “minha alegria”. Essa interpretação dele no show se mostrou ainda mais dramática e com toda a riqueza que o poema musicado carrega em sua história.

 

UM POTE ATÉ AQUI DE MÁGOA

Acalmar, é claro… É dever do injustiçado
manter sempre a cabeça fria, a qualquer custo
Enquanto que a raiva, é um privilégio do injusto
(Joana falando para Jasão)

A matriz de inspiração da obra teatral Gota d’Água: Uma Tragédia Brasileira, de 1975, foi a adaptação feita para a televisão da peça grega Medeia, de Eurípides, no especial da Rede Globo de Televisão de 1973, fruto do trabalho de Oduvaldo Vianna Filho, a quem inclusive foi dedicada a peça.

“Medéia”, especial TV Globo, dirigido por Fábio Sabag, fevereiro de 1973 Fernanda Montenegro como Medeia, e Milton Morais como Jasão
“Medéia”, especial TV Globo, dirigido por Fábio Sabag, fevereiro de 1973 – Fernanda Montenegro como Medeia, e Milton Morais como Jasão
Oduvaldo Vianna Filho
Oduvaldo Vianna Filho

O mito dos chamados argonautas, nas expedições gregas no mar Negro, é a origem do que posteriormente levou Eurípides a elaborar seu texto teatral, especificamente no episódio no qual o rei Eeta, filho do Sol e pai de Medeia, propôs ao argonauta Jasão três difíceis provas, que se vencidas, lhe garantiriam o velo de ouro. Velo, velocino ou tosão era a lã do carneiro alado Crisómalo. A vitória de Jasão se deu graças ao auxílio de Medeia, com quem ele casaria em seguida. A partir daí, Eurípides desenvolve sua tragédia, escrita em 431 a.C, colocando Medeia como ponto central da peça. Jasão a abandona para casar com a filha do rei Creonte, o que leva Medeia a matar os dois filhos, como forma de impor um terrível sofrimento a Jasão.

“A Fúria de Medeia”, por Eugène Delacroix. 1862. Museu do Louvre. Paris.
“A Fúria de Medeia”, por Eugène Delacroix. 1862. Museu do Louvre. Paris.

A transposição desse cenário clássico da Grécia antiga para o Brasil dos anos 1970 transforma Medeia em Joana, “mulher madura, sofrida, moradora de um conjunto habitacional. Jasão aqui é Jasão mesmo, ainda jovem, vigoroso, sambista que desponta para o sucesso com uma música chamada Gota d’Água. Creonte também conserva o nome, e na nossa peça é o todo-poderoso do local, dono das casas, muito rico, o poder corruptor por excelência” (notas de Eduardo Francisco Alves para a edição da Editora Civilização Brasileira).

LIVRO CIVILIZACAO BRASILEIRA - GOTA DAGUA

Fato é, que tamanha densidade escondida nessa remota linha do tempo, chegara aos olhos dos escritores e artistas Chico Buarque e Paulo Pontes. Feita por eles, Gota d’Água: Uma Tragédia Brasileira está centrada em três eixos, como eles próprios esclarecem na apresentação do livro publicado com o inteiro teor da peça.

O primeiro ponto importante dizia respeito à brutal concentração de renda em nosso país, com acentuado destaque a partir da década de 1970, no chamado “milagre econômico”, amparado num autoritarismo estatal, a divulgar programas ilusórios – como o da casa própria, a ser obtida pelo Sistema Financeiro da Habitação, em interminável financiamento –, que de certo modo fez com que a classe média legitimasse tal milagre, encurralando as classes subalternas.

O segundo eixo seria o de demonstrar como o povo sumiu da cultura produzida no Brasil, esvaindo-se a identidade cultural autêntica, fenômeno que teria iniciado nos anos 1950, de tal modo que o povo “ficou reduzido às estatísticas e às manchetes dos jornais de crime. Povo, só como exótico, pitoresco ou marginal. Chegou uma hora em que até a palavra provo saiu de circulação” (trecho da Apresentação). Assim, a preocupação de Gota d’Água seria a de mostrar que nossa tragédia é uma tragédia da vida brasileira.

A terceira ideia fulcral da peça era a de evidenciar a necessidade de a palavra por si só, voltar a ser o centro do fenômeno dramático. A linguagem no teatro ficou em plano secundário a partir da ascendência de estímulos sonoros e visuais sobre a palavra, de tal modo que o corpo do ator, a cenografia, os adereços, tudo isso assumiu evidente protagonismo nas encenações teatrais. Gota d’Água teria o propósito de trazer de volta a palavra, essa a razão pela qual a peça foi escrita em versos.

Esses três eixos continuam a sustentar aquela tragédia brasileira retratada no palco há 45 anos, tornando-a atual e necessária. E as músicas feitas para a peça são preciosidades que reafirmam a genialidade da obra teatral de Chico Buarque.

capa livro gota dagua

 

OLHA A VEIA QUE SALTA

Minhas veias sejam os fatos que as facas trespassam
(Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa,
num dos versos do poema Ode Marítima, de 1915)

Gota d’Água contém muitos elementos de uma brasilidade vertida na figura dos operários, macumbeiros, sambistas, mulheres sofridas, dos pobres, do povo, enfim. Todavia, o centro da tragédia é a personagem Joana.

Joana é aquela cuja veia salta como um grito em busca do espaço na sociedade preconceituosa – o cenário é de 1975, mas bem poderia ser nos dias de hoje –, e não foi à toa que Chico Buarque fisgou de Medeia a referência para construir um eu lírico dos mais enigmáticos, escondido sob camadas quase imperceptíveis na música Gota d’Água, a canção-testamento, veiculadora de um protesto feminista.

Trajano Vieira, ao traduzir e comentar a peça de Eurípides, nos dá a chave de tudo. Muitos olham Medeia como a mulher sórdida, vingativa e assassina. A repugnante mãe que dá fim aos seus rebentos, e por isso indigna de qualquer perdão. Vieira nos lembra, contudo, que Medeia foi a responsável pelo sucesso de Jasão na expedição dos argonautas. Sem ela, ele teria sucumbido. Portanto, ao abandoná-la, Jasão despreza a força feminina que o carregou. “Medeia requer o reconhecimento de um traço intelectual seu”, aponta Trajano, “é o reconhecimento desse valor que no fundo Medeia reivindica” (Medeia. Edição bilíngue. Tradução, posfácio e notas de Trajano Vieira. Comentário de Otto Maria Carpeaux. São Paulo: Editora 34, 2010. p. 168).

LIVROS GOTA DAGUA E MEDEIA

Chico não deixa escapar isso. Além de captar, amplia essa percepção da repreensão à inteligência feminina que já era registrada cinco séculos antes de Cristo na tragédia grega, e mostra a sua pertinência no Brasil dos anos 1970. Eis a força da personagem Joana.

Em várias passagens da peça encontramos registros de que Joana fez tudo por Jasão, como nesse trecho em que ela desabafa com a amiga Corina:

Depois do que eu dei e fiz,
cê acha que Jasão pode ser tão ruim,
tão disfarçado e tão frio, para ser feliz
junto co’a outra, sem nunca pensar em mim?

O próprio Jasão, em determinado momento, mesmo a contragosto, reconhece a crucial importância de Joana em sua vida:

Escuta, mulher, sabe que eu gosto de ti?
Gosto muito, você sempre é meu bem-querer,
sempre. E nunca mais eu vou poder esquecer
você, esquecer o que você fez por mim…

As personagens Joana e Jasão, no teatro
As personagens Joana e Jasão, no teatro

Todavia, é num rasgo de discussão do casal, quando já se mostra irreversível a separação, que Joana explicita tudo o que ela fez por Jasão, ele que nada sabia de samba antes de conhecê-la, acusando-o de ter arrancado dela não somente a inspiração, mas o primeiro refrão e o primeiro estribilho. Finalmente se tem a certeza de que Joana é a autora da música:

Pois bem, você
vai escutar as contas que eu vou lhe fazer:
te conheci moleque, frouxo, perna bamba,
barba rala, calça larga, bolso sem fundo
Não sabia nada de mulher nem de samba
e tinha um puto dum medo de olhar pro mundo
As marcas do homem, uma a uma, Jasão,
tu tirou todas de mim. O primeiro prato,
o primeiro aplauso, a primeira inspiração,
a primeira gravata, o primeiro sapato
de duas cores, lembra? O primeiro cigarro,
a primeira bebedeira, o primeiro filho,
o primeiro violão, o primeiro sarro,
o primeiro refrão e o primeiro estribilho
(…) Você andava tonto quando eu te encontrei
Fabriquei energia que não era tua
pra iluminar uma estrada que eu te apontei

O interessante é que, durante a peça, a música não é apresentada com todos os seus versos, o que poderia levar o espectador a suspeitar que a canção seja de um eu lírico feminino. Sempre quando alguém canta o samba Gota d’Água, só entoa o refrão.

Deixa em paz meu coração
que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção
faça não                
Pode ser a gota d’água

Somente no final do Segundo Ato, quando Jasão se despede da Joana, para seguir seu destino com a filha de Creonte, é que se mostra em toda sua inteireza o conteúdo da música Gota d’Água, e nesse momento se percebe que a canção foi feita por Joana.

A metáfora de um jargão popular, que batiza a peça e também a música, é o alerta que Joana faz sobre o risco de um coração já amargurado, culminar num “transbordamento”, em razão de mais uma mágoa.

Assim é retratada a cena na qual finalmente a música é cantada com todos os seus versos:

(…) Quando você cansar
da moça e tiver saudade da minha
cama, vem pra cá, vem que eu tou sozinha…
Quando quiser… Não precisa avisar…
(Os dois se abraçam; lentamente ele vai tirando o seu corpo do dela e sai; nasce orquestra. JOANA canta)
Já lhe dei meu corpo, não me servia
Já estanquei meu sangue, quando fervia
Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta
Pro desfecho da festa
Por favor
Deixa em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção
faça não
Pode ser a gota d’água

Joana e Jasão em cena
Joana e Jasão em cena

Nesse ponto, Medeia e Joana se identificam plenamente; ambas retratam, mesmo separadas por 24 séculos, a opressão masculina e a não aceitação por parte da sociedade da manifestação de inteligência plena, sempre que advinda de uma mulher.

Joana se faz uma das grandes personagens de Chico, com seu traço marcante de uma ousada feminista. Mesmo sem ser identificada quando se ouve a música Gota d’Água fora do contexto da peça, tamanha é a visceralidade do eu lírico, que conduz o ouvinte a acreditar na voz feminina a entoar os versos. E nas diversas camadas que vão se abrindo em cada um deles, percebe-se algo muito além do sofrimento de alguém que está magoada com seu amor. É também o grito de uma mulher cujo corpo já não lhe servia, porque até a mente foi entregue ao homem que jamais reconheceria ter se aproveitado da inteligência dela. Ali, na canção, está aquela que se conteve diante toda injustiça e humilhação, sofrida em seu corpo de mulher e em sua alma de artista, estancando seu sangue latejante. A gota d’água para derramar aquela mágoa que recheava o pote do coração, no final se sabe, é a desatenção. Desatenção denota indelicadeza, desrespeito.  Ali, não há desrespeito maior do que a ingratidão ao talento feminino, que se faz roubar, mas se quer negar.

E qualquer desatenção
faça não
Pode ser a gota d’água.

Gota d’Água, cuja montagem original se deu em 1975, no Teatro Tereza Raquel, no Rio de Janeiro, com coreografia de Luciano Luciani, cenografia e figurino de Walter Bacci, direção musical de Dori Caymmi e direção geral Gianni Ratto, teve o seguinte elenco: Bibi Ferreira (Joana), Jasão (Roberto Bomfim), Oswaldo Loureiro (Creonte), Luiz Linhares (Egeu), Bete Mendes (Alma), Sônia Oiticica (Corina), Calos Leite (Cacetão), Isolda Cresta (Nenê), Norma Suely (Estela), Selma Lopes (Zaíra), Maria Alves (Maria), Roberto Rônei (Boca Pequena), Issac Bardavi (Amorim), Geraldo Rosas (Xulé) e Angelito Melo (Galego).
Gota d’Água, cuja montagem original se deu em 1975, no Teatro Tereza Raquel, no Rio de Janeiro, com coreografia de Luciano Luciani, cenografia e figurino de Walter Bacci, direção musical de Dori Caymmi e direção geral Gianni Ratto, teve o seguinte elenco: Bibi Ferreira (Joana), Jasão (Roberto Bomfim), Oswaldo Loureiro (Creonte), Luiz Linhares (Egeu), Bete Mendes (Alma), Sônia Oiticica (Corina), Calos Leite (Cacetão), Isolda Cresta (Nenê), Norma Suely (Estela), Selma Lopes (Zaíra), Maria Alves (Maria), Roberto Rônei (Boca Pequena), Issac Bardavi (Amorim), Geraldo Rosas (Xulé) e Angelito Melo (Galego).

 

RECOLHENDO FÚRIAS

O que mais chama a atenção no apartamento da Senhora Abigail Izquierdo Ferreira não é a esplendorosa vista da Baía de Guanabara com o Pão de Açúcar ao fundo, verdadeiro cartão-postal do Rio de Janeiro. Por incrível que pareça, outra imagem capta todos os olhares de quem entra no recinto. A imensa foto do chão ao teto, ao lado do piano, reina soberana na sala; uma mulher, vestida de negro, um braço erguido, semblante grave, a outra mão cerrada com seu punho forte. É Joana, a personagem teatral cuja vida foi gerada pela Senhora Abigail, a Bibi Ferreira, extraordinária atriz e cantora que embalou a arte brasileira ao longo de seus 96 anos.

apartamento BIBI vista pao de açucar

Fotos de Vicente de Paulo, para a Revista Casa Vougue, na matéria feita por Débora Chaves, em março de 2014
Fotos de Vicente de Paulo, para a Revista Casa Vougue, na matéria feita por Débora Chaves, em março de 2014

Bibi Ferreira era tão múltipla quanto surpreendente. Além de diversos musicais, encarnou, como poucas, os gestos e as vozes de Edith Piaf e Amália Rodrigues, ao ponto de não se saber quem era a criadora e a criatura. Depois ainda lançou um ousado projeto de um show com músicas do repertório de Frank Sinatra; a primeira mulher a fazer isso.

bibi ferreira cantando

Bibi se orgulhava imensamente por ter moldado o corpo e a alma de Joana nos palcos. Esse momento de sua carreira a acompanhou por todo o sempre. Em diversas entrevistas, fazia questão de chamar a atenção para o fato de que Gota d’Água era a maior obra da dramaturgia brasileira. Então, antes de cantar a música, recitava um trecho do monólogo que passou a fazer parte de suas entrevistas, era uma verdadeira marca registrada, todos aguardavam sua interpretação da impactante passagem nessa fala da peça.

Eles pensam que a maré vai mas nunca volta
Até agora eles estavam comandando
o meu destino e eu fui, fui, fui, fui recuando,
recolhendo fúrias. Hoje eu sou onda solta
e tão forte quanto eles me imaginam fraca
Quando eles virem invertida a correnteza,
quero saber se eles resistem à surpresa,
quero ver como eles reagem à ressaca

Bibi Ferreira, como Joana
Bibi Ferreira, como Joana

Havia outro laço sentimental que unia fortemente Bibi Ferreira àquela obra teatral. Vicente de Paula Holanda Pontes, nascido em Campina Grande, Paraíba, era seu marido. O Paulo Pontes, coautor da peça, cujo drama se materializaria um ano após deixar esse legado teatral. De saúde frágil, faleceu aos 36 anos, tendo Bibi sempre ao seu lado.

Retrato de Paulo Pontes, de autoria da artista plástica Dayse Pontes, sua irmã, feito para o antigo Teatro Tereza Raquel (no qual se encenou pela primeira vez a peça Gota d’Água), atual Theatro Claro Rio, no Shopping Cidade Copacabana, que tem uma sala com o nome do dramaturgo.
Retrato de Paulo Pontes, de autoria da artista plástica Dayse Pontes, sua irmã, feito para o antigo Teatro Tereza Raquel (no qual se encenou pela primeira vez a peça Gota d’Água), atual Theatro Claro Rio, no Shopping Cidade Copacabana, que tem uma sala com o nome do dramaturgo.

 

O DESFECHO DA FESTA

São três os registros musicais de Gota d’Água pela voz do Chico. Ele não gravou essa música em estúdio, os discos se deram de interpretações em shows. O álbum Chico Buarque & Maria Bethânia ao vivo (1975) contém a primeira, no mesmo ano da obra teatral. Em seguida, no disco Chico Buarque Ao Vivo – Le Zenith, Paris (1990) está a segunda interpretação. Por último, ela é entoada em Caravanas ao vivo (2018), sendo que nesse show Chico divide a canção em duas partes, e na segunda resgata a letra original na metade do primeiro verso (Já lhe dei meu corpo, não me servia), de extrema densidade. Nas demais gravações, não só as dele, mas também de outros artistas que a interpretaram, sempre se optou pela construção mais fluida nesse primeiro verso (Já lhe dei meu corpo, minha alegria).

CAPAS CDS COM GOTA DAGUA

CONTRA CAPA CDS COM GOTA DAGUA

Além de Gota d’Água, a peça contém outras marcantes e memoráveis composições. E como acontece com as músicas do Chico feitas para o teatro, o cinema ou a televisão, as canções acabam por ganhar vida própria, se desgarrando da origem e assumindo suas próprias identidades, num roteiro autônomo de histórias magistralmente contadas em canto. São elas Flor da Idade, Bem Querer e Basta um Dia.

Gota d’Água não foge dessa mágica sina de alçar voos próprios. Ora entoada como samba bem ritmado (feito dos carnavais e das quartas-feiras, disse Jasão), ora soprada quase num choro-canção (Joana assim a vestiu em seu lamento). Também cantada em ritmo de bossa, é possível dar outros tons coloridos à canção e, incrivelmente, com sua abreviada letra – são inacreditáveis dez versos –, quem a interpreta é levado a repeti-la mais de uma vez, sempre com sabor de novidade. Gota d’Água é mais do que atual, é atemporal em sua essência. Ao contrário dos versos que a moldam, a canção é festa que nunca terá desfecho.

foto Bruna Costa
foto Bruna Costa

 

MASSARANDUPIÓ

LONGE DO MAR

Eu já fui menino, hoje sei. Quando criança, não sabia. Tempo não é o correr dos minutos, das horas, dos dias… e assim sucessivamente até onde ousamos contar. Não é isso. Tempo é dimensão exata daquele nosso passado que, quando vivido, era o próprio presente, sem reflexões. Ainda mais na meninice, onde tudo parecia se repetir saborosamente a cada crepúsculo da aurora ou do poente. Aquele tempo de criança… Acabaria? Nunca, nem pensávamos nisso. Era igualzinho ao litoral, dia seguido de dia, o mar de todo o sempre. Meu destino foi ser um menino de praia, que estava logo ali, a poucas quadras da casa onde cresci. Apostando corrida e catando cavaco, ia-se a pé; nas férias, então, era todo dia. Ah o tempo, aquele tempo… passou, e eu me mudei de lá.

Era eu ali, aquela criança fixada ao mar. Mas o tempo foi passando por mim, transpondo a alma infinita de um menino franzino, em mente aflita do homem robusto. Hoje eu sei que sou um passageiro do tempo, e também vou passando, porém, a entendê-lo. É como um meio de transporte que nos conduz do primeiro choro rebentado, ao último suspiro permitido. Ainda me lembro, embarquei no pequeno veleiro, sabiamente vagaroso em sua imensidão de mar e brisa: “bem vindo à vida!”. Quando me dei conta já estava misteriosamente a bordo de um jato, e lá fora não havia brisa, mas ventania. Sim, um dia todos fomos crianças, ansiosas em trocar a saliência da infantilidade pela decência da maturidade. É assim esse tal de tempo, finito por existir, bendito por haver.

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A gente lá vai fazendo um caminho de ida, enquanto a nossa memória, sempre o caminho de volta, e assim como indo podemos nos sentir perdidos, ela também se perde voltando. Quanto maior a distância percorrida, mais a gente se confunde entre o que se deu de fato, e o que jamais marcará nossos passos, já que não caminha pela linha do tempo. É como numa brincadeira de esconde-esconde: “Agora é a minha vez de esconder, pode contar até 10”. Enquanto perdemos a conta, nossa infância fica em silêncio de pulmões encolhidos, sem saber se algum dia será encontrada. À noite quando me deito, fico esperando pelo sono, procurando os tempos idos, nas melhores lembranças, lembradas ou não. E quando fecho os olhos, é ele que eu escuto: o mar. Por vezes, a criança que fui visita meu sonho, ou talvez seja ela que me permita sonhar.

Sonhos… O mar, assim como os sonhos, acabou por nunca se acabar. Ele que não oferece caminhos, mas leva a todo e qualquer lugar, transcendeu a alma do menino e a mente do homem, indo se abrigar no tempo, sendo minha companhia perene de todo rebentar e suspirar. Foi assim que tudo se deu e se dá… Quando me volto para trás vejo meus olhos fechados degustando tanta sonoridade das ondas. Seguindo adiante escuto o que é de odor e sabor, a maresia habitante de Massarandupió (Chico Brown/Chico Buarque), a música onde o tempo mergulha no mar. Por lá, nas profundezas de todo oceano, ele termina por diluir-se tanto, que parece desaparecer.

Chico Buarque com Chico Brown no estúdio de gravação
Chico Buarque com Chico Brown no estúdio de gravação

A criança caminha na praia com o coração arregalado; a emoção que dele transborda na faixa de areia, vem da imensidão do mar. Tudo é desafiador com suas promessas no desconhecido. Na fileira branca onde as ondas se quebram, a fronteira de espuma impõe a força da natureza, no movimento cadente que traz, mas que também traga histórias. Ainda não se pode emprestar o ânimo graúdo do corpo miúdo aos caprichos da arrebentação, sob o risco de jamais reavê-los. É preciso ter a mão pequenina, contida justa, dentro da mão zelosa do pai, mesmo no ímpeto instintivo de soltá-la, mostrando a si mesmo que se carregou tanto de coragem que aquele obstáculo ondulatório não mais o impressiona. E finalmente chegará o dia em que o menino saberá do chão sob a arrebentação, bem ali dando-lhe pé, capacitando o menino a transpor aquela faixa, alcançando um outro lugar do mar, onde ele já será um homem.

ampulheta na praia 1

É o tempo que metaforicamente se distribui pelo mar; a gente se sente sempre presente na arrebentação, é o estado de conflito natural do ser humano. E quando o homem do futuro, que enfrenta o mar aberto rumo ao mundo, olha para a praia, avista o menino que ficou no passado, bem ali onde a perna bambeia. Lá é quando tudo tem tanta graça, que se não for risaria, é risaiada, com breves intervalos para um choro, um resmungo, uma pirraça. Eis aí o bacuri que larga num pé-ante-pé desembestado, como se isso fosse possível. Vai colhendo as conchas que um dia há de contar, e quiçá devolver a Yemanjá. Titubeia, cambaleia, cai sentado, cavuca com os dedos, cava com as mãos, ergue castelos que ainda parecem montanhas, mas são mais reais que os de pedra.

Captura do Pirata, Barba Negra, 1718, por Jean Leon Gerome Ferris.
Captura do Pirata, Barba Negra, 1718, por Jean Leon Gerome Ferris

A praia é ilha deserta de marinheiros e piratas imaginários, navios desenhados pela ideia, que parecem cortar o azul das águas como facas amoladas, a invasão do litoral pelas embarcações com seus cascos pontiagudos imita o barulho das ondas… assim inventa o pequeno aventureiro. Naquele cenário de terra fina e infinita e água salgada e interminável, o menino não conhece a idade, a impressão é a de que há um acordo entre os grãos nos quais se pisa com ares infantis e a ampulheta que deixa por instantes de escoar a areia que marca o correr do tempo. O dia se estica, não acaba nunca, pronto para receber as brincadeiras do infante e o seu viver possível graças às voltas da massaranduba-mor.

Muitos dias vivi assim, num mundaréu de areia à beira-mar, no xuá das ondas a se repetir… nesses versos de Massarandupió embarco rumo a um passado, que nunca passou. Olhos fechados, sinto o chão molhado com a espuma leve do mar cansado, aquilo que foi onda e agora é breve suspiro de água e sal aos pés do caminhante. O sol queima as costas sem agressividade, uma quentura da manhã anuncia o longo dia a levar esse sol de um lado ao outro em curvatura. É como se fosse um rastro no céu guiado por ponteiro de relógio, cada posição a revelar o horário exato para quem tenta matematizar a natureza para além dos ângulos planos. Dez horas, onze horas, meio-dia… agora o arco vai para o outro lado, começa a tarde… uma hora, duas horas, três horas…

cartaz massarandupio

Massarandupió. O nome é curioso, à primeira vista é um enigma sem qualquer pista. Os “ss” sibilam no início, o “du” dá um sobressalto até chegar ao “pió”, como na arrebentação se dá. É uma onda que chega entrando pela porta da frente, logo no divino início instrumental da música, com seu formar, crescer, cair, esticar para enfim recuar deliciosamente ao mar… É uma praia! Chico Buarque compartilha com seu público o significado do nome e também do lugar antes de cantá-la em seu show Caravanas: “Massarandupió é o nome de uma praia na Bahia onde meus netos, quando bem pequenos, passavam o verão, e onde minha filha enterrou o cordão umbilical do meu neto Chiquinho. Chiquinho esse que cresceu, virou Chico Brown, compositor, e meu parceiro na música Massarandupió”.

Chico Buarque, a filha Silvia Buarque e o sobrinho Chiquinho, neto do "Vô Ico"
Chico Buarque, a filha Silvia Buarque e o sobrinho Chiquinho, neto do “Vô Ico”
Helena Buarque, o filho Chico Brown e a filha Clara Buarque
Helena Buarque, o filho Chico Brown e a filha Clara Buarque

É preciso escutar a música de olhos fechados e peito aberto, debulhando as palavras de mãos dadas a ela, feito antigamente em cantiga de roda, gira para um lado a sorridente criançada, agora roda para outro, a brincadeira que não para, é areia e mar, sólido e líquido, melodia e verso.

Quando ouvi Massarandupió me dei conta dessa viagem à infância, por isso quis ouvi-la novamente, tanto e sempre. Fui pontuando a cadência da música como se fosse um relógio, o tique-taque era marcado pelos instrumentos tocados no estúdio de gravação, violão, bandolim, piano, harpa, flauta, clarineta, alguns violinos, e de repente a guitarra sobressaltada, tal onda forte que vem do fundo do mar, presentemente autêntica, quase um choro de saudade da criança que já pertenceu àquele mar do qual também já foi dona.

Maestro Luiz Cláudio Ramos regendo músicos na gravação de Massarandupió
Maestro Luiz Cláudio Ramos regendo músicos na gravação de Massarandupió

instrumentos estudio massarandupio 2

Os diversos instrumentos na gravação de Massarandupió
Os diversos instrumentos na gravação de Massarandupió

Sim, é o Chico Brown quem dedilha a guitarra na gravação da música de sua autoria, letrada pelo avô Chico Buarque. É o menino do ouvido absoluto, agora profissional multitalentoso, músico parceiro de cordas, sopros e percussão. Aquele piá preparava um cenário a ser projetado em música sua, lá no futuro, da letra de quem o viu pequeno desenhando o roteiro da história a ser contada num tempo bem distante daquela Massarandupió, do cordão umbilical do bacuri guardado sob uma areia quieta.

Em estúdio de gravação, Chico Buarque olha o neto Chico Brown dedilhando a música
Em estúdio de gravação, Chico Buarque olha o neto Chico Brown dedilhando a música

Eu não sei da infância do então Chiquinho, mas em se tratando de praia, as infâncias se identificam, há uma espécie de comunhão entre as crianças no ato ou fantasia de sonhar quando se tem por contexto a areia, uma vez que o mar é um só. É sempre a liberdade, o caminhar sozinho criando mundos, absorvendo o cheiro do oceano em sua promessa de sal, a vontade do mergulho, o medo da arrebentação, o saber do chão onde se pisa enquanto segura a mão do pai, indagando à mãe quando ele vai soltá-la, porque ao chegar esse dia a meninice se foi.

É comum em todas as crianças o sentimento da perenidade, não se imagina que aquele tempo, um dia, findará. Pequenos acordam adultos, de repente, é algo que só se saberá depois. Crescemos! A praia de ontem passará a ser recordação e não mais cenário. Lembrar de uma época que não mais retorna, diz a música, é como perder um anel de pedra cor de areia naquela imensidão da praia, e ainda assim é preciso cavucar, sol a sol, rogando a São Longuinho… Com fé, hei de achar a infância perdida, hei de achá-la!

Chiquinho brincando na areia de Massarandupió
Chiquinho brincando na areia de Massarandupió

“Devia o tempo de criança ir se arrastando até escoar, pó a pó / Num relógio de areia”, ouço os versos musicados novamente, quero meu tempo de volta, o tempo de criança, e que ele não se acabe assim de supetão. O certo seria vê-lo escoar vagarosamente, naquela ampulheta feita de areia da praia, por onde as crianças, ludibriadas, passam a acreditar na invenção do tempo. Percebendo a cada dia que a meninice está prestes a se findar, ao menos eu saberia o dia em que não estaria ao lado de marinheiros e piratas na imaginária ilha. Parece que preferiria assim; melhor a acordar adulto sem aviso prévio. Oh, São Longuinho, santo das coisas perdidas, encontra minha infância por aí!

Chiquinho e o mar de Massarandupió
Chiquinho e o mar de Massarandupió

Engraçado, desde criança eu ficava a imaginar como seria a praia durante a noite, sem ninguém, o sol escondido, o breu dando suas ordens. Mas isso não me dava medo. Porque quando dormimos perto do mar – e já experimentei cotidianamente essa felicidade – sabemos que o vento fica a varrer a praia a noite toda, arrasta tudo, até vestido caído de algum varal, e o ergue num redemoinho como se fosse um prêmio.

Ouvir o barulho do mar por toda a noite é sensação única, a cadência das ondas acaricia a silenciosa escuridão. E quando estamos próximos a dormir, naquele estado de semiconsciência, essa cantiga do mar nos remete ao útero materno, o berço líquido no qual nos deixamos embalar no início de nossa existência, como se levitássemos dentro do oceano de nosso planeta mãe.

Dormir por alguns dias perto do mar, ouvir as ondas em seu balançar noturno, isso nos torna reféns de um sentimento permanente. Quando nos distanciamos do mar, sentimos falta daquele ritmo, passamos a entender que a praia não é somente o sol, o caminho durante o dia, as aventuras.  Compreendemos que a noite é senhora soberana na praia, com seu berço musical a nos acalentar, até nos chegar a reflexão em forma de angústia: “Como é que eu vou saber dormir longe do mar?”

mar noite 2

Massarandupió tem essa indagação poética. O verso nos chama a atenção, é o pensamento da criança, desconectada das expressões superficiais dos adultos, que assim diriam: “Como é que eu vou conseguir dormir longe do mar?”. “Conseguir”, ou mesmo “aguentar”, “suportar”, esses verbos sem sal. A criança traz a autêntica palavra ligada ao mar, “saber”.

Saber dormir ou não saber dormir, eis a questão. Na meninice não se fala “conseguir”, “aguentar” ou “suportar”, essas permanentes palavras do mundo adulto. Dormir longe do mar, para a criança, indica a origem da palavra “saber”, que vem do latim sapĭo, no sentido de “ter sabor”, “sentir por meio do gosto”. Ao cessar a infância, aquele sabor acompanhará o adulto das noites insones, só de vez em quando chegará o sono, ainda assim de um descanso inquieto, falta-lhe algo e não se sabe precisamente o quê. Ninguém há de lhe dizer o óbvio: ele pensa ser adulto, mas no íntimo, em suas recordações, na ânsia de experimentar novamente a meninice perdida, chegará o dia em que se mostrará urgente desafiar o tempo, mergulhar na ampulheta esquecida, até emergir das areias de Massarandupió. E a criança que renascerá depois do adulto nunca mais vai saber dormir longe do mar.

Chiquinho e o pai, Carlinhos Brown
Chiquinho e o pai, Carlinhos Brown

Massarandupió

Chico Brown/Chico Buarque/2017

No mundaréu de areia à beira-mar
de Massarandupió
Em volta da massaranduba-mor
de Massarandupió
Aquele piá
Aquele neguinho
Aquele psiu
Um bacuri ali sozinho
Caminha
Ali onde ninguém espia
Ali onde a perna bambeia
Ali onde não há caminho

Lembrar a meninice é como ir
cavucando de sol a sol
Atrás do anel de pedra cor de areia
em Massarandupió
Cavuca daqui
Cavuca de lá
Cavuca com fé
Oh, São Longuinho
Oh, São Longuinho
Quem sabe
De noite o vento varre a praia
Arrasta a saia pela areia
E sobe num redemoinho

É o xuá
Das ondas a se repetir
Como é que eu vou saber dormir
Longe do mar
Ó mãe, pergunte ao pai
Quando ele vai soltar a minha mão
Onde é que o chão acaba
E principia toda a arrebentação

Devia o tempo de criança ir se
arrastando até escoar, pó a pó
Num relógio de areia o areal de
Massarandupió

Em julho de 2018, Chico Brown veio a Fortaleza fazer um show no Cineteatro São Luiz; fui com meu filho, e lá presenciamos o artista cantar e tocar violão, piano e bongô, senhor absoluto do palco com sua jovialidade e talento. Ao final, Brown nos recebeu calorosamente em seu camarim, o Mantovanni Filho pôde dizer a ele o quanto gostava de música, apaixonado por violão desde quando era um piá.

chico brown e eu

Praia de Massarandupió
Praia de Massarandupió

 

MAMBEMBE

MAMBEMBE, MAGO E MÁGICO

Lembro-me bem da imensa expectativa causada com a volta de Chico Buarque aos palcos em agosto de 2006, dando início à turnê “Carioca”, após sete anos de silêncio musical. O disco anterior, “As Cidades”, de 1999, também gerou apresentações naquele ano. Todos sabiam que as músicas do extraordinário trabalho lançado em 2006 iriam compor o show, a dúvida era quais outras canções integrariam a apresentação do “cantautor”; autodenominação dele que compõe e canta, para privilégio nosso. Na abertura, duas surpresas. “Voltei a Cantar”, samba de Lamartine Babo, gravado por Mário Reis em 1939. Chico consagra uma antiga pérola para confessar sua saudade do tablado (Voltei a Cantar / Porque senti saudade), e também – assim penso – fez uma sutil homenagem ao maestro soberano, cantando: Começo a recordar / Cantando em tom maior / E acabo no tom menor. O Tom maior seria Jobim, sempre por ele lembrado se colocando como aprendiz, na busca da beleza sonora construída pelo Antonio Brasileiro. Certa vez, Chico humildemente nos disse, que quando faz música boa, ela parece ser do Tom. Assim, o “tom menor” não se tratava de algo que o diminua, mas de uma hierarquia sentimental firmada pelo próprio Chico, ao falar de Tom Jobim. A outra surpresa na abertura do show foi “Mambembe”, canção de 1972, gravada no disco integrante da trilha sonora do filme de Cacá Diegues, “Quando o Carnaval Chegar”. Seria ali, 34 anos depois, a primeira apresentação da música nos palcos, entoada por um homem nitidamente feliz, incorporando toda a graça e complexidade do Mambembe.

DA PRIMEIRA PULA PRA TERCEIRA

Carlos Heitor Cony dizia que o único dilema efetivamente angustiante para quem escreve um conto ou um romance é o de decidir se o fará na primeira ou na terceira pessoa do singular. “Acordei de repente naquele quarto estranho…” ou “Ele acordou de repente naquele quarto estranho….”. Para quem faz uma escolha, resta então escrever, já para quem não faz, o prazer que assim o será. Mambembe me livrou dessa angústia, como de tudo que limita ou paralisa. Ouvir a canção e ler a letra nos coloca num estado de vida eterna dum mundo que pode acabar amanhã. A música inspira viver, como se viva estivesse, e está. De toda arte do Chico sai a fagulha buarqueana, que não só acende, como deixa a mente fervilhando. Umbilicalmente ligada em essência, ela é assim, da literatura à dramaturgia, passando pela música, essa mágica das letras.

partitura mambembe

ESSE MUNDO É TODO MEU

– Que cara assustada é essa? Até parece que nunca entrou numa delegacia.

– Doutor Delegado – é assim que lhe chamo? Doutor Delegado? Posso botar também um Digníssimo aí… Digníssimo Doutor Delegado!

– Pra começo de conversa quem “bota” é galinha. Por um acaso você tá de chacota comigo?

– Não, não! É que brinco com as letras no começo das palavras, como se fossem malabares… Quando elas me saltam da cabeça fico a equilibrá-las no ar, enquanto elas gritam por suas iniciais. Olhe só, eu me apresento Digníssimo Doutor Delegado: sou o mendigo, malandro, moleque e molambo!

– Marginal…

– Começa com “m”! Gostei, vai entrar para o malabarismo das letras, mas no sentido próprio e não no pejorativo, né, doutor!?

– Ora não se faça de desentendido! Você foi flagrado pichando um muro, isso é coisa de marginal. Logo, você está aqui. Entendeu agora, malandro?

– Coisas do coração… Era um muro tão triste, me chamando para consolá-lo com um verso de amor! Enquanto nele eu escrevia a frase, pensava em minha namorada lendo aquilo, tanto sabendo que eu não padeci, quanto que podia esperar por notícias minhas: “Você vai saber de mim”.

– Ah! O marginal também é poeta?

– Poeta, palhaço, pirata, corisco, errante judeu!

– Parece que é um bom marginal, mas… mau poeta! Essas duas últimas não começam com “p”…

– Vejo que o senhor está atento. É mesmo contagiante! Às vezes, no caminho entre a poesia e o poema, as letras se desequilibram feito malabares na via do vento de volta às mãos. Viu só como as letras cambaleiam? Digníssimo Doutor… da Lei… ôpa! Desequilibrei de novo.

A ironia do delegado vai sofrendo certo embotamento, dando espaço ao interesse e à curiosidade. Mas o mundo não se resume àquela delegacia, e da porta pra fora, vamos com tudo que se passa ao redor dali. Não convém ficarmos a bisbilhotar uma conversa entre dois desconhecidos para nós, a não ser pelo fato de sabermos de que se cuida um delegado numa delegacia, e um… um o quê mesmo? Mendigo, malandro, moleque, molambo, poeta, palhaço, pirata, corisco, errante judeu… Marginal. Não! Marginal ficou por conta do delegado, que parece bastante aborrecido, ou então carrega em sua zanga a imperiosa autoridade do dia-a-dia para afrontar tantas pessoas que só lhe inspiram a desconfiança dos que vivem à margem das regras. Mesmo podendo sempre haver algo errado por detrás dos que ali não chegam, o suspeito infelizmente carrega em si a sua chaga, ainda que seja por pichar um muro. Assim foi o caso do nosso “malabarista das letras”, como ele mesmo se definiu.

A cidade é pequena, como tantas em milhares neste Brasil por alguns chamado de país continental. O mundo é grande, mas também tem lugar tão grande quanto o mundo, e o Brasil, de ponta a ponta, pode entrar nessa categoria. Ali é cidade modesta, praticamente esquecida de suas irmãs maiores, as cidades grandes. Por isso a delegacia é simplória, com uma saleta que divide o espaço entre uma espécie de copa mal arrumada, um armário sempre fechado e a mesa do delegado. Ah, a mesa do delegado, enorme, desproporcional para com o ambiente, abarrotada de papéis, que ele faz questão de deixar à mostra. Toda aquela papelada já podia estar arquivada há tempos, mas a cena dá um certo ar de dignidade, como se houvesse muito trabalho a fazer. Além disso, usa-se como estratégia quando não se quer esticar muito o assunto com alguém que o procura para uma denúncia corriqueira. Nessas horas, o delegado fica a mexer os papéis na frente do cidadão que lhe fala. Assim ocorre com Dona Hypotenusa quando comparece à delegacia para se queixar do marido, o Zé. Como se já não bastasse carregar um nome desses desde a infância, ela tem que engolir a indiferença do delegado aos seus temperos conjugais que, por nunca trazerem nenhum caráter violento, o levam a procurar certos papéis na mesa, dizendo-se muito ocupado com todos aqueles casos para cuidar, forçando-a a ir embora com os dentes travados a repetir, Zé… Zé… Zé… Parece haver um desgosto quando ela pronuncia nome tão simples, em contraste com o seu. E não é apelido. O pai sabia o destino do recém-nascido José e tascou logo um Zé no registro. O cartorário, por descuido ou perversidade, nem piscou ao anotar no pesado livro o nome do novo rebento.

Pois é nessa cidade do delegado, da Dona Hypotenusa e do Zé que surgiu um dia uma trupe de circo vindo não se sabe de onde e se fixou num terreno por detrás da Igreja, dali se podia montar a lona para o espetáculo. Na verdade, ao vê-la na estrada, estamos sendo bondosos com a situação. O que se chama de trupe de circo é um ajuntamento de seis amigos, rodando numa kombi tão velha que parece ser um carro viajando no tempo. Já a lona é um pano que se estica por meio de varetas, formando um círculo, feito um muro de tecido, para impedir que se veja o espetáculo sem pagar o ingresso. O pano de roda… cheio de listras largas… comprido, desbotado e encardido.

PANO DE RODA

No pano de roda tem espetáculo? Tem sim, senhor! Um mágico, dois equilibristas e dois palhaços que se esbofeteiam resolvendo ali mesmo suas diferenças – são irmãos gêmeos, diga-se, fazem isso desde o útero. Chega um momento em que não se sabe quem estapeia quem, são absolutamente idênticos, parece uma briga de um louco com um espelho. A plateia? Frouxa de rir! Depois da luta, recolhidos na kombi que é também camarim, um coloca panos com gelo no outro, e se riem enquanto tomam goles de aguardente. O sexto membro da trupe é o nosso conduzido à delegacia por pichação, o que diz ser muita coisa: mendigo, malandro, moleque, molambo, poeta, palhaço, pirata, corisco, errante judeu… um artista, no melhor conceito da arte! Se é que é possível conceituar algo que corrói o tempo e alarga o mundo. Dependendo da cidade, ele mostra uma faceta do seu talento. Ora declama como poeta, e faz um jogo tão bonito com as palavras que parece ser ele próprio quem as criou; ora canta músicas belas e profundas e não se sabe de onde ele as buscou, todos ficam com lágrimas retidas e coração apertado. Ora conta histórias engraçadas de planetas por ele imaginados, e é tanto riso, que todo o público adoça a sisuda alma pelo fio das horas, dias, semanas. É um autêntico mambembe, tão cambiante quando seu destino, a percorrer estradas sem jamais se fixar nalgum lugar, na simplicidade, contando com sua voz a cantar uma cabeça pensante e um coração latente, que nunca param. Tal o viajante das estradas, ele traz a verdadeira arte, que caminha de braços dados com a liberdade.

Foi justamente nessa pequenina cidade, em noite agradável e silenciosa, que o mambembe saiu a caminhar pelas ruas desertas. Avistando a lua, lembrou-se da amada. Ele carregava no bolso um pequeno spray de tinta preta, com o qual avivava constantemente o letreiro de sua trupe fixado há tempos na Kombi: “Circo Na Boca do Povo”. Não teve dúvidas, sacou o spray, agitou e começou a inserir no muro o recado num verso. Ele sabia que se por um acaso sua namorada por ali passasse, reconheceria o lema lírico que costumava sussurrar ao ouvido dela sempre que se sentia feliz. Foi quando passou o delegado tomando o rumo de casa, após três cervejas no bar do Seu Abstêmio (o nome não é piada, mas essa é outra história). Avistou aquele ser estranho a rabiscar o muro, não pensando duas vezes: “teje preso!”. Por isso, já na delegacia, a conversa foi aquela que deu início a estas letras nem um pouco malabaristas, mas autênticas quanto à narração dos fatos.

O delegado pensou em fazer o flagrante, preencher os papéis como de costume; seria mais um inquérito a compor o cenário daquela mesa abarrotada de processos já findos e nunca resolvidos. Lembrou-se de Dona Hypotenusa e a tática de mexer na papelada fingindo trabalho acumulado de autoridade. Então se deu conta que deveria estar em casa, afinal, já tomara as três tradicionais cervejas antes de ir ao lar desfrutar do merecido descanso. Mas ele estava ali diante de um louco varrido, um estranho que agia como escravo fugido, derramando e sorvendo a alforria. A noite seria burocraticamente longa se ele fosse seguir os protocolos. Balançou a cabeça negativamente, umas quatro vezes, e disse para si mesmo, “não, não vou fazer isso”.

Sentou-se o delegado, convidou o conduzido a fazer o mesmo, estavam ali os dois, era tarde, o silêncio fazia um barulho que muito incomodava naquele instante: o barulho de nada se ouvir, como se a cidade não existisse.

– Sabe de uma coisa? Amanhã você vai pintar aquele muro! Tem tinta lá atrás na garagem da delegacia. É roxa; a cor é meio esquisita, confisquei de um depósito aqui da cidade. O gerente começou a vender essa tonalidade dizendo que era a última moda da novela “Meu Coração é Colorido”, que logo logo viria pra essas bandas, porque o sinal lá da capital demora a chegar. Tudo conversa. Nem existia a tal novela, ele acabou confessando que fez o mesmo noutras cidades com verde abacate, azul royal e até amarelo ovo. Devolveu o dinheiro a todo mundo, por isso escapou do xilindró. Fiquei com um galão, para o inquérito. O gerente foi embora, nem quis mais saber de tintas. Dizem que agora ele está numa loja que estoca esterco de vaca, adubo para plantas. Pensei até em avisar ao delegado dessa cidade: “Fica de olho! Se ele falar que estrume é moda em alguma novela, já prende o homem!”, mas acabei esquecendo, dele e da tinta na garagem. Lembrei agora por causa de sua audácia de pintar muro aqui na minha cidade. Vou lhe dar a lata da tinta roxa. O muro é de um terreno baldio, ninguém vai reclamar da cor. A tinta apaga sua pichação, a rua volta a ser bonita. Será esta a sua pena. Esquecemos tudo, você toma seu rumo.

– Digníssimo doutor delegado. O senhor já pichou muro alguma vez?

As faces do delegado rapidamente ficaram coradas, ele quis se levantar, dar um grito no desaforado, enquadrá-lo sob as ordens legais, mas desistiu rapidamente, não queria mais esticar aquela noite, e, pensando melhor, talvez a pergunta guardasse um pouco de sinceridade ou mesmo uma curiosidade para que o malandro avaliasse se a pena estava à altura da infração.

– Nunca! Respeito a propriedade alheia.

– Eu sabia. Esse é o problema, doutor. O senhor tem essa coisa de propriedade, propriedade, isso deve ficar zoando em seu ouvido, como se tudo pudesse ter um dono. Eu durmo na estrada, já dormi debaixo de ponte, tenho um sangue cigano, não sei o que é propriedade, mas vou lhe confessar uma coisa: esse mundo é todo meu.

O delegado explodiu no riso, não teve como se conter, até achou que valeu a pena criar todo aquele cenário. Foi divertido demais ouvir tamanha loucura, mas tão logo parou de rir, ficou bem sério e disse secamente: – Explique.

– Quando se sobe ao palco, você entende que o mundo é aquilo, não é preciso mais nada na vida, a felicidade que se tem é tão grande que parece que você vai levitar. Chego na praça e sinto a mesma coisa, porque vejo pessoas alegres, andando, conversando, a alegria alheia acaba se entranhando na gente, feito perfume bom. Volto ao meu pequeno circo, é um pano de roda – se o senhor quiser ver o espetáculo é nosso convidado – e ali no circo eu vejo de repente que sou tão feliz como seria num banco de jardim! Então pra mim é tudo igual: no palco, na praça, no circo, num banco de jardim. Sabe por que, digníssimo doutor delegado? É que eu vivo cantando, e canto para viver. Se não estou cantando alto, tem música aqui dentro, na cabeça, passeando e querendo dizer.

– Isso é bonito, mas é coisa de artista. O senhor não pensa no futuro, na velhice? Se não tem uma casa, uma propriedade, como vai ser? E se ficar doente? E quando não puder mais cantar?

– Eu sempre vou cantar, doutor! Quando eu estiver por baixo da terra, estarei na boca do povo, minha música lá, o povo cantando.

O delegado de repente se lembrou de um violão que fora apreendido numa confusão no bar do Seu Abstêmio. Duas mulheres se diziam donas do instrumento, presente de artista famoso, puxa daqui, puxa de lá, quando houve ameaça de ficar mudo o violão, o delegado o tomou antes que se partisse em pedaços. Só depois ele entendeu a razão da briga. As duas mulheres se chamavam Rita. Como saber a real destinatária da dedicatória escrita no verso da madeira? “Para que você, Rita, nunca mate nosso amor de vingança. Francisco”. Foi até o armário no canto da saleta, pegou aquele pinho e entregou ao artista.

– Mostre sua música, deve ser muito boa, pra ficar na boca do povo mesmo depois que você partir dessa pra outra.

CHICO MAMBEMBE VIOLÃO

Os olhos do mambembe brilharam. Ele nunca dedilhou violão bonito como aquele. Artista não recusa arte. E o desejo dele não era o de tê-lo, ele nada queria como propriedade, só ficou mesmo com as mãos coçando, a vontade de acarinhá-lo. Rapidamente afinou o instrumento, o som era de fato um espetáculo por si só. Pensou em qual música deveria cantar ali.

– Quer saber de uma coisa, doutor? Violão chique assim merece uma música novinha em folha, e aí o senhor me perdoe, vou fazer agora uma música aqui contando minha história! Nunca toquei num caprichado desse, vou nessa marchinha e já já começo a me debulhar nela…

O som começou a ecoar na saleta, o delegado percebeu que de fato ele dominava as cordas, não era um farsante. E para espanto de quem não esperava música de qualidade, a cantiga começa a sair da boca do feliz infrator (bendita pichação!):

No palco, na praça, no circo, num banco de jardim
Correndo no escuro, pichado no muro
Você vai saber de mim
Mambembe, cigano
Debaixo da ponte cantando
Por baixo da terra, cantando
Na boca do povo, cantando

Mendigo, malandro, moleque, molambo, bem ou mal
Escravo fugido ou louco varrido
Vou fazer meu festival
Mambembe, cigano
Debaixo da ponte, cantando
Por baixo da terra, cantando
Na boca do povo, cantando

Poeta, palhaço, pirata, corisco, errante judeu
Dormindo na estrada, não é nada, não é nada
E esse mundo é todo meu
Mambembe, cigano
Debaixo da ponte, cantando
Por baixo da terra, cantando
Na boca do povo, cantando

O delegado desconfiou que a canção não fora composta ali, deveria estar pronta há tempos, talvez nem do mambembe ela fosse, mas isso pouco importava, era muito boa, dava vontade de sair dançando e correndo pela cidade. Ele nunca tinha ouvido música tão bonita quanto aquela.

Já com as orelhas limpas e os ouvidos hidratados, o delegado disse: “Vamos embora, está tarde”. Pegou o violão de volta, apontou a porta da saída com a palma da mão, sem mais nada dizer. O artista saiu num estilo de quase-dança, a música parecia ainda lhe rodar à cabeça. O delegado fechou tudo e foi para casa dormir. Ele nem percebeu – e correriam dias para a descoberta – que os sapatos do mambembe deixaram-se abandonar por debaixo da mesa; foi no momento da cantoria, ao desfiar as notas no violão, o malandro se deu conta do mendigo sorrindo dentro de si. Aqueles calçados tinham o peso da formalidade e, feito moleque, livrou-se deles para sempre naquele recinto. Finalmente o molambo poderia levitar pelas ruas com as asas dos pés descalços.

No outro dia, quando a trupe foi embora, o delegado se deu conta de que não entregou ao mambembe a lata de tinta roxa. Indignado consigo, pois acabou esquecendo sua determinação, concluiu que ele mesmo deveria fazer o trabalho. Ainda que ninguém soubesse o que tinha ocorrido, era questão de honra pessoal. Onde já se viu, prende um pichador, se encanta com a música dele, o libera, e fica lá a cena do crime?… Foi andando em direção ao muro, resmungando e prometendo a si mesmo que não cairia noutra dessa.

Chegando ao local, viu o que o malandro escreveu naquele muro quando foi flagrado, na véspera: “Esse mundo é todo meu”.

Ficou um bom tempo olhando para a frase, ele já ouvira aquilo… sim, o mambembe falou essa frase, e mais do que isso, a frase entrou para a música feita na delegacia. Começou a relembrar a formidável canção. No palco, na praça, no circo, num banco de jardim…

Veio então a ideia. Por um momento hesitou, teve receio que odiaria a si próprio pelo resto da vida por obedecer a um ímpeto que veio não se sabe de onde, mas não teve jeito, estava decidido. Olhou para um lado, olhou para o outro, era cedo, a cidade ainda dormia. Abriu a lata, molhou o pincel, mas não pintou o muro. Ele apenas escreveu outra coisa abaixo da frase do mambembe.

Saiu rapidamente, chegou a rir por dentro feito criança que faz algo errado, mas que acha bom, e voltou aos seus afazeres.

Mais tarde, quando a cidade despertar, muitos olharão aquele muro sem entender direito as duas frases ali escritas, parecem desconexas, e com letras diferentes. Paciência. Lá está o registro, até hoje, para quem quiser ver.

Esse mundo é todo meu (em spray, preto).

Na boca do povo, cantando (em tinta, roxa).

pano de roda 1

É fato também que nenhuma alma viva da pequena cidade fez um elo entre as mensagens daquele muro e a nova arrumação no gabinete do doutor delegado. A primeira que notou foi Dona Hypotenusa, ao entrar para a cantilena de sempre sobre o Zé. Ela reparou a mesa limpa, sem um papel sequer por cima, parecia até ter duplicado de tamanho, era um vazio imenso, e o olhar do delegado por detrás do móvel, tranquilo, um leve sorriso esboçado no canto da boca, e ela falou como nunca, pois ele não a interrompeu uma vez sequer, depois a levou até a porta, tudo parecia muito estranho, o delegado só acompanhava até a saída as autoridades. Dizem que assim o fez com o estagiário do assessor do secretário de obras do vice-prefeito da cidade vizinha, quando ali esteve à procura de um gato fujão da mulher do secretário, que vivia aos pés daquela dona a contemplá-la, mas um dia ronronou a ela que nasceu pobre, porém livre, e fez-se um felino mambembe.

A delegacia, por coincidência, passou a ter um ar de mistério no mesmo dia em que a trupe do circo de roda foi embora da cidade sem fazer um espetáculo sequer. Esse mistério aumentava naquele ambiente quando ao cair da noite. As pessoas se aglomeravam por perto – mas não tão próximo que pudessem levar o delgado a abrir a porta e saber o porquê da algazarra –, pois juravam ouvir um som de violão, bem baixinho, e quase dava para perceber uma marchinha como se alguma cantiga estivesse ali por detrás daquele dedilhar tão discreto.

Indiscreto mesmo era o som animado vindo de uma kombi que naquele momento rasgava as estradas, sem rumo, os seis integrantes dentro do carro a entoar a cantiga em sintonia com o poeta do grupo. Eles adoraram a nova música, foram unânimes em dizer que deveriam cantá-la todo dia, pois ela dava uma vontade danada de dançar e de sair pulando por aí, era um sentimento de felicidade sem motivo. E precisa de motivo para ser feliz?

Mambembe, cigano
Debaixo da ponte, cantando
Por baixo da terra, cantando
Na boca do povo, cantando

mambembes se despedindo

 

NÃO É NADA, NÃO É NADA

Esse meu conto, livremente inspirado na música Mambembe, além de ter como objetivo divertir o leitor deste blog – daí o tom crítico, porém leve do texto, e em certos momentos até propositadamente caricato –, carrega em si a demonstração das amplas possibilidades de manuseio da obra musical buarqueana, essa argamassa sólida quanto ao conteúdo e ao mesmo tempo flexível em relação às infindas janelas de interpretação.

cartaz filme

A música tem um contexto, ela foi feita em 1972, para o filme dirigido por Cacá Diegues, chamado “Quando o Carnaval Chegar”, com roteiro do próprio Cacá, juntamente com Hugo Carvana e Chico Buarque, que mostra exatamente um grupo mambembe de cantores viajando pelo país num antigo ônibus. Além das interpretações de Chico, Maria Bethânia e Nara Leão, o elenco é complementado por Hugo Carvana, Antonio Pitanga, Ana Maria Magalhães, José Lewgoy, Elke Maravilha, Wilson Grey, Luiz Alves, Odete Lara, Vera Magalhães, Scarlet Moon, Joaquim Mota e Zeni Pereira.

filmagem MAMBEMBE

Todavia, a canção acaba ganhando vida própria, salta da sua origem e vive a passear nesse mundo formado por tantas personagens e histórias criadas por Chico Buarque, em seu extenso e inigualável catálogo musical.

Observem que uma das características do modo de produção do Chico é a de uma plataforma de linguagem de cunho fortemente cinematográfico ou teatral; suas músicas seguem um roteiro cuja percepção visual da história vai se formando em nossa mente ao se avançar na trilha cantada de determinada narrativa.

Esse viés é de extrema importância para compreender as variantes interpretativas de sua obra, considerando o fato de que algumas músicas nascem vinculadas a determinado script – de filme ou de peça teatral –, e mesmo com esse cordão umbilical, as cantigas carregam em sua essência a característica de poder girar ao redor delas mesmas, como se fossem eixos que gravitam em torno de um contexto, mas também se movimentam de modo autônomo dentro delas próprias. Por isso elas tanto servem para aquele musical no palco ou na tela, como se abastecem infinitamente de sua independência lírica. Desgrudam-se da origem e passam a ter vida autossuficiente. Geram outras vidas na medida em que se interpreta de maneira diversa cada música.

Quando ouvi a primeira vez Mambembe, sem saber de sua origem – o filme de Cacá Diegues – a sensação a me invadir, da qual não esqueço, foi a de uma alegria sem motivo, uma vontade de sair à rua rindo de felicidade em busca de cores e texturas do “estar livre” que aquela música impregnou minha essência. Assim, primeiro captei o eixo da música que gira em si mesma; somente depois fui em busca da gravitação que a movia no contexto da obra cinematográfica. De um modo ou de outro, Mambembe me parece ser uma homenagem à alma de artista que habita em todos os que ainda acreditam na beleza da arte e na indispensável liberdade.

Particularmente, acredito que essa música desperta no Chico uma alegria muito peculiar, isso porque em dois shows dele a canção praticamente abre o espetáculo. Assim ocorreu nas turnês “Carioca” (2006/2007) e “Caravanas” (2017/2018). Nos dois shows, Mambembe é engatada logo após o abrir da cortina com músicas que não são do Chico. Em “Carioca”, a abertura se dá com “Voltei a Cantar” (1939), de Lamartine Babo, e em seguida vem Mambembe, completando-se com “Dura da Queda”, do Chico. No show “Caravanas”, a extraordinária “Minha Embaixada Chegou” (1934), de Assis Valente (e que também faz parte do filme “Quando o Carnaval Chegar”), é sequenciada por Mambembe. Nesses dois momentos distintos, separados por dez anos, Mambembe entra no palco convidando nossa alma parar dançar, ante a alegria sem motivo do poeta, palhaço, moleque, malandro e tudo o mais que adorna a alma do artista.

O conto por mim elaborado “não é nada, não é nada”, dadas as inesgotáveis possibilidade de interpretação de Mambembe em seus labirintos de palavras e expressões, que acabam formando uma teia com diversos pontos de ligação. A exemplo, na figura do “errante judeu” associada a outras personagens –  o poeta, o palhaço, o pirata e o corisco – justifica-se como um elo em relação ao Mambembe porque o personagem mítico judeu errante foi condenado a vagar pelo mundo sem nunca morrer. Do mesmo modo, “corisco”, que significa raio (Dicionário Houaiss), mas também quer dizer astuto, esperto. Então se tem nessas palavras o próprio desenho do Mambembe, que é um apreciador e criador de canções (poeta), um artista (palhaço), um ser livre (pirata), astuto (corisco) e andarilho (errante judeu).

O mais importante é ficarmos atentos ao recado final da música. Chico nos lembra, pela boca do Mambembe, que é preciso reavivar a obra do artista, e é tão simples fazer isso, basta ouvir a música, mostrar aos outros, ensinar aos pequenos as preciosidades por detrás daquelas palavras, relembrar aos mais velhos a sensação por vezes perdida da felicidade sem motivo, porque uma música dessa não somente salva nosso dia, como também pode tornar real o desejo do Chico enquanto Mambembe, que é o de estar Na boca do povo, cantando.

DISCO VINIL

VOU FAZER MEU FESTIVAL

A primeira gravação de Mambembe se deu em 1972, no disco com a trilha sonora do filme “Quando o Carnaval Chegar”. Dez anos depois, Chico grava a música em espanhol, num álbum de 1982 (Chico em español), com letras de algumas de suas músicas vertidas para a língua hispânica por Daniel Vigletti, produzido e dirigido por Sergio de Carvalho. Ainda há o registro da cantiga nas interpretações realizadas em dois shows do Chico, “Carioca ao Vivo” (2007) e “Caravanas ao Vivo” (2018).

Mambembe

Chico Buarque/1972

No palco, na praça, no circo, num banco de jardim
Correndo no escuro, pichado no muro
Você vai saber de mim
Mambembe, cigano
Debaixo da ponte cantando
Por baixo da terra, cantando
Na boca do povo, cantando

Mendigo, malandro, moleque, molambo, bem ou mal
Escravo fugido ou louco varrido
Vou fazer meu festival
Mambembe, cigano
Debaixo da ponte, cantando
Por baixo da terra, cantando
Na boca do povo, cantando

Poeta, palhaço, pirata, corisco, errante judeu
Dormindo na estrada, não é nada, não é nada
E esse mundo é todo meu
Mambembe, cigano
Debaixo da ponte, cantando
Por baixo da terra, cantando
Na boca do povo, cantando

GENI E O ZEPELIM

GENI

– Aquela vadia? Uma prostituta, travesti, ou coisa assim! Sei lá o que é aquilo. Uma aberração qualquer!
– Ah, vai entender o que aquele subversivo queria com essa música, pôs até bosta nela.
(Risos)
– Esse cara aí só queria chamar atenção, daqui a pouco ninguém lembra mais dele.
(Mais risos)
– É… Mas dizem por aí que sua mulher coleciona fotos dele…
– Nunca! Isso daí é intriga! Só se for pra trocar as repetidas com a sua.
– Vá se…
(Gargalhadas)
– Mudando de assunto, esse ano tem eleição. O deles tá na mira, e a gente só acertando o alvo. Bang!
– Tem. Passa lá em casa amanhã que vou te dar um adesivo colorido pra você pregar no carro. Agora saca aquela boneca passando ali.
– Acha que engana alguém. Essa piranha é homem!
– Desgraçada! Bora dar uma coça nisso pra ver se toma vergonha na cara e vira gente?
– Só se for agora!
(Gritos, choro, buzinas, sirene)
Sete dias depois, a missa.

Lá no tempo da Segunda Guerra Mundial foi onde nasceu Geni, que ainda hoje marca presença. Nesse período, o termo travesti significava disfarce no trajar, seja “o uso de um traje feminino por um homem, ou de um traje masculino por uma mulher” (Dicionário Caldas Aulete, volume V, edição de 1958). Muito tempo depois seria reconhecida a comunidade global das lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros, intersexuais (LGBT).

Genival, em si ou em Geni, nunca se enquadrou no que nomeavam à época de travesti ou transformista, palavras muito utilizadas quando não existiam outras denominações para a diversidade sexual e de gênero.

Genival sente-se Geni por sua forma leve de ser, o modo como gosta de colocar adereços por sobre a roupa, avivados assim como o mundo que ele enxerga. Geni sabe-se Genival, e não se incomoda com quem a chame pelo nome de batismo. Ela tem sua própria definição: “eu sou plurissexual” – mas já ouviu de tudo por aí. Enquanto o preconceito cego a ofende, crendo que Geni lhe deva alguma satisfação ou obediência, ela realiza sua forma autêntica de amar, sem amarras em relação a quem se sente atraída. Isso se traduz imediatamente na indignação, e intimamente, na inveja da cidade apavorada, Rio de Janeiro, nos anos 1940.

Ele, Genival, aquele que tinha todo amor do mundo para dar, jamais se vendeu. Ele vendia eram as mercadorias que buscava no cais do porto. Peregrinava cidade afora oferecendo seus badulaques e penduricalhos, inclusive nos prostíbulos, onde desprovido de preconceitos, conquistou amizades, que o chamavam carinhosamente pelo que acreditavam ser seu apelido.

Assim como sua mente, Geni frui seu corpo como bem quer, desde menina respeitando-o e sendo fiel a si mesma. Dá-se assim, a todos que lhe provoquem o desejo original. A liberdade da mente de Geni dignifica seu corpo, enquanto a encenação de dignidade daquela gente mantém suas mentes reféns. Então, descortinada toda essa dignidade maquiada da sociedade, o que se vê é o nada, um vão escuro onde talvez agonize um fantasma, por quem aquelas próprias pessoas tremem de medo. Já por detrás da liberdade de Geni, lá está intacta e soberana sua imensa e vívida dignidade. Amor: o lema escancarado de Geni tem vida própria, nunca necessitando ser dito ou escrito, transpondo décadas, séculos, milênios e milênios no ar. Vindo do passado, rumo ao futuro, o amor transita pelo presente nos confidenciando ser ele o que atormentava a cidade, tendo Geni como sua porta voz, e que vem conhecendo o incômodo de tantos povos em outros espaços nessa linha infinita do tempo.

Difusor do afeto, Genival só quer viver em paz, com toda suavidade e senso de humor contagiante que lhe são peculiares. Sua generosidade é algo tão próprio e desmedido, que todos querem com ele conversar. Ele é um criador de mundos, e suas histórias envolvem seus ouvintes em fantásticas tramas que causam desde a comoção até a excitação. Uma história que ele se nega a omitir – ninguém sabe se inventada ou realizada – fala de uma cidade pecaminosa, mas preconceituosa, ameaçada de repente por uma terrível e poderosa nave criada pelos alemães, o zeppelin. A máquina voadora prateada da história de Genival chegava dos céus apontando seus canhões capazes de dizimar tudo ali abaixo, e escondia dentro dela o responsável pelo martírio de todo um povo, seu comandante. Mas depois de pousar o zepelim e revelar-se, o comandante era misteriosamente ovacionado como um guerreiro nobre e salvador.

Essa predileção por tal história não era à toa. Acontecidos ou não aqueles fatos assustadores à Geni, personagem vivenciada pelo próprio Genival, tudo que se passara era ainda mais comum do que se imaginava.

Geni, interpretada pelo ator Emiliano Quueiroz, na primeira montagem da peça "Ópera do Malandro" (1978)
Geni, interpretada pelo ator Emiliano Queiroz (de pé), na primeira montagem da peça “Ópera do Malandro” (1978)

O que de fato sustém o enredo dessa trama, por ele criada ou vivida, reside em seus pensamentos ou lembranças; é a porção íntima por detrás da narrativa. Eis o que há na entrelinha da história da santa Geni de Genival:

Aquele comandante há muito acompanhava do alto, por detrás das nuvens, o dia-a-dia daquela cidade, sentindo-se o senhor absoluto da decência, detentor não só da arma aniquiladora, mas de seu senso militar de impor a ordem aos outros. Sua vida desde sempre foi adornada pela farda coberta de brilhos de medalhas de tantas batalhas em campo, pouco importando se eram massacres ou lutas, o valor estava no cobre fixado na impecável roupa. E quando a farsa se deita sobre a inescapável sentença, o vencedor é sempre quem irá narrar a história.

O comandante julgava quão impura era a cidade. As pessoas simplórias bradavam nas ruas o senso moral, mas em suas casas, escritórios e até igrejas o que imperava para muito além da luxúria, era a corrupção, a avareza, a falsidade, as traições, tantas coisas vis que ao comandante satisfariam.

Lá de cima de sua baixeza, como quem profana os céus, o comandante avistara uma dama de espírito livre, semeando um amor, que ainda que não florescesse do lado de fora, ela permanecia a colher em seu interior. Afrontado, o comandante constatou quão imune ela era a todo mal, de forma que nenhuma arma poderia impedi-la de viver, independente do estado da sua carne.

Eis que essa dama derramava sua formosura em cada canto daquela cidade, não importando aonde estivesse. E quanto mais dispendiosa em sua singeleza ela fosse, mais seu viço crescia prosperando sua liberdade nata.  Era ela! Geni não só intrigava, mas preocupava o senhor das armas por não se deixar contaminar pelo espírito dissimulado de toda aquela gente. Era assim a Geni, da cabeça que desconhecia a discriminação, do coração que só concebia a bondade. Por isso ela merecia ser apedrejada pela cidade inteira, que não tolerava tamanho altruísmo. Essa gente, que vivia a gritar à sua porta batendo panelas, era de uma afetação imensa, lhe faltando inteligência para se desfazer das mentiras que lhe chegavam. Bem mais a frente da consciência coletiva, naquilo que habita a contragosto cada ser, está o inconsciente saber da grandeza e carisma de Geni e a subsequente conclusão do próprio estado de miséria moral diante do brio daquela. Matá-la lhes cercearia o prazer em ver quem é secretamente invejada, ser humilhada, além de que não mais desfrutariam sua luz.

O comandante deixou de observar a cidade, ficando a espiar Geni. Aquilo lhe foi causando um misto de medo e ódio, pois enquanto percebia quão autêntica era a formosa dama, sabia do risco de se ter alguém assim como referência numa sociedade, que não entrega sua direção ao vento. Apesar de toda estupidez aconchegada à pequeníssima mente do comandante, ele já havia assimilado que pessoas livres sempre representam uma ameaça à ordem vigente, em se tratando de quem fugia aos padrões convencionais daquela moral aparente.

Então, no auge de sua capacidade intelectual, aquele homem teve a ideia de mais uma vez usar a força bruta, descendo à cidade e ameaçando explodi-la, só não concretizando a destruição se Geni a ele se entregasse servilmente. Tendo observado, anteriormente a Geni, o comportamento dos mais banais, ele induziria essa maioria como aliados e admiradores fiéis, na tentativa vil de aprisionar Geni pela humilhação e vergonha.

Todavia – e ele próprio sabia, mas negava isso – aquela estratégia escondia algo muito mais profundo; ele se quedara aos encantos da Geni. Ela possuía algo que ele jamais seria detentor: a si mesma. Preso a estatutos, regimentos, doutrinas da farda, além de suas convicções fixas pré-moldadas, o comandante não era cativo de si mesmo, porque ele não era alguém, era um produto aprisionado em seu rótulo. Ele se trajava com os brilhos do ofício que escolhera e tão mal desempenhara, mas em seu íntimo, vazio e espalhafatoso, adoraria brilhar nos palcos, onde nem cogitava que jamais seria sinceramente aplaudido.

Ele também padecia da mesma doença que pairava por sobre a sociedade, presa aos grilhões forjados em ferros de preconceito, a impedir que as pessoas tenham suas próprias vidas, de tão preocupadas que estão com a vida alheia. Não discernindo onde terminava o desejo e começava a inveja, o comandante se rendia ao prazer do sádico em subjugar seu superior. Tudo assim se completa, como a garganta que grita: ajuntou a fome com a vontade de comer!

A prisão do chão na cidade dos encarcerados, encenando personagens que eles creem piamente ser eles próprios, criados pelo sistema e sustentados pela hipocrisia social. A prisão do céu num zepelim gigante e poderoso, do comandante prisioneiro de suas autodeterminações de impor uma moral na qual nem ele mesmo pratica. E bem ali no meio, entre o chão e o céu, a linha do horizonte, que não impõe qualquer limite àquela que corre longe e voa alto: Geni. Lá estava ela, dançando como o cordão maleável que, sem se dar conta, une os dois punhos rígidos das algemas.

O Zeppelin ou Zepelim é um tipo de aeróstato rígido, mais especificamente um dirigível, cujo nome é uma homenagem ao Conde alemão Ferdinand Von Zeppelin, que foi pioneiro no desenvolvimento de dirigíveis rígidos no início do século XX (fonte: pt.wikipedia.org)
O Zeppelin ou Zepelim é um tipo de aeróstato rígido, mais especificamente um dirigível, cujo nome é uma homenagem ao Conde alemão Ferdinand Von Zeppelin, que foi pioneiro no desenvolvimento de dirigíveis rígidos no início do século XX (fonte: pt.wikipedia.org)

Geni e o Zepelim. Eis o nome do hino entoado por Genival aos seus conterrâneos. Uma narrativa poética de dramaturgia musical, com sua estrutura perfeitamente encaixada em estrofes de sextilhas, típicas de Cordel. A redondilha maior do extenso e cadenciado poema é, por si só, uma obra-prima.

versos geni

 

“De tudo que é nego torto / Do mangue e do cais do porto / Ela já foi namorada…” Assim começa de modo impactante a história dita por Genival sobre sua Geni. Ele usa esse meio para chamar a atenção de todos, e assim vai conduzindo o espectador ao seu mundo, por entre versos e rimas numa cadência quase hipnótica, embalando o ouvido tal uma figura materna a balançar o berço de modo constante e delicado, gerando um ritmo terno e envolvente.

Conhecedor da alma humana, Genival vai se afastando cada vez mais desse balanço de um suspense doce, atiçando os sentimentos que caíram em sono profundo. Ele sai cantando como quem se equilibra por sobre a velha e estreita ponte que tenta cobrir o largo de um rio. E então se joga refrão afora, mergulhando nessa narrativa em forma de música para os ouvidos daquela gente, incitando todos a entoá-lo, já que dizia exatamente o que lhes guardava a maldade: “Joga pedra na Geni / Joga pedra na Geni”. Ele sustém o coro que começa tímido, mas cresce frenético, até se transformar numa barulhenta histeria. “Ela é feita pra apanhar / Ela é boa de cuspir / Ela dá pra qualquer um / Maldita Geni”. E nesse momento ele deixa de cantar e fica a ouvir a balbúrdia, que colérica, mais grita do que canta, como se assistisse a Geni se afogando no rio largo ao desabar da ponte. Dando-se a rir espontaneamente, Genival nada de braçadas nas águas turvas do refrão gritado pelo coro alienado, enquanto as lágrimas que lhe brotam dos olhos, límpidas, refrescam a face de Geni.

Genival sabe da catarse que o refrão provoca nas pessoas, presas aos seus instintos mais perversos. Naquele momento, os espectadores da história eram dele prisioneiros. Geni se tornava a maestrina da orquestra animalesca dos que se supunham civilizados.

Aquelas pessoas sentiam-se secretamente aborrecidas pela igualdade que Geni impunha a elas através de seu comportamento, não lhes fazendo distinção pela classe social, cor ou ofício. À cidade não fora dada a opção de fuga, e assim sempre seria, até aquele dia em que Geni se viu coagida pelo comandante a salvar seu povo. Ela não sucumbira à petulância, poder ou dinheiro, mas ao amor que constituía seu ser em benevolência e caridade.

Do lado de cá, de repente nos damos conta de que Genival está a contar sua história como Geni num palco de teatro, onde por sua vez, se passa uma história maior, da qual a dele faz parte: a “Ópera do Malandro”.

Era chegada a hora da voz do teatro cantar a nossa brasilidade e dizer a imposição estrangeira de domínio econômico e cultural, o chamado “americanismo”. O Brasil conturbado dos anos 1970, com a marca da liberdade de expressão a sofrer um duro golpe pela censura oficial, servia de base para a tentativa de doutrinar a população nos ideais do regime militar que se instaurara no país desde o golpe de 1964. Ninguém poderia dizer que aquele Rio de Janeiro por onde transitavam as personagens daquela peça teatral seria a cidade sufocada pelo obscuro momento atravessado pelo Brasil dos anos 1970. Chico Buarque tinha o respaldo do real contexto histórico da peça: a Segunda Guerra Mundial nos anos 1940. Inspirada na “Ópera dos Mendigos” de John Gay (1728) e na “Ópera dos Três Vinténs” de Bertolt Brecht e Kurt Weill (1928) chega em 1978 a “Ópera do Malandro” nos braços de Chico, como a dama de vermelho que adentra o salão paralisando a todos já presentes na festa, tamanha beleza e magnitude.

Na verdade, ele retratava o tempo então presente no país amordaçado pela truculência oficial. Tudo com muito lirismo e leveza. Da peça saltariam músicas eternamente apreciadas, como Folhetim, O Meu Amor, Pedaço de Mim, Teresinha e Homenagem ao Malandro.

Primeira montagem da peça "Ópera do Malandro" (1978)
Primeira montagem da peça “Ópera do Malandro” (1978)

Geni e o Zepelim é a única música que parece não ter qualquer vínculo com a história desenvolvida na peça, não sendo suporte para a narrativa de uma cena, como ocorre com as demais.  É uma história aparentemente à parte, contada por uma personagem, num enredo criado fora do contexto da dramaturgia, ou seja, é um teatro dentro de outro teatro, numa projeção de duas realidades criadas em ficção. Sim, Geni é uma concepção literária, a criatura que acaba encenando sua própria peça teatral dentro da história na qual seu criador foi inserido como personagem pelo escritor.

Quem estende essa vida para fora do palco, transportando as duas histórias – a da peça e a contada por Genival – é o próprio autor, Chico Buarque. Ele faz a gravação da música, na qual se tem a criatura Geni perfeitamente avivada para a peça “Ópera do Malandro”, contando a sua própria história: Geni e o Zepelim. Genival vive pela alma de Geni, e Geni vive pelo corpo de Genival. Ela dá o ar da graça na música, mas é de uma natureza tão latente que rouba a cena também na peça. O outro só dá as caras na peça, tão logo entrega sua carne para que sua personagem possa viver, ou ainda, toma para si a alma de Geni, única capaz de lhe fazer experimentar de fato a vida.

Eis a espetacular projeção emblemática de um momento em três níveis. A história criada por Chico Buarque concede os cinco sentidos aos seus personagens. Mas Genival, não satisfeito, se faz valer do sexto sentido, o de artista, o que lhe confere o sopro do animus à Geni, que por sua vez, não se contenta estando ali presa a essência feminina de Genival, e dotada de liberdade, vive sua própria história: Geni e o Zepelim.

Essa é a canção-espetáculo interpretada por Genival na própria Geni. Uma história que diz um pouco sobre ela, mas muito sobre o que diziam dela, e claro, revela como ela salvaria a cidade do ataque do zepelim, graças à paixão que o comandante lhe devotara, condicionando poupar a cidade desde que Geni lhe concedesse uma noite de orgia. Pronto, estavam postos ali o despeito lascivo daquela cidade, a perversão e perversidade famintas do comandante e a esperança de Geni, de ter enfim o respeito e quem sabe até a gratidão de sua gente.

Geni distribui seu amor a todos desde menina, quando conheceu seu desejo de semear a bondade e desfrutar o prazer em seu corpo. Namoradeira, deleitou-se com o nego torto do mangue ou do cais, também com os errantes, cegos, retirantes, os desvalidos que mais nada tinham, pouco importando o lugar, garagem, cantina, atrás do tanque, no mato. Assim, era chamada de rainha pelos detentos, loucas, lazarentos, moleques do internato, chegando a honrar seu amor generoso com velhinhos enfermos e viúvas sem porvir.

O mais curioso, é que tal comportamento libertino era extremamente comum aos homens, que sempre se davam a promiscuidade com naturalidade. Então o que se tinha na história de Geni era uma pintura clássica do machismo levado ao extremo, onde o feminino lascivo só era permitido às prostitutas. E se Geni desfrutava o prazer onde bem entendesse, junto a quem não tinha mais nada para lhe dar em troca, ela incomodava infinitamente mais do que as meretrizes, era uma maldita. A impressão que fica é de que aquela cidade estava por amaldiçoá-la, nesse lugar onde o desejo do homem é sagrado, enquanto o da mulher é profano. Daí vê-se o preconceito como uma erva daninha, cuja raiz da homofobia deriva do machismo. Passa por aí a impressão de que muitas das pessoas machistas sejam também homofóbicas. Enquanto nascido homem, a sociedade concede a Genival, a luz. Mas, uma vez tendo em si o feminino de Geni, entrega-lhe a cruz.

Zepelim por sobre a cidade do Rio de Janeiro (Revista O Cruzeiro, 1930)
Zepelim por sobre a cidade do Rio de Janeiro (Revista O Cruzeiro, 1930)

Quando chega a cidade um comandante dotado de arrogância, sentindo-se detentor das vidas abaixo de seu zepelim de dois mil canhões, ele só quer uma coisa, submetê-la aos seus caprichos oriundos da sua tirania, mas também dos seus complexos. Geni não quer consumi-lo, pondo-se a dizer que preferia amar com os bichos, a deitar com aquele homem cheirando a brilho e a cobre de suas medalhas obtidas por seus desfeitos.

Sua sinceridade foi recebida como terrível heresia pela cidade interesseira. A multidão se transforma em romaria à porta de sua casa, do mais simples habitante ao mais poderoso. Cria-se um cenário quase sacrossanto, a beijar a mão daquela que pode redimir a cidade de seus pecados, bastando dar-se ao comandante. O prefeito se ajoelha, encenando devoção à Salvadora diante seus eleitores, sua excelência reverendíssima o bispo, comove seus devotos com seus olhos vermelhos de ira, e o banqueiro que não esboça nenhum gesto de súplica, carrega a pasta com um milhão certo de que não há argumento mais convincente do que o dinheiro, seu deus em todos os momentos.

Geni ignora o vil metal do banqueiro, o choro falsário do bispo e as patelas limpas do rápido ajoelhar do prefeito. Mas foram tantos pedidos sinceros, alguns claramente sentidos, daquela gente comum, que Geni dominou seu asco e se entregou ao comandante, agora carrasco e amante.

Ela sabia, por identificar sentimentos ocultos e delírios imprevisíveis nas pessoas, que aquele comandante era um encarcerado de suas excitações reprimidas. Ao se despir de sua farda ornamentada, ele se revelaria. Ele se viu tão pleno e saciado por Genival trajado de Geni, que sentiu vergonha de si próprio pelo seu prazer. O comandante partiu numa nuvem fria, mas completamente preso àquela noite reveladora. Já Genival continuaria sendo a Geni, com sua liberdade inerente, esquecendo rapidamente o comandante em sua irrelevância, e perdoando imediatamente a ignorância e imbecilidade de toda aquela gente que já lhe gritava hostilidades à porta.

Aliviada, Geni respirou fundo, chegando a pensar que finalmente as pessoas poderiam se abster de tantos preconceitos, afinal um comandante veio dos céus num zepelim prateado. Um guerreiro tão poderoso não só expôs, como impôs seu desejo por alguém como Geni. E ao anoitecer se pôde realizar o amor independentemente da identidade de gênero dos dois. Naquela noite lancinante, era Genival com seus arrojos e despojos junto ao comandante engomado e aprumado. Devoraram-se ambos na nudez de seus trajes sociais.

Ao vê-lo ali como veio ao mundo, Geni se surpreendeu com a ânsia do comandante em ser tocado por Genival. Ela, que tinha a alma alada feito um anjo, não compreendia porque ele se amputara amarrando sua masculinidade à farda; Geni enxergava nele o palhaço fracassado e vingativo. Trata-se de quem a distância, aponta, critica, julga e condena, mas se aproxima sorrateiramente para enfim se aproveitar de toda situação, usufruindo o que lhe interessa. A cidade em romaria? O prefeito, o bispo ou o banqueiro? Não. O comandante é o senhor do oportunismo e hipocrisia, aquele que de longe cospe e de perto lambe.

Essas conclusões de Geni desenhavam pequenas ilusões diante da imensa cegueira daquela gente toda. A cidade continuaria a mesma, e Geni mais odiada, já que além de dar para qualquer um, submeteu os moradores do pacato lugar ao vexame de suplicar sua ajuda como fariam a uma dama. Boa de cuspir, essa maldita Geni. Assim, a cantoria acrescentou com enorme satisfação mais um elemento para jogar na messalina; além de pedra, bosta.

GENI DESENHO DEITADA

Eu bem me recordo do choque causado pelo termo “bosta”, ao final da música, pois estamos a falar do ano de 1979, quando Chico a gravou. Geni e o Zepelim, bem acima dos tradicionais três minutos, tem no total, cinco minutos e sete segundos de gravação. A dificuldade para ouvir a canção no rádio, além de seu longo tempo de duração, decorria também desse termo inusitado para constar numa música, ainda mais em se tratando de Chico Buarque, considerado já naquela época um exímio mestre das palavras em seu aprumo poético.

Contudo, a assimilação poética da palavra “bosta”, implica em penetrar toda beleza do enredo musical, cuja construção culmina no ódio e consequente ofensa da cidade em relação à Geni – aquela que acabara de salvar a todos em suas vidas medíocres. Quando o comandante partiu rumo ao céu ele não estava morrendo, já que o destino de sua alma era o caminho oposto. A bordo de sua nave brilhosa, ele embrenhou adentro das nuvens, guardando a vergonha na mente rasa e a impotência no corpo ainda todo lambuzado, e era o que se derramava por sobre a cidade aparentemente intacta. Tudo continuaria como antes – Geni livre, leve e solta, enquanto a cidade refém na idiotia dos conceitos que já lhe chegaram prontos, contando com a crendice das pessoas. Por isso, se antes as pessoas se davam o direito de apedrejar Geni, a partir da nova revolta por se sentirem enclausurados em suas próprias frustrações, as pedras não saciam mais o sadismo daquela gente bestial. Agora era preciso humilhar Geni com algo ofensivamente preciso: a bosta, claro! Seria o último suspiro da discriminação vendida pelo preconceito. A cidade apetecida em lançar fezes em Geni, trazia a bosta na boca, e o grito que ganha tamanha força na goela fétida pela podridão moral, chega veemente ao final. Era a força milagrosa concedida ao moribundo antes de rodear-lhe de flores e tapar-lhe as narinas com algodão.

Entretanto, para Geni, a bosta na garganta daqueles, era inodora perto do que ela assim considerava; a guerra – “eu continuo achando uma bosta, essa guerra. Um fedor! Se eu fosse presidente, os meus soldadinhos iam pra guerra cheirando a jasmim”. Geni não imaginava que, em tempos para ela futuros – os atuais por nós vividos –, muitas outras guerras se deflagrariam de modo dissimulado, mas tão perversas quanto àquela da metade do século XX. Bombas substituídas por racismo, granadas transformadas em intolerância, brados de ataque trocados por discursos de ódio e, a tortura velada pela apologia e ameaça da mesma. Fuzis, porém, continuam assim sendo, fuzilando os desassistidos, esquecidos e desprezados nas trincheiras periféricas das cidades grandes. Há que se dizer a Geni, que nem toda pureza do perfume oferecido pelo jasmim mascararia hoje o fedor das almas contaminadas pela bosta do neofascismo.

"Feitores açoitando negros na Roça", aquarela de 1828 de Jean-Baptiste Debret, e que mostra punição comum aos negros escravizados no Brasil: o açoitamento amarrado a um pau-de-arara
“Feitores açoitando negros na Roça”, aquarela de 1828 de Jean-Baptiste Debret, e que mostra punição comum aos negros escravizados no Brasil: o açoitamento amarrado a um pau-de-arara

Para além da imagem distorcida de prostituta que enxergaram em Geni até hoje, há quem diga que Geni se prostituiu, porém, uma única vez; no momento em que a cafetinagem exercida pela moral e bons costumes a pegou gentilmente pela mão e a arremessou aos braços do comandante. Obviamente, o pagamento pelo serviço sexual prestado por Geni àquele ser, iria diretamente para seu povoado cafetão, em forma de sobrevivência. À Geni caberia sua pequena fatia de vida, convertida em paz e gratidão de seus conterrâneos para com ela. Isso jamais aconteceria. A coitada e singela, que acreditava estar fazendo um imenso favor aquela cidade, sofria covardemente uma coação em massa, agora sim, travestida, em carinhosas súplicas. E ainda mais à frente do que consideraríamos como adiante, está o fato em si: Geni fora violentada. Seu estupro não teria sido entre quatro paredes pelas parafilias do comandante, mas a céu aberto, pela tara imoral da sociedade.

Hoje aquela gente da tal cidade cabe neste país, e toma suas respectivas proporções. Assim, Geni seria aquela que muito bem nos fez, ou de quem dependemos para sobreviver, que nos sustém, nosso próprio chão, do qual o comandante seria nosso dirigente.

Chico Buarque deu a tantas prostitutas a dignidade de parecerem damas, desfilando por toda a música, ilesas e invejadas por muitas mulheres. Não por acaso, entregou aquela dama a humildade em se fazer passar, por décadas, por uma prostituta. Estaria assim despido o preconceito, expressando aos poucos sua vergonha, que desejamos tanto algum dia ser tamanha, que lhe provoque o suicídio.

Limpar toda bosta e cuspe aos quais Geni foi submetida até hoje, não é uma tarefa fácil. E depois, quem sabe fechar-lhe as feridas causadas pelas pedradas. Não fosse pelo fato de agora, mais do que nunca, ela estar sendo açoitada por um comandante e emporcalhada pela mesma gente bonita que chamava seu povo de “qualquer um”, curá-la seria possível.

Sim, o nego do mangue e do cais, os errantes, os pobres cegos e os retirantes, os tidos como loucos, são hoje os suburbanos, o populacho, estão no comboio da Penha, na favela, nas quebradas da Maré. Os discriminados pela cor, gênero ou classe social, os desfavorecidos pela exploração, os estigmatizados e excluídos, as minorias sociais, os desprezados como nada – era esse o povo de Geni em 1978, por quem ela tentou sorrir depois de dar-se ao carrasco – é esse o povo de Geni em 2019, por quem ela jamais economizou amor e vendeu sua dignidade.

A essa altura, as divagações atingem a curiosidades aleatórias, e buscando um motivo pelo qual Chico teria batizado uma personagem de tais atributos como Genival, podemos encontrar o significado do seu nome: “nascido para governar”. De fato! Um governante deveria ter como qualidades que não se aprendem nem se compram, exatamente a humildade e irmandade do homérico Genival. E Geni, escolhido por Genival para brindar a sua essência, não seria um apelido ou abreviatura, mas um nome, que significava “a graça e misericórdia de Deus”. Pois era justamente assim a Geni, cheia da graça divina, do coração indulgente, da mente transigente, da alma em comiseração, e inteiramente desapegada do corpo. Fortuitamente, encontrei o termo Índice de Gini, desenvolvido pelo matemático italiano Corrado Gini, em 1912. Também conhecido por coeficiente de Gini, trata-se de um cálculo usado para medir a desigualdade social, que indiretamente, era o que Geni fazia naquela cidade.

Sempre tenho o imenso prazer em ouvir Geni e o Zepelim, essa fabulosa canção do Chico. Mas ainda há pouco, apreciando seu último lançamento, senti a angústia ao escutar o comandante gritando “Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria”, depois senti o abraço de Geni que me dizia inteligentemente “Filha do medo, a raiva é mãe da covardia”. Todo esse sentimento me fez cogitar que estamos de fato revivendo a ditadura, em pleno 2019, que de plenitude não tem tido absolutamente nada. Então respirei fundo, quando ouvi Chico, ao retomar o eu lírico da música, ler os meus pensamentos “Ou doido sou eu que escuto vozes / Não há gente tão insana / Nem caravana do Arará”.

Vendo-nos agora reféns de fraudes, daqueles que são avessos a verdade, de fatos ignorados e da altivez conquistada pelo disparate, o que nos alenta é saber que, “amanhã vai ser outro dia”. Portadora do amor incondicional, tratado como doença por paisanas, capatazes e ridículos tiranos, estivesse Geni cá conosco, ela cantaria “Como vai proibir / Quando o galo insistir/ Em cantar / Água nova brotando/ E a gente se amando / Sem parar / Quando chegar o momento / Esse meu sofrimento / Vou cobrar com juros, juro / Todo esse amor reprimido / Esse grito contido / Este samba no escuro”.

Caberiam aqui lembranças tristes de tantos outros trechos, textos e canções, que derivam desse encontro com Geni, sendo todos “músicas para os meus ouvidos” perante o caos. Mas com um pedacinho de Podres poderes de Caetano Veloso, fica uma bela ilustração: “Enquanto os homens exercem seus podres poderes / Motos e fuscas avançam os sinais vermelhos / E perdem os verdes / Nós somos uns boçais”.

Embarque no Zepelim (Rio de Janeiro)
Embarque no Zepelim (Rio de Janeiro)

Eu não encerro, mas perpetuo essa reflexão, com um trecho do livro Lavoura Arcaica de Raduan Nassar. Não pude deixar de observar em minhas leituras, que parte de um diálogo entre André e seu pai, parece descrever perfeitamente o comportamento da gente ordeira e virtuosa, que alienada, apela, tanto naquela cidade, bem como no meu país:

“- Não quero acreditar no pouco que te entendo, meu filho.

– Não se pode esperar de um prisioneiro que sirva de boa vontade na casa do carcereiro; da mesma forma, pai, de quem amputamos os membros, seria absurdo exigir um abraço de afeto; maior despropósito que isso somente a vileza do aleijão que, na falta das mãos, recorre aos pés para aplaudir o seu algoz; age quem sabe com a paciência proverbial do boi: além do peso da canga, pede que lhe apertem o pescoço entre os canzis. Fica mais feio o feio que consente o belo…

– Continue.

– E fica também mais pobre o pobre que aplaude o rico, menor o pequeno que aplaude o grande, mais baixo o baixo que aplaude o alto, e assim por diante. Imaturo ou não, não reconheço mais os valores que me esmagam, acho um triste faz-de-conta viver na pele de terceiros, e nem entendo como se vê nobreza no arremedo dos desprovidos; a vítima ruidosa que aprova seu opressor se faz duas vezes prisioneira, a menos que faça essa pantomima atirada por seu cinismo.

– É muito estranho o que estou ouvindo.

– Estranho é o mundo, pai, que só se une se desunindo; erguida sobre acidentes, não há ordem que se sustente; não há nada mais espúrio do que o mérito, e não fui eu que semeei esta semente.

– Não vejo como todas essas coisas se relacionam, vejo menos ainda por que te preocupam tanto. Que é que você quer dizer com tudo isso?

– Não quero dizer nada.

– Você está perturbado, meu filho.

– Não, pai, eu não estou perturbado.

– De quem você estava falando?

– De ninguém em particular; eu só estava pensando nos desenganados sem remédio, nos que gritam de ardência, sede e solidão, nos que não são supérfluos nos seus gemidos, era só neles que eu pensava.”

 ZEPELIM CHEGANDO NO RIO DE JANEIRO

DE ONDE ELA VEIO? POR ONDE ANDARÁ?

A “Ópera do Malandro” (publicada em livro pela Livraria Cultura Editora, em 1978) se mostra no Teatro de maneira inusitada em sua própria formatação. Embora tenha a estrutura tradicional das peças, com atos e cenas, ela ainda contém uma introdução, na qual um “produtor” de smoking (a personagem Duran), à frente da cortina fechada, apresenta ao público o “autor da peça”, João Alegre, que entra no palco vestido de malandro carioca, justificando que a arrecadação da bilheteria irá para a Morada da Mãe Solteira, cuja presidente é a Sra. Vitória, mulher de Duran, dono de um prostíbulo na cidade.

Em seguida, tem-se um prólogo. João Alegre canta O Malandro, preparando o público para aquele mundo confuso no período da Segunda Guerra Mundial, dos interesses econômicos, do americanismo, do aumento de preços (a chamada “carestia”) para satisfazer as grandes corporações, e que no final o culpado de tudo é o malandro. E só depois começa o espetáculo propriamente dito, com o Primeiro Ato e suas três cenas. Após o Segundo Ato, surge inesperadamente um segundo prólogo, e depois um “Epílogo Ditoso (ópera)” no qual as personagens entoam trechos de árias famosas, adaptadas para o fecho da história. Mas não acaba aí, eis que invade o palco o “Epílogo do Epílogo” – João Alegre cantando O Malandro nº 2, aí de fato chega ao fim.

joão cantando o malandro

Essa locução multifacetada com tantas camadas de linguagem sobrepostas dá o tom da mensagem por detrás da história. O espectador está diante de realidades dentro da realidade? Sonhos ou pensamentos entremeando outros sonhos e pensamentos? Esse labirinto cambiante e quase vertiginoso é proposital. Um dos recados fortes da peça é justamente o da possibilidade de construção da realidade a partir de versões e perspectivas de cada um. A história não tem dono, as pessoas é que se apossam das versões da verdade.

Por isso, no universo do prostíbulo de Duran, percebe-se uma autenticidade na forma como o explorador de mulheres se sente um empresário, útil ao país e aos bons costumes, com a sua senhora, Vitória, coadjuvando-lhe nos negócios e que tornam a família respeitável, embora a filha, Teresinha fosse uma rebelde. Ela acaba por contrariar a lógica da expectativa de construção numa linhagem de empresários bem sucedidos, e se casa com o malandro Max, em vez de escolher um “bom partido”. Duran e Vitória sempre tiveram a filha como investimento. Seria bom entregá-la a alguém cujo casamento lhes desse retorno financeiro. Enfim, há várias formas de prostituição, entre as piores, que desconhecem qualquer viés sexual, temos tantos exemplos atuais, como a prostituição moral, ética, e de um caráter que provavelmente nunca tenha se quer existido.

O prostíbulo, o gueto dos bandoleiros chefiados por Max, a delegacia que faz cumprir a lei com suas próprias leis – não se sabe ao certo se naqueles nichos de convivência da peça, os seus habitantes gravitam em torno de delírios por eles mesmos criados para justificar suas atitudes ilícitas. Talvez eles de fato acreditassem que eram engrenagens bem untadas de uma sociedade que progride rumo ao futuro, embora tenham que se valer de temperos tradicionalmente incorporados à culinária típica de um povo: a prostituição, o crime, o abuso de poder das autoridades, as fraudes, a corrupção.

Daí vêm as diversas camadas e linguagens infiltrando as realidades das histórias dentro de histórias. E nesse contexto, surge o eixo em torno do qual tais engrenagens giram: a personagem de Geni.

Sim. Geni, ou Genival, ciente de sua dimensão humana, convive bem com todos, e plenamente com si mesma, em meio a tantas ficções e aberrações morais e éticas. Mas, aparentemente não se insere no contexto de personagem principal, que tem como ponto de referência a tríade composta pelo malandro (Max), a mulher com quem se casa (Teresinha), e o dono do prostíbulo que se pensa um empresário cumpridor de seus deveres (Duran).

Todavia, lá está ela, presente em quase todas as cenas. O Primeiro Ato, com três cenas, só não conta com a participação de Geni em uma delas, e do Segundo Ato, desdobrado em sete cenas, Geni se ausenta apenas em três cenas, sendo uma delas diminuta.

Essa presença nas seis cenas, de um total de dez, não é o único dado objetivo que faz de Geni uma personagem central na peça. Ela também encarna a própria linguagem do Musical, que é mostrar o teatro dentro do teatro. Teria então Geni, cumprido assim sua missão, para muito além das expectativas de Genival, do público e do próprio compositor de sua música e escritor da ópera.

Genival e Geni estarão por lá, passeando juntos pelos palcos, eternamente vivos. Até mesmo ao falecer, diante o lamento do malandro, vítima da tirania uniformizada, ressuscita na sensibilidade do leitor, espectador ou ouvinte. Fazedores de artes são aqueles capazes de dar á luz aos imortais: os personagens.

Já aos inúmeros Genivals e Genis da realidade, o dom da ressurreição não foi concedido. O projétil direcionado a eles não é de festim como o daquela peça. Eles são feitos da carne, que cobre o chão em segundos, não permitindo prévios ensaios. Os que tiveram a sorte de fugir da violência e se esquivar do ódio, estão por aí vivendo as suas vidas oscilando entre a alegria e o medo. Já aqueles que tiveram subtraído o Direito a Vida, não passeiam mais em lugar algum; visitam a lembrança de suas mães chorosas e os sonhos dos que até então sobreviveram.

Emiliano Queiroz, como Geni (1978)
Emiliano Queiroz, como Geni (1978)

ANTES DE FECHAR AS CORTINAS, APLAUSOS AOS QUE DERAM BRILHO À GENI

O ator cearense Emiliano Queiroz, atualmente com 83 anos de idade, interpretou Geni na primeira montagem da peça teatral, que estreou no Rio de Janeiro, em 26 de julho de 1978.

O ator, bailarino, professor de dança e coreógrafo J. C. Violla, fez a Geni do cinema, no filme de 1985, produzido e dirigido por Ruy Guerra, que também elaborou o roteiro, com Chico Buarque e Orlando Senna.

Os atores Fernando Eiras e Sandro Christopher, interpretaram a Geni no teatro, na montagem dirigida por Charles Möeller e Claudio Botelho, nos anos de 2003 a 2005, no Rio de Janeiro, São Paulo e Portugal. Esse espetáculo eu tive o privilégio de assistir, no Canecão, Rio de Janeiro, em 8/5/2005.

CORTINAS CERRADAS

Completados exatos 40 anos em que Geni salta do teatro para o disco, com a gravação da música Geni e o Zepelim, pela voz do seu compositor, Chico Buarque, no Longplay (LP) “Ópera do Malandro” (1979), surge um fato histórico.

Analisando a questão dos crimes de homofobia, estabeleceu-se um marco definitivo contra o preconceito. As práticas homotransfóbicas passam a qualificam-se como espécie do gênero racismo, na dimensão de racismo social. Sendo, portanto crimes, na medida em que tais condutas importam em atos de segregação que inferiorizam membros integrantes do grupo LGBT, ou seja, a comunidade global das pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros e intersexuais, além de outras definidas por sua orientação sexual ou identidade de gênero.

LGBT

BIS! MAIS UM!

Atendendo aos pedidos daqueles que agora podem ouvir com os olhos, eis a história cantada por Geni, contada por Genival, e escrita pelo nosso querido Chico.

Geni volta aos palcos, apesar de nunca ter saído de cena.

Geni e o Zepelim

Chico Buarque/1977-1978

De tudo que é nego torto
Do mangue e do cais do porto
Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes
Dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada
Dá-se assim desde menina
Na garagem, na cantina
Atrás do tanque, no mato
É a rainha dos detentos
Das loucas, dos lazarentos
Dos moleques do internato
E também vai amiúde
Co’os velhinhos sem saúde
E as viúvas sem porvir
Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir
Joga pedra na Geni
Joga pedra na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

Um dia surgiu, brilhante
Entre as nuvens, flutuante
Um enorme zepelim
Pairou sobre os edifícios
Abriu dois mil orifícios
Com dois mil canhões assim
A cidade apavorada
Se quedou paralisada
Pronta pra virar geleia
Mas do zepelim gigante
Desceu o seu comandante
Dizendo – Mudei de ideia

– Quando vi nesta cidade
– Tanto horror e iniquidade
– Resolvi tudo explodir
– Mas posso evitar o drama
– Se aquela formosa dama
– Esta noite me servir
Essa dama era Geni
Mas não pode ser Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

Mas de fato, logo ela
Tão coitada e tão singela
Cativara o forasteiro
O guerreiro tão vistoso
Tão temido e poderoso
Era dela, prisioneiro
Acontece que a donzela
– e isso era segredo dela –
Também tinha seus caprichos
E a deitar com homem tão nobre
Tão cheirando a brilho e a cobre
Preferia amar com os bichos
Ao ouvir tal heresia
A cidade em romaria
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos
O bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão
Vai com ele, vai Geni
Vai com ele, vai Geni
Você pode nos salvar
Você vai nos redimir
Você dá pra qualquer um
Bendita Geni

Foram tantos os pedidos
Tão sinceros, tão sentidos
Que ela dominou seu asco
Nessa noite lancinante
Entregou-se a tal amante
Como quem dá-se ao carrasco
Ele fez tanta sujeira
Lambuzou-se a noite inteira
Até ficar saciado
E nem bem amanhecia
Partiu numa nuvem fria
Com seu zepelim prateado
Num suspiro aliviado
Ela se virou de lado
E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir
Joga pedra na Geni
Joga bosta na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

Chico Buarque gravou a música de sua autoria Geni e o Zepelim, em quatro momentos distintos ao longo desses 40 anos: 1) Longplay (LP) “Ópera do Malandro”, 1979. 2) Longplay (LP) “Chico en Español”, 1982. 3) CD, DVD e BLURAY  “Na Carreira” – show ao vivo, 2013. 4) CD, DVD, BLURAY e STREAMING “Caravanas” – show ao vivo, 2018.

CAPA LP OPERA DO MALANDRO - OTIMA RESOLUCAO

“(…) eu tenho certeza de que as pessoas gostam dos artistas por equívoco, ou por motivos que são mais delas do que do artista. Você nunca sabe o que faz determinada pessoa gostar da sua música, ou por que ela gosta de tal música sua. Outro dia, parei em uma barraquinha de coco, na praia, e o vendedor olhou para mim e disse: ‘Chico Buarque, o bispo dos olhos vermelhos!’ Na hora, não entendi nada; levei um susto. Só depois do susto é que me lembrei que na letra da música Geni, que é de 1979, falo de um bispo de olhos vermelhos. Como é que um vendedor de coco guardou essa imagem durante tantos anos?”

(Trecho da entrevista de Chico Buarque para a Revista Nossa América, em 1989; há 30 anos, portanto)

CHICO MALANDRO

RETRATO EM BRANCO E PRETO – SABIÁ

NO RETRATO, A SABIÁ

Eu confesso a aversão a binóculos desde menino, apesar de sua encantadora promessa de esticar a vista, atravessando quilômetros como num passe de mágica. Na verdade, achava engraçado esse nome, bi-n-óculo. Parecia que alguém cortara uma perna dos óculos, o “s”, decepando a letra da palavra, e mesmo sabendo que bi significa dois, um “n” perdido no meio da expressão me fazia rir ao imaginar, “de que adianta um binóculo se ele nem consegue achar uma letra perdida dentro de si mesmo?”. Certamente essa antipatia era inveja de míope. Os portadores de miopia como eu sentem imenso despeito dos que enxergam sem a necessidade de incomodar as orelhas com ganchos que as volteiam na ilusão de não serem notados. É chato servir de referência no meio da multidão, pois alguém sempre há de dizer: “o Francisco é aquele ali, vizinho ao de óculos”.

Pela primeira vez, contudo, sinto falta de binóculos. Daqui diante do mar, flertando sua imensidão azul, me intriga saber até que ponto o azul é do mar ou do céu que o toca. Tento em vão distingui-los pelas nuvens e espumas com seus desenhos disformes, mas ambos são rajados esbranquiçados que neles levitam. Céu e mar parecem querer me enganar na proposta de um único azul. É inútil, não vou conseguir binóculos nesta praia; são tantos ambulantes que se arriscam a trabalhar em difícil caminhada na areia fofa ofertando sabores e coisas. Imaginar um vendedor fazendo o pregão “binóculos! Quem quer binóculos!” é tão ridículo como minha face agora, contraída, a espremer os olhos em busca de enxergar melhor à frente de meus óculos batizados de maresia, almejando sem êxito enxergar a divisão do azul do mar com o azul do céu.

PRAIA DO FUTURO - CEU E MAR
Praia do Futuro. Fortaleza, Ceará.

“Seria bem mais fácil se tudo fosse branco e preto”, suspiro num desabafo disfarçado em conformismo. Branco e preto. Eu bem sei que se fala por aí em preto e branco, mas já não sei o que me deu para essa fuga do comum. Talvez seja a cadência das ondas, me induzindo a um torpor bem compatível com o mormaço desta tarde, ondas que me levam a perceber que não são sempre iguais. Começo a contá-las, numa provocação à natureza, e penso, “jamais elas seriam tão ritmadas como uma música”. Então me pego vigiando as ondas em suas idas e vindas, treze ondas seguidas e praticamente iguais, para só então outra em tempo e forma diferente quebrar a sequência, surgindo daí três ondas com suas próprias vontades. Nova contagem. Treze novamente, e a quebra pelas três seguintes. Dezesseis ondas, treze iguais, depois três a desequilibrar a rotina marítima. Nesse momento, dá-me um calafrio. Lembro-me do branco e preto por mim pensado antes, e agora essa sequência de ondas no mar. Puxo pela memória… foi num artigo que li há bastante tempo de Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, dizendo que Tom Jobim fizera uma música em 1965  chamada “Zíngaro”, com a triste melodia de quem sente saudade de seu país – pois na época ele morava nos Estados Unidos –, e essa música tinha dezesseis compassos rítmicos, sendo os treze primeiros absolutamente iguais. Do mesmo modo como as ondas que estou a contar.

Agora, a praia, o mar, as ondas, começam a me trazer pensamentos em busca da história daquela música do Tom, que ele dizia à irmã Helena que a compusera inspirado num violonista cigano. Na verdade isso nunca aconteceu; Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim tinha o humor tão extenso quanto seu nome. Aos 38 anos aquele músico luminoso dava “uma lição de economia e inteligência” – lembrei-me dessa parte do texto de Jairo e Zuza – com os compassos feitos por sobre uma melodia de quatro notas vizinhas, ré, dó sustenido, mi e dó natural. Vem o ritmo, e então eu me lembro das ondas… não preciso abrir os olhos, sei que elas se apresentam tal o compasso de “Zíngaro”, treze iguais, depois três fazendo crescer a dramaticidade…

Partitura de Zíngaro. Acervo Digital – Instituto Antonio Carlos Jobim.
Partitura de Zíngaro. Acervo Digital – Instituto Antonio Carlos Jobim.

Fico a imaginar aquela música em seu invólucro puramente de sons, desapegado de palavras, a esperar que um poeta viesse a lhe dar o sopro dos vocábulos. E fez-se o verbo somente em 1968, quando Chico Buarque a coloca na estrada de uma lembrança doída e sem cor, e faz surgir Retrato em Branco e Preto.

Onde começa o céu e onde termina o mar? Nem sei o porquê disso me assaltar a mente justo agora, no momento em que a cor se afasta de meu pensamento, estava mesmo era fixado no branco e preto da música, mas a cor do mar e do céu se fundem numa só… fico a pensar, e o olhar é incapaz de divisar essa fronteira. Afinal, mesmo que soubesse, diferença nenhuma faria; nós ainda nos veríamos tão pequenos diante do inteiro dos dois planos. Céu. Mar. Branco. Preto. Tom. Chico. Tento separar tudo isso para o pensamento se direcionar à letra da música; quero demais recordar cada detalhe. Eu que tanto fiz isso… esquadrinhar verso, palavra, cuidadosamente, para entender a beleza total da obra, que nunca poderia ser alcançada em sua arte perpétua. É como fazer um castelo de areia na praia, gotejando água e erguendo colunas na praia com as conchas das mãos. Mas no momento não consigo me lembrar. Deve ser o sufocamento da tarde a lançar seu recado de quentura da costa, aos poucos mais silenciosa e fresca. Agora todos já se aproveitaram das bênçãos molhadas do mar e partem como se tivessem cumprido um dever para com a natureza, numa procissão de corpos impregnados de sal. Dentro de pouco tempo estarão diante a uma queda de água doce bem diferente de uma cachoeira. A água encanada, tratada e aquecida lhes levará o sal do corpo rumo ao ralo, e a lambidela das ondas será passado.

Respiro fundo e aos poucos consigo escutar Retrato em Branco e Preto pelo ouvido da memória, mas não na ordem dos treze compassos seguidos de mais três, ela me vem embaralhada. Acredito ser uma brincadeira da mente, a testar minhas emoções, uma espécie de gincana – alguns com seus estrangeirismos linguísticos diriam quiz show – para saber até que ponto posso cerzir os sentimentos tão profundos e dramáticos da letra. Com seus mesmos tristes velhos fatos é o que me chega, repetidamente. Tristes velhos fatos. Fato é algo novo, o que surge, quando passa já não é mais fato, é recordação. Como então velhos fatos? Sim, agora lembro a imagem que sempre me rodeia ao ouvir a cantiga. O tolo da música, o aflito, recortando de modo desconsolado notícias de jornais, colunas sociais com a foto dela sorridente, ela, a quem ele sempre chama “minha cara” no início das cartas, fazendo o charme das correspondências em inglês. Naquela terra elas trariam um “my dear”, que os tradutores desavisados diriam ser meu querido ou minha querida. E esses recortes de jornais seriam os fatos que envelheceram, tornaram-se a tristeza em branco e preto, fixada num álbum.

album retratos branco preto 1

O tolo e a sua cara, cuja cara é sempre a mesma, mas volta sempre a lhe enfeitiçar, talvez pela possibilidade de mais um sorriso. Aos poucos a letra da música vem da narrativa daquele conhecedor da estrada que não dá em lugar nenhum, recheada de segredos por ele já desvendados. Mas como todo homem ludibriado ele segue mesmo cansado, passando suas noites em claro matutando seus dias de apatia, fiando-se que além dos segredos que descobrimos, existem também aqueles que só conhecemos se nos forem confidenciados. Engraçado… se nunca tivesse ouvido a música eu ficaria confuso… branco e preto, cor… Ele escreve cor, parecendo assim ser o descolorido, mas diz-se de “cór”, sendo aqui o decorado. Perderia a cor, aquilo que sabemos de cor? Então só mais um fato desfigurado na gaveta vazia trancafiada, aquela que mais adoraríamos abrir. A excitação do homem que mora na curiosidade. Sendo Chico Buarque quem disse, eu ainda penso ele saber os segredos dela de cor, vindo do latim, “de coração”. Não é difícil imaginá-lo dizendo que sabe dos segredos dela de coração. Mas fico aqui acreditando no que parece, “sei de cor”, cansado de saber; como diziam os antigos, sei de cor e salteado. E é assim que vem vindo a canção visitar minha memória, salteando os versos, sem a ordem prevista. É boa essa confusão, até porque a música fala em verbos do presente e futuro, nada de verbo no passado. Mas a história é justamente sobre um passado plasmado em retratos colecionados. Há um delírio poético proposital em mostrar o passado não em verbo, mas no substantivo, o retrato, adjetivado pela ausência de cor, em branco e preto, que eu já não sei mais conter um sentido literal ou figurado.

Nega-se o amor, evita-se o amor, mas ele volta a enfeitiçar, ninguém pode ir contra o encanto, é esse entanto que destrói o tanto e tanto repetidos propositadamente nos versos anteriores, porque a ilusão é mais forte do que a razão (O que é que eu posso contra o encanto / Desse amor que eu nego tanto / Evito tanto / E que no entanto / Volta sempre a enfeitiçar). De repente fico a rir sozinho! Se tenho o azar de algum médico passar a esta hora na praia ele há de acionar o serviço de recolhimento de loucos. Onde é que já se viu? Alguém na praia cantando sozinho num belo entardecer, olhos ainda cerrados, a desenhar no rosto um sentimento que só vale ao se avistar esse azul tão intenso do céu e do mar unificados… Nesse momento eu já posso entender onde começa um e termina o outro. É bem ali aonde os azuis são recheados pela luz. Depois de passear pelo azul do céu brincando de esconde-esconde com as nuvens, eis o sol que embalado pela música das ondas, se esparrama sobre o azul do mar. E assim passo a sorrir, já que este é o meu consolo. Tão logo me toma de volta a risada. É que a palavra desconsolo me enganou várias vezes, acreditando eu, ser ela um consolo desmedido. Veja só que precariedade de conhecimento! Se bem, que a música baila em meus ouvidos desde a adolescência, e a preguiça de ir ao dicionário me fez a paga de entender errado, pois, se é um consolo desmedido, como então o tolo fica cansado? No consolo se aconchega, se descansa, e eu ficava intrigado com isso, até o bendito dia em que me redimi e finalmente fui ao livro que alumia as palavras soltas, para saber que desconsolo é aflição, desgosto. Atinasse eu em meus anos dourados ao prefixo “des”, entenderia ser simplesmente: o que não consola. Sim, agora tudo faz sentido, já que, teoricamente, somente um tolo perduraria na busca do mesmo que sempre encontrou naquela estrada, e que nunca o entregou nenhum consolo. É quase como se eu pudesse ver ali nas entrelinhas, a natureza masoquista humana, às vezes nem tão discreta, mas sempre secreta (Lá vou eu de novo como um tolo / Procurar o desconsolo / Que cansei de conhecer).

partitura RBP

De repente, algumas palavras começam a se destacar da canção, como se vida própria tivessem, se apresentando a toda minha atenção. Estrada. Amor. Dias. Noites. Ainda creio que aquele retrato em branco e preto traga a imagem dele de costas caminhando numa estrada rumo a um horizonte que revela a transição sucessiva e constante das noites para os dias, mas sempre em busca de um amor que ele não alcança. Eu sempre leio as palavras do Chico como se fossem eternas crianças, com uma vida inteirinha pela frente, as possibilidades… e ouço as notas do Tom como se pássaros revelassem, a nos conduzir pelo céu, por vezes mergulhando no mar. Então quando tenho ambos, eu vivo de novo naquele menino praieiro que fui, a acompanhar o voo das aves com os olhinhos acesos. Sabiá! O passarinho daquele canto salpicado, que dá nome a outra música onde Tom e Chico casaram talentos tão generosos quantos as águas da nossa terra. Fico a pensar… a sabiá é a única lembrança que o coloca de volta nessa terra boa, já que não mais existem estradas que o conduzam a ela. Todas se perderam junto a suas noites de tortura a espera do dia de voltar. Aquele em que ele chegaria já tão amargo, que ao amor espantaria. Ele acredita que tudo está perdido no tempo que não volta, salvo no canto da sabiá, abrigo da sua fé. Eu me lembro bem. Nossa, eu fui longe agora… mas, gozado?!… aquelas mesmas palavras ainda me vigiam, estradaamordiasnoites… se repetem num círculo de mãos dadas, como se tivessem a brincar de roda. Nessa brincadeira umas trocaram de lugar com as outras, numa correria onde do dia perde-se um “s”, que a estrada encontra; enfim: ‘no popular’, “achado não é roubado”. Amor. Noites. Dia. Estradas. É como elas adentram Sabiá.

SABIA NOS GALHOS

As duas canções que me tomam aqui diante de um cenário de liberdade, foram feitas no mesmo ano, 1968. Parece ironia… Sabiá; a triste canção do exilado prometendo a si mesmo que um dia voltará ao lugar do qual nunca deveria ter saído, expulso que foi pela truculência a se assenhorar de um poder ilegítimo daqueles que possuem armas ao invés de princípios. Começa a chegar a noite e quero muito lembrar de tudo que divaguei por hoje, para quem sabe mentalmente convidar essas canções a estarem juntas. Seria uma dança de amores diferentes que se completam, mas que têm um aparente antagonismo. Vejam só, a gente não manda mesmo no pensamento, nem no sentimento, aliás não mandamos em nada, e inesperadamente uma equação lírica é montada em minha cabeça. As duas músicas falam de ausência. Retrato em Branco e Preto é a ausência da mulher. Sabiá é a ausência do país. A primeira ausência é uma força irracional que vem lá de dentro. Ele não quer ou não deve mais estar com ela, mas não consegue deixá-la, por acreditar que tudo será como antes, que sem essa mulher ficaria um tanto pior. A outra ausência é uma força racional que vem do lado de fora se impor. Ele quer e sabe que deve estar em seu país, mas não consegue ficar porque foi violentamente obrigado ao exílio. E afirma voltar ainda crendo que nada será como antes. Aqui, ambas as ausências se deparam numa ausência de si mesmo; ele não se encontra em lugar nenhum, é a solidão de fato. Na primeira ele está perdido numa estrada pela qual ele não consegue ir. Na segunda ele esta perdido porque não encontra a estrada por onde vir. Em Retrato em Branco e Preto o amor já não mais está lá, mas ele sim. Em Sabiá o amor está lá, mas ele não.

O curioso é como nas duas músicas ele não está em si no momento em que as mesmas se passam, o presente. Contudo, vive-se do passado na primeira, enquanto na segunda, anseia-se pelo futuro. Saudade alimenta Retrato em Branco e Preto. Esperança é a força-motriz de Sabiá. E assim parecem dizer as duas músicas, cada qual a sua maneira, que ele está no presente de corpo presente, com a alma entregue ao passado, querendo transpô-la ao futuro. Já que nunca poderá voltar ao passado de felicidade em ambas as canções, há de ser o futuro um lugar melhor que o presente, aonde residem as suas perdas.

album retratos 2

sabia 2

Vou voltar… a memória segue caminhos como se fosse dona de si mesma; não liga a mínima para minha vontade de querer continuar o jogo mental de comparação entre Retrato em Branco e Preto e Sabiá. Sem qualquer aviso prévio, ela me conduz aos acordes da música que lembra o cantar do pássaro das noites que não se queria. Fico a imaginar ser culpa do meu inconsciente, que pouco tempo antes estava a pontuar: vou voltar, já está anoitecendo na praia. A primeira canção se esvai da mente, como uma fotografia guardada na gaveta do móvel encostado num canto também quase esquecido.

Alguém sabia algo de sabiá no Brasil antes de Tom e Chico? Sim, certamente, aquele sabiá das palmeiras com seu gorjeio diferenciado, a compor o poema Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, de 1843 (Minha terra tem palmeiras, / Onde canta o Sabiá; / As aves, que aqui gorjeiam, / Não gorjeiam como lá). E pouco tempo depois, em 1857, com poema de idêntico nome, Casimiro de Abreu troca palmeira por laranjeira, mas o desejo de ouvir o sabiá continua (Se eu tenho que morrer na flor dos anos / Meu Deus/ não seja já: / Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde / Cantar o sabiá!). Nesses dois poemas era o sabiá, podia ser a sabiá, substantivo de dois gêneros essa ave, nem sei se foi aprendizado de escola ou visita despretensiosa ao verbete em algum dicionário.

Mais de um século depois, eis que surge a sabiá da triste e bela canção, um vir a ser (Foi lá e é ainda lá / Que eu hei de ouvir cantar / Uma sabiá), a certeza de ouvir e voltar a vê-la. A palmeira derrubada, ela já não há; mas o pior é o solo, de tal modo infectado com o veneno da tirania, que a flor ali já não dá mais (Vou deitar à sombra / De uma palmeira / Que já não há / Colher a flor / Que já não dá). Ainda assim, na lembrança do amado lugar, deita-se à sombra da palmeira inexistente, colhe-se a flor não nascida. E tenho a impressão de que ainda que estivesse tudo lá da forma como estava, seu olhar já não doaria a mesma poesia a nada que enxergasse; o seu jovem e crédulo coração teria permanecido dentro do peito daquela criança no passado. Sim, ele seguiu dissecado rumo ao exílio.

Max Beckmann. Hombre Cayendo, 1950 (Abstürzender). National Gallery of Art, Washington D. C. “Figuras del exilio”: Museo Nacional Thyssen-Bornemisza.
Max Beckmann. Hombre Cayendo, 1950 (Abstürzender).
National Gallery of Art, Washington D. C.
“Figuras del exilio”: Museo Nacional Thyssen-Bornemisza.

Duas palavras tão simples e efusivas: Vou voltar!… possuem a força da certeza. Vou voltar. Sons que lembram o voo, não o do pássaro, é o voo de quem há de regressar à terra da qual foi desterrado, para ouvir cantar uma sabiá. A essa altura, noite avançando, a praia escura, sou capaz de avistar ao longe o contorno das árvores já enegrecidas, e imaginar sabiás em seus refúgios de dormir, distantes árvores agora enegrecidas, as aves e seus pequeninos olhos cerrados, porém atentas ao dia que certamente chegará com um sol radiante.

Tom e Chico. Essa viagem musical a percorrer minha mente. Certo dia do passado rabisquei num papel que deixava ao lado do livro há muito repousado em minha cabeceira, Chico Buarque: tantas palavras – todas as letras & reportagem biográfica de Humberto Werneck. Ali constatei que o ano de 1968, com Retrato em Branco e Preto e Sabiá, representou o começo de uma parceria a atravessar quatro décadas, do final daquele ano de 1960 ao início do ano de 1990, totalizando 12 músicas desses dois artistas juntos. Percebe-se que a verdadeira parceria que os unia percorreu vieses de irmandade, versos aqui e acolá soprados por Chico nas trilhas musicais pautadas pela melodia do Tom, como em Lígia e Wave. Para além do completo, percebia-se um raro acontecimento quando se tem o convívio entre dois mundos que tentaram ser homens: a inspiração mútua. Tom, em carta escrita na cidade de Nova York, em outubro de 1989, disse que Chico Buarque era homem do povo, mestre da língua, a lealdade, a generosidade, a coragem. Chico, por sua vez, denominou Tom Jobim de seu Maestro Soberano, a soprar a toada que ele cobriu de redondilhas na cantiga-conselho aos jovens, para que eles se viciassem nos grandes mestres da música nacional, entoando ao final seu autêntico lema: Vou na estrada há muitos anos / Sou um artista brasileiro (Paratodos/1993). Vou na estrada. Vou voltar. Ele voltou sim. E segue na estrada, não aquela em branco e preto, e sim “numa estrada de pó e esperança”, como disse o Tom naquela mesma carta.

Finalmente consigo dormir, sentado mesmo… tantos pensamentos a rondar minha cabeça, não ouso me deslocar. Não convém buscar o horizontal modo de aguardar o sono. O momento é precioso demais para dissipar-se em confortos banais. O sono me alcança; eu juro que ele tem a forma de uma sabiá, pousada em meu ombro de asas abertas. Ao pé do meu ouvido ela derrama seu canto, me embalando rumo ao sonho. Chegando lá, alça seu voo,  abrindo caminho numa estrada de pó e de esperança. Ali a ave lírica torna-se onírica, acompanhada de versos, cartas, dias, noites, amor, palmeiras, flor, tudo materializado em indescritíveis imagens coloridas. Por vezes, aquele pássaro pousa e salteia cantarolando pelo caminho, com todas essas coisas o seguindo como se fosse uma procissão em busca de luz. Tom Jobim dizia que o ser humano aprendeu a falar ouvindo o canto dos pássaros. Creio que a sonhar também.

Chico e Tom. Foto de Marco Cavalcanti. 1978.
Chico e Tom. Foto de Marco Cavalcanti. 1978.

Retrato em Branco e Preto

Tom Jobim/Chico Buarque/1968

Já conheço os passos dessa estrada
Sei que não vai dar em nada
Seus segredos sei de cor
Já conheço as pedras do caminho
E sei também que ali sozinho
Eu vou ficar, tanto pior
O que é que eu posso contra o encanto
Desse amor que eu nego tanto
Evito tanto
E que no entanto
Volta sempre a enfeitiçar
Com seus mesmos tristes velhos fatos
Que num álbum de retratos
Eu teimo em colecionar

Lá vou eu de novo como um tolo
Procurar o desconsolo
Que cansei de conhecer
Novos dias tristes, noites claras
Versos, cartas, minha cara
Ainda volto a lhe escrever
Pra lhe dizer que isso é pecado
Eu trago o peito tão marcado
De lembranças do passado
E você sabe a razão
Vou colecionar mais um soneto
Outro retrato em branco e preto
A maltratar meu coração 

Sabiá

Tom Jobim/Chico Buarque/1968

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
Uma sabiá

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Vou deitar à sombra
De uma palmeira
Que já não há
Colher a flor
Que já não dá
E algum amor
Talvez possa espantar
As noites que eu não queria
E anunciar o dia

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Não vai ser em vão
Que fiz tantos planos
De me enganar
Como fiz enganos
De me encontrar
Como fiz estradas
De me perder
Fiz de tudo e nada
De te esquecer

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
Uma sabiá

Foto de Antonio Nery. 1968. Acervo da Associação Brasileira de Imprensa.
Foto de Antonio Nery. 1968. Acervo da Associação Brasileira de Imprensa.

Em 30 de setembro de 1968, no Estádio do Maracanãzinho, no Rio de Janeiro, Sabiá, interpretada por Cynara e Cybele, foi a música vencedora da fase nacional do III Festival Internacional da Canção Popular, organizado pela Secretaria de Turismo da Guanabara e pela TV Globo, e venceu também a fase internacional (Dados extraídos do livro Histórias de Cancões: Chico Buarque, de Wagner Homem. São Paulo: Leya, 2009. pp. 69/71).

CARTA - TOM - PAGINA 1

CARTA - TOM - PAGINA 2

 

 

 

 

 

 

A BELA E A FERA

Não é segredo para nós que O Grande Circo Místico é uma obra-prima criada em versos por Jorge de Lima, recontada em musical, primeiro no Ballet Guaíra, depois na peça teatral de Naum Alves de Souza, tendo por fio condutor as composições de Edu Lobo e Chico Buarque. Lá, cada personagem do poeta é como uma ostra, que posteriormente infiltrada pelos músicos, apresenta-se então recheada com magnífica pérola.

CAPA LP PARA BLOG

Por este blog, que anteriormente rebentou As muitas histórias de Lily Braun (http://mantovanni.blog-dominiotemporario.com.br/2018/11/13/as-muitas-historias-de-lily-braun/), revisitemos agora tal circo a fim de vislumbrar a joia perfeitamente esférica contida em A Bela e a Fera.

O lado místico daquele circo transpõe o poema através da surpreendente envergadura de Chico Buarque pinçando personagens aparentemente secundárias do Poema, desnudando figuras inesquecíveis. Assim como foi com “a deslocadora” será também com “o homem fera”? Sigamos.

Além de esculpir a preciosa letra para a melodia de Edu Lobo, tendo como tema o homem fera, Chico emprestou humanidade e lirismo ao Gigante, de tal modo que, sua imagem rude contida no poema foi descortinada. Jorge de Lima encobriu a participação do boxeur Rudolf em seu poema com o ato de violação à Margarete, filha de Lily Braun. Revelando-se econômico na palavra, mas dispendioso no mistério, o poeta emendou convertendo o ateu em cristão e abatendo-o, não se sabe se diante a vida de fato, ou se apenas para a descrença.

O POEMA

O Grande Circo Místico

Jorge de Lima

O médico de câmara da imperatriz Teresa – Frederico Knieps –
resolveu que seu filho também fosse médico,
mas o rapaz fazendo relações com a equilibrista Agnes,
com ela se casou, fundando a dinastia de circo Knieps
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Charlote, filha de Frederico, se casou com o clown,
de que nasceram Marie e Oto.
E Oto se casou com Lily Braun a grande deslocadora
que tinha no ventre um santo tatuado.
A filha de Lily Braun – a tatuada no ventre
quis entrar para um convento,
mas Oto Frederico Knieps não atendeu,
e Margarete continuou a dinastia do circo
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Então, Margarete tatuou o corpo
sofrendo muito por amor de Deus,
pois gravou em sua pele rósea
a Via-Sacra do Senhor dos Passos.
E nenhum tigre a ofendeu jamais;
e o leão Nero que já havia comido dois ventríloquos,
quando ela entrava nua pela jaula adentro,
chorava como um recém-nascido.
Seu esposo – o trapezista Ludwig – nunca mais a pôde amar,
pois as gravuras sagradas afastavam
a pele dela o desejo dele.
Então, o boxeur Rudolf que era ateu
e era homem fera derrubou Margarete e a violou.
Quando acabou, o ateu se converteu, morreu.
Margarete pariu duas meninas que são o prodígio do Grande Circo Knieps.
Mas o maior milagre são as suas virgindades
em que os banqueiros e os homens de monóculo têm esbarrado;
são as suas levitações que a platéia pensa ser truque;
é a sua pureza em que ninguém acredita;
são as suas mágicas que os simples dizem que há o diabo;
mas as crianças crêem nelas, são seus fiéis, seus amigos, seus devotos.
Marie e Helene se apresentam nuas,
dançam no arame e deslocam de tal forma os membros
que parece que os membros não são delas.
A platéia bisa coxas, bisa seios, bisa sovacos.
Marie e Helene se repartem todas,
se distribuem pelos homens cínicos,
mas ninguém vê as almas que elas conservam puras.
E quando atiram os membros para a visão dos homens,
atiram a alma para a visão de Deus.
Com a verdadeira história do grande circo Knieps
muito pouco se tem ocupado a imprensa.

(Do livro A Túnica Inconsútil, de 1938 – destaquei o trecho relacionado à Bela e à Fera)

Tem-se por aqui a ligeira impressão de que eram de fato dois. Gêmeos ou não, era ele o homem Rudolf, escondido por detrás da Fera boxeur. Eis que ao macular o templo de Margarete, a fera é liquidada, libertando o homem. Tão breve aquele que até então trabalhava no circo expondo as habilidades do boxeur, permaneceria naquela labuta, só que agora como Rudolf. É precisamente neste momento que Chico Buarque consegue fisgá-lo, mostrando-nos com precisão o momento da mutação da fera em homem, aonde ele não é nenhum e ambos ao mesmo tempo.

Circus artist clown strong man fair figure, de Borgen Lindhardt
Circus artist clown strong man fair figure, de Borgen Lindhardt

Nessa canção em parceria com Edu, Chico revela que à medida que a fera concentra suas forças para sua maior brutalidade, o homem dissipa sua luz naquilo que seria poesia ainda que não fosse um poema. É o boxeur Rudolf oscilando entre o medo de morrer sua besta fera, e a coragem de nascer seu príncipe cristão. Chico se veste de fera ressuscitando o Gigante em forma de poeta que canta sua paixão por Margarete. Com metáfora que anuncia mais alusão a um arroubo de vontade do que a efetiva realização dela, ele encerra a música dissecando as entrelinhas matutadas por Jorge de Lima.

Foi esse olhar piedoso que Chico lança em direção à Fera, concedendo-lhe um coração de poeta tão próximo à face carrancuda, bem como os elementos do poema de Jorge de Lima, que me trouxeram até aqui. Vou contar a vocês uma história obedecendo aqueles que dizem que “quem conta um conto aumenta um ponto”. Certa vez tive o prazer de presenciar um gnomo perguntando a uma árvore do que se alimentava a criatividade. Sabem o que ela respondeu? “Ouça pequetito, toda criação se alimenta de liberdade”. Eu acordei curioso, mas feliz, sonhando nunca deixar a minha findar-se na fome.

partitura bela e a fera 1

UM CORAÇÃO DE POETA

Não brilharia a estrela, oh bela
Sem noite por detrás
Tua beleza de gazela
Sob o meu corpo é mais
 
Uma centelha num graveto
Queima canaviais
Queima canaviais…

Queima canaviais… não consigo terminar!

O barulhento som do murro na mesa foi o que despertou Kleine Schafe, até então de olhos fechados. Kleine ouvia aqueles versos saídos da boca de Rudolf; não fosse a brusca interrupção, ele juraria estar ali ao lado de um poeta, e não do homem mais forte do planeta.

O anão k – ele não se incomodava em ser chamado dessa maneira – sentia orgulho por criar frases de efeitos, slogans chamativos para o Grande Circo Místico. “O homem mais forte do planeta” foi ideia sua, para anunciar aquele boxeur cuja altura, por si só, impunha medo a qualquer um. Inicialmente o anão k fora contratado por sua estatura, incrivelmente menor em relação àqueles que, pela condição genética, têm mesmo a altura abaixo da média. Mas com o tempo ele foi mostrando erudição, fruto de leituras incansáveis, justamente por ser rejeitado desde criança nos grupos de brincadeiras, assim preferia mergulhar em seus mundos feitos de papéis e letras, nos quais não importava a estatura de quem os lia.

Kleine, o anão k, foi apresentado a Rudolf numa tarde de sufocante calor, pelo trapezista Ludwig, ele acabara de conhecê-lo nas ruas, em torneios informais de lutas, cujo propósito era de fomentar apostas.

– Olha só! – disse Ludwig – Esse gigante será a nova atração do circo!

– É um titã… – falou de modo pensativo o anão k, enquanto alongava o pescoço a fim de mensurar a real altura daquele homem.

– Titã. Gostei! – replicou Rudolf. Ele sequer imaginava o significado da palavra, mas lhe soou bem. Foi a primeira vez que não o chamaram de gigante, ele já estava cansado dessa palavra.

– A partir de agora – falou Ludwig sorrindo – os dois devem andar juntos, assim o anão ficará ainda mais cotoco enquanto o nosso gigante mais colossal.

– Titã. – corrigiu Rudolf.

– Certo, certo. Titã! – aquiesceu rapidamente Ludwig, não convinha contrariar aquele gigante, ou melhor, titã.

Essa a razão pela qual o anão k e o titã Rudolf se tornaram praticamente irmãos siameses. Estavam sempre unidos, parecendo existir uma espécie de cordão invisível atando os dois, num contraste surpreendente e ao mesmo tempo enternecedor. O anão k estava sempre de cara emburrada, não por mau humor, mas sua instrução o tornou assim; encontrava a gravidade nos gestos de modo tão rebuscado quanto as palavras escolhidas para falar. Ele criara esse truque pra driblar seu tamanho, ao falar palavras bonitas, é como se elevasse sua estatura. O Titã, todavia, parecia usar uma máscara emprestada, pois sua cara era de um sorriso cândido, não por bondade; o fato é que em seus pensamentos a poesia ocupava todo o espaço de sua confusa cabeça. Ele se sentia assim mais infantil, era quase uma forma de voltar a ser criança e, consequentemente, reduzir sua vertiginosa altura.

Como andavam sempre juntos, o anão k sabia que o Titã sonhava em ser poeta, e testemunhava seu sofrimento pelos versos criados de improviso e declamados com certa dificuldade.

Por vezes eles eram antagônicos para além do tamanho, e se desentendiam. Demorou um pouco até Rudolf ser convencido de que o cartaz com o desenho de seu corpanzil dando nó em trilhos de ferros estava perfeito. Ele não gostou quando o anão k sugeriu que no cartaz constasse “O homem mais forte do planeta”. Ele queria ser o titã. Mas o público não entenderia aquela palavra, vinda da mitologia grega. O anão K explicou a Rudolf que titã era cada um da família de gigantes filhos de Urano (o Céu) e Gaia (a Terra) e que tentaram escalar o céu para destronar Zeus, mas foram vencidos. Logo, não seria conveniente um cartaz se perdendo com palavras pouco usadas.

– Gigante! – exclamou k, e assim ficou.

O anão tinha essas lembranças guardadas em sua mente, que agora davam as caras num lampejo. Foi quando ele se deu conta de que, após o murro na mesa, o Gigante assumira um ar de imensa tristeza.

Quase que eu fiz um soneto… – lamentava o Titã.

– Seu quase-soneto estava uma maravilha! – assim tentou o anão k animá-lo. – Como era mesmo? Não brilharia a estrela, oh bela… continue! Tente terminá-lo! Se quiser, vou escrevendo.

O Titã nunca dissera aos outros companheiros do circo que não sabia escrever, era vergonhoso demais. Ele ficava rabiscando desenhos, os papéis escondidos entre as enormes mãos, fingindo agrupar palavras. Só o anão k sabia de sua condição de iletrado. Ainda assim, o Gigante não se sentia à vontade para ditar seus precários versos ao amigo.

Rudolf tentava de memória elaborar rimas. Falava, esquecia, não escrevia, tudo se perdia; era esse o drama do Gigante, que queria ser chamado de titã. Depois passou a ser conhecido como “a Fera”, desde que o anão k falou aos integrantes do circo que o nome Rudolf se escrevia antigamente Hrodulf, formado pela união das palavras hrod (famoso), e wulf  (lobo). Então Rudolf significava lobo famoso.

Em sua simplicidade pueril, a Fera se ocupava basicamente de três coisas: fazer demonstrações de sua força no picadeiro, tentar construir sonetos em sua cabeçorra atarantada, e admirar a beleza de Margarete, cujo amor ele cultivava secretamente, mesmo se sentindo constrangido, afinal Margarete era casada com Ludwig, que o trouxe ao circo. Mas desse amor secreto o anão k já suspeitava; ele flagrou diversas vezes a Fera despindo Margarete com o olhar, tentando adivinhar seu corpo, já que a Bela – assim era conhecida a mulher do trapezista Ludwig – se vestia de modo hermético, saia longa e blusa até o pescoço.

Comentava-se no circo que Margarete chegou a acreditar ter que seguir imaculada ao convento, já que fora concebida e gerada sob a imagem do um santo desenhado no ventre de Lily Braun, mas que seu pai a tirou de cabeça. Ela então permaneceu no circo, se unindo ao trapezista, com quem não teve filhos. A Bela teria então, sofrendo por amor de Deus, adornado a carne com toda a Via-Sacra do Senhor dos Passos. Diziam que ela se cobria de tal forma, não por ser pudica, mas por carregar em sua pele rosada essa imensa tatuagem, ainda mais imponente que a de sua mãe. Ninguém nunca soube contar se seu casamento com Ludwig fora consumado, mas desde que as gravuras sagradas lhe pousaram a tez, ela nunca mais pode ser tocada, nem pelos animais do circo, bem como pelo esposo, que tinha seu desejo afastado perante tal imagem.

desenho bela e a fera - NAUM 2

Margarete às vezes se deixava conduzir nos braços da Fera, ele fazia isso sem o menor esforço, parecia carregar uma criança, e assim Margarete se sentia acalentada, protegida, embora suspeitasse que Rudolf a desejasse de maneira voluptuosa, pois um dia ele falou enquanto a conduzia:

Tua beleza de gazela, sob o meu corpo é mais

Ele deixou escapar aquelas palavras, mas depois se arrependeu, ao perceber os olhos assustados de Margarete e a rapidez do salto para sair de seus braços. Ele teria completado o que já estava engatado em sua mente, proferindo:

Uma centelha num graveto queima canaviais – e foram justamente nesses versos que a Fera ficou por dias e dias tentando transformá-los em soneto.

No circo, a Fera almoçava rolimãs e mastigava esferas de aço como se fossem batatas para impressionar o respeitável público. Mas sozinho, como apreciava fazer suas refeições, Rudolf saboreava mesmo era a esperada sopa, seu prato do dia-a-dia, e nada mais.

Eram nesses momentos das refeições, certamente uma das poucas ocasiões em que o anão k não estava a ele encostado como se fosse sua sombra, que o Gigante adorava admirar aquelas letras de macarrão boiando na sopa, letras por ele jamais identificadas, símbolos estranhos para sua alma iletrada. Num ritual quase sagrado, vertia goela abaixo o desarrumado alfabeto sem mastigá-lo, na ilusão de que tais letras rumassem seu âmago, por lá assumindo formas de palavras, versos, estrofes, e quem sabe até sonetos. Certa vez o pequenino surgiu sorrateiro por debaixo da mesa enquanto o Titã pensava alto contemplando aquela sopa de letrinhas. O anão k bem que tentou espremer o riso, mas logo estava dobrando-se no chão em gargalhadas, ali defronte o gigante. Rudolf acanhou-se enquanto Kleine Schafe tentava explicar o destino que tais letras de fato teriam. Quando enfim controlou sua crise de riso, o anão arrematou floreando que o resultado daquele macarrão em seu bucho, viria tão logo o gigante obrasse, seria um “poema concreto”. Ambos então puseram-se a secar suas lágrimas; as do anão de alegria, as do gigante de agonia.

Essa crueldade de k, ao jogar ironias incompreensíveis para a Fera, era nada mais que uma vingança secreta por invejar seu tórax de Superman; as mulheres gostavam de adjetivar o peito de Rudolf. Como não bastasse aquela força descomunal, ele possuía também um talento com as palavras; a despeito do anão, que mesmo com todo seu aprendizado, jamais conseguiu fazer um verso sequer.

Mesmo assim, A Fera tinha no anão k um amigo, e gostava da nova vida que lhe surgiu com o convite para atuar no circo. Ele se sentia feliz, apesar do imenso cansaço físico ao final do dia, após as apresentações dando nó em ferros. O problema não era só a fadiga, mas também um esgotamento mental, pois ele sofria durante o repouso. Suas noites eram povoadas por repetidos pesadelos, um seguido do outro, invariavelmente.

Já em sua fantasia diária, avistava a Bela chegando dos céus em forma de fada, portando uma varinha de condão longa e brilhante, e num leve e arrepiante toque em sua testa, transformava-o em cristão, livrando-o de sua descrença, possibilitando-o finalmente ter uma religião. Antes dessa magia ele se considerava ateu; para ele tudo nascia, crescia, morria, e nada mais. Ele também sentia um prazer desmedido ao permitir que a miragem de Margarete transformasse seu corpanzil num de tamanho normal, que agora ela vestia magicamente com indumentárias de príncipe. A Fera jamais teve a intenção de decompor em versos o formoso sonho, por receio de corromper tão elevada cena na engrenagem física das palavras.

O sofrimento não tardava, pois o sonho passava a pesadelo espontaneamente. Ele se via olhando o céu, mirando a lua, cometas e constelações, em busca de inspiração para construir versos à sua amada, Margarete, deitada ali, ao seu lado, numa relva tão verde que brilhava na escuridão. De repente, começava a chover, não água, mas páginas e páginas de jornais, de maneira tão agressiva que em pouco tempo não se via a grama, e sim infinitos tabloides, todos com a idêntica manchete impressa na gazeta: “Sangue no Circo!”. Eles traziam a notícia de que ele violara a Bela, e depois se matara num dantesco espetáculo de profusão do líquido vermelho.

Acordava suado, coração saindo pela boca. Jamais ousou contar o sonho e muito menos o pesadelo ao amigo k. Depois de algum tempo, enfim ele se desvencilhou desse ciclo involuntário, no acontecimento que mudou sua vida.

Rain on the way Zippos Circus, John Stillman
Rain on the way Zippos Circus, John Stillman

Era um dia chuvoso, o céu parecia desabar em água, e ele teve sua tenda destruída pela tempestade, saiu correndo em direção ao primeiro abrigo que encontrou, coincidentemente era o local de Margarete, que naquele momento estava sozinha, pois Ludwig viajara há alguns dias em busca de mais atrações para o circo.

A Fera sabia de sua descomunal força, e mesmo assim, todo ensopado, bateu suavemente na porta. Margarete surgiu por detrás de uma fresta, olhos atentos, e disse que era melhor ele procurar outro lugar, recebendo como resposta um inesperado apelo poético.

Recebe o teu poeta, oh bela! Abre teu coração!

O sorriso bem como o riso lhe saltaram a face, ali se percebia um misto de nervosismo e galhofa.

– Nem devo abrir a porta, e muito menos o coração – foi o que ela conseguiu dizer após parar de rir. Ele insistia para que ela abrisse a porta e o coração, mas sabia de antemão que isso jamais iria ocorrer. Nem porta, muito menos coração.

Havia ali uma cumplicidade implícita, como se os dois estivessem numa brincadeira de criança, tentando se divertir em meio à chuva, as palavras serviam como apostas, não era para levar a sério tudo aquilo.

De repente, a Fera viu ao lado da porta uma janela, e nesse momento sentiu-se um poeta iluminado pelo aviso daquele símbolo, conseguiu estruturar versos instigantes e figurativos e que jamais seriam esquecidos. Ele então se preparou para soltá-los com toda a força do peito, em entonação alta e melódica, mas aguardou que se aproximassem os companheiros de circo, que já caminhavam rumo àquela inusitada cena.

Recebe o teu poeta, oh bela
Abre teu coração
Abre teu coração
Ou eu arrombo a janela

Até hoje não se sabe se o estrondo que veio em seguida foi um trovão ao longe pelo aumento da tempestade, ou se eram aplausos efusivos dos que presenciaram a Fera libertar seu coração de poeta.

O certo é que, finda a tempestade, o Grande Circo Místico passou a contar com a mais nova atração a levar multidões incrédulas a suspirar diante do homem mais forte do planeta declamando versos inacreditavelmente perfeitos à bela Margarete.

Ludwig observava tudo do alto do picadeiro, e o pequeno incômodo que sentia ao ver sua mulher coberta por um lirismo alheio, era compensado pelo fato de saber, com orgulho, que Margarete se transformara na musa daquele circo. Impossível não se comover com a Bela e a Fera numa harmonia de contrários.

A Bela, com seu encanto, enfim conseguiu transformar a Fera num príncipe, cuja realeza era a poesia.

Maurício Tillet, lutador que tinha uma doença chamada acromegalia, conhecida por gigantismo. Faleceu em 1954. A foto é de Irving Penn.
Maurício Tillet, lutador que tinha uma doença chamada acromegalia, conhecida por gigantismo. Faleceu em 1954. A foto é de Irving Penn.

Para além do picadeiro:

Eu ainda desconfio de como tudo se deu. O fato é que, uma concha que não foi ferida, não produz pérolas. Como o grão de areia, Chico Buarque penetrou o poema trazendo-nos uma majestosa joia. Não diferente disso, a Bela foi violada por um homem gêmeo de uma fera, concebendo não uma, mas duas pérolas douradas perfeitas, que chamou de Marie e Helene. O brilho delas é algo tão raro e precioso que se afugenta bem dentro da visão de Deus.

Talvez não fosse Rudolf um ateu, mas um pagão. Feito um curioso que cai de joelhos ao adentrar a “Santa Igreja”, teria a Fera renascido em fé, após penetrar a imagem sagrada no corpo de Margarete? Dúvida que paira dignamente soberana. Reza a lenda que diante a via-sacra, feras terríveis como o tigre e o leão, declinaram ao desafio de seguir os passos do Senhor. Mas eis que a pior de todas as feras sucumbiu ao instinto, e chegando ao cume daquela via, avistando a cruz, tornou-se um homem.

A Bela e a Fera

Edu Lobo/Chico Buarque/1982

Ouve a declaração, oh bela
De um sonhador titã
Um que dá nó em paralela
E almoça rolimã
O homem mais forte do planeta
Tórax de Superman
Tórax de Superman
E coração de poeta

Não brilharia a estrela, oh bela
Sem noite por detrás
Tua beleza de gazela
Sob o meu corpo é mais
Uma centelha num graveto
Queima canaviais
Queima canaviais
Quase que eu fiz um soneto

Mais que na lua ou no cometa
Ou na constelação
O sangue impresso na gazeta
Tem mais inspiração
No bucho do analfabeto
Letras de macarrão
Letras de macarrão
Fazem poema concreto

Oh bela, gera a primavera
Aciona o teu condão
Oh bela, faz da besta fera
Um príncipe cristão
Recebe o teu poeta, oh bela
Abre teu coração
Abre teu coração
Ou eu arrombo a janela

 

A MOÇA DO SONHO

Sonhos…
Ao sonharmos dormindo transportamos nosso mundo, coisas e pessoas
àquele estranho e, quase sempre, inefável universo.
Transportamo-nos?
Voltamos e tentamos nos lembrar de nossa estada no espaço,
nem sempre noturno.
Transportam-nos?
Ao sonharmos, agora acordados,
acreditamos ser os donos dos sonhos dormidos,
duvidando que eles sejam mais lúcidos que nossa ilusão nefasta.
Sequer refletimos, mas pretendemos – em clássica ufania humana –
ter o controle daquele delírio, porque encaramos o sonho vendado
como o arregalado: meu!
Criações da (nossa) mente. Sim ou não? Talvez.
Ele, justo ele (e por que não ele?), ousou por ora acreditar nisso…

Aquele homem, ao sonhar, avistou uma moça contra a luz; ele só conseguia desvendar sob tal efeito a silhueta contornada por uma auréola luminosa e difusa. Diante do súbito encantamento, a deixá-lo numa espécie de bruma ofuscante, arriscou perguntar: “Quem és?”. Ela, nele, encontrava a luz que a alumiava.

Ele se arriscou, sem contar que o risco era do sonho e também daquela moça que o habitava. O homem que se arrisca tem coragem, mas também o medo: fraquejou a sua voz. A brusca interrogação pontuando sua curiosidade era de quem consumia tudo que naquele sonho se criava. Ele insistiu esperançoso, pegando as mãos da moça, ansioso como quem desata um nó. Ela não o respondera, e ele não ousou repetir a indagação. Mas a sua fé foi mais além, e sentindo-se a própria divindade a criar aquele universo do sonho e todo ser vivente nele, soprou o rosto da moça, imaginando que com o sopro a criatura não só ganharia vida, como o identificaria como seu criador.

Ele não a aceitava somente ali, deveria ser uma moça real com quem estivesse sonhando; ele despertaria daquele sono e diria ao encontrá-la: “Moça, hoje eu sonhei contigo!”. Mas nada disso acontecera. Esse homem de fato não pensou, e ao desferir-lhe o vento, depois da luz e da palavra, o rosto da moça se desfez em pó. E assim foi com ela, igual a toda criatura concebida por um deus, que vem do pó e ao pó retorna. Só que o inadvertido gesto do homem teve o efeito inverso ao da vida, pois dissipou o rosto dela, concedendo a ele a dor do pesar. Ele ainda não compreendera que ela pertencia àquele ambiente onírico; o sonho era seu casarão, aonde ele adentrara não se sabe se como intruso ou convidado.

Aquele homem já havia sonhado muitas outras vezes e com tantas outras pessoas, entre elas belas mulheres, mas agora não se tratava de uma moça qualquer em um sonho. Certa moça incógnita surgira solitária em um de seus sonhos, fazendo com que aquele deserto deixasse de ser um sonho qualquer; era ela A Moça do Sonho.

La Rêve : “O Sonho” – Pablo Picasso – 1932.
La Rêve : “O Sonho” – Pablo Picasso – 1932.

Ele acordou e suspirou, lembrando-se daquela cena; desejando no mínimo se tratar seu sonho de um presságio,  talvez um déjà vu, quem sabe uma premonição ou espécie de mediunidade pendente no ar. Queria ser bem mais que o criador daquela habitante do sonho, e tentava materializá-la. Perambulou por aí, atravessando galerias como se transpusesse portais. Creio que esse homem, como todos os seres humanos viventes, desejava apenas encontrar a pessoa por ele idealizada. Ele então já se dava conta que não sonhara com a moça de seus sonhos. Não. Ele teve seu coração arrebatado por uma moça desconhecida e quem sabe até imperfeita, mas ele não soube sequer o seu nome. E em seu choro de lamento, restou-lhe a esperança num canto inconformado… “Há de haver algum lugar / Um confuso casarão / Onde os sonhos serão reais / E a vida não”. Ele não queria mais a vida onde não a encontrasse, ansiava apenas imprimir realidade aos devaneios. Cantava triste e docemente… “Por ali reinaria meu bem / Com seus risos, seus ais, sua tez”. Conjecturando a realidade de quimera, ele buscava o motivo pelo qual sonhara com aquela moça, e lhe veio a ideia de que, quem sabe por lá, deitada a noite em sua cama, ela também não sonhasse com ele.

Ele ficou ali consigo, com aquilo pairando sobre a sua cabeça abissal, receando ser um lunático perdidamente apaixonado por uma miragem. E foi justamente sofismando que aquela moça também sonhara com ele naquela terra do nunca, que se lembrou de Jorge Luis Borges ao falar do sonho recíproco da Alice, de Lewis Carroll.

Ilustração de John Tenniel para o livro “Alice através do espelho” (1871), de Lewis Carroll.
Ilustração de John Tenniel para o livro
“Alice através do espelho” (1871),
de Lewis Carroll.

Aquele homem jeitoso, ainda um sonhador, exalava ares travessos e em sua adolescência, entre leituras e aventuras, descobriu o escritor argentino. A menina do país das maravilhas sempre o cativou, e só agora ele se dava conta de como ganhava sentido a passagem escrita por Borges, que ele sabia de cor e salteado: “Alice sonha com o Rei Vermelho, que a está sonhando, e alguém lhe avisa que, se o Rei acordar, ela irá apagar-se como uma vela, porque não passa de um sonho do Rei que ela está sonhando”. Naqueles tempos idos ele sempre repetia esse trecho em frente ao espelho, brindando à inquieta, sonhadora e também solitária personagem de Carroll.

Ilustração de John Tenniel para o livro “Alice através do espelho” (1871), de Lewis Carroll
Ilustração de John Tenniel para o livro
“Alice através do espelho” (1871),
de Lewis Carroll

Foi assim, rememorando o tempo da delicadeza, que ele se sentiu o próprio Rei Vermelho sonhando com Alice que o está sonhando. E bem como tal, não poderia ele ter despertado de seu sono, o que colocaria um fim à vida da moça. Vida esta que ele sentia de fato ter lhe entregado, agora não mais como um deus, mas como um rei. O homem passou a suspeitar que a luz, contra a moça que o encantara, era a mesma luz que ela encontrara nele. Seus olhos que por aqui se fechavam, lá se abriam dando a luz àquela mulher. Então enquanto ele se encanta com a imagem dela em contraluz, a moça encontra a luz naquele homem? Sim, ele a pariu pelos olhos, por ambos! Ela era a vela de seu sonho que ele acendera com a centelha do seu olhar, tal como Alice no sonho do Rei. O deus que passou a ser rei era agora um homem, que não a possuía. Mesmo admitindo a si que a qualquer momento a vela seria inevitavelmente apagada pelo despertar, ele não concedeu-se nenhum alívio. Tivesse guardado o sopro em sua boca capaz do beijo, permaneceria com ela por mais tempo.

Ainda iludido, antevendo a sina de que o tempo se confundia entre o que se deu de fato no sonho e o que viria a ocorrer com a chegada da aurora que desperta os sonhadores, ele seguiu adiante em sua vida, convicto de que em mais alguns dias esqueceria esse devaneio noturno. Ele caia em si à medida que se perdia entre idas e vindas de casas, incluindo a sua, sempre com a fixação de que haveria de encontrar novamente a moça, se não por aqui, ao menos noutro sonho. Ele agora era capaz de inventar qualquer mundo por aquela moça, bastou tê-la um dia sonhado. Ele se sentia um tanto fraco, mas também tão forte que podia juntar o suco dos sonhos, ao ponto de encher um açude, desde que fosse por ela!

Certa tarde, quando acabara de chegar a esmo, com os olhos marejados, este homem correu para a estante em busca do livro “A Vida é Sonho”, de Calderón de La Barca, poeta e dramaturgo espanhol do século XVII. Ele sabia que aquele livro continha o trecho da Cena XIX do final da Segunda Jornada da comédia, quando o personagem Segismundo pronuncia a marcante sentença, até hoje repetida por muitos literatos: “Que é a vida? Um frenesi. / Que é a vida? Uma ilusão, / uma sombra, uma ficção; / o maior bem é tristonho, / porque toda vida é sonho, / e os sonhos, sonhos são”.

Seus olhares já não encontravam mais nada que buscavam, nem as letras. Arregalados de tanto tentar enxergar o rosto da tal moça por aqui, os olhos daquele homem agora colhiam o sono exauridos, enquanto seus ouvidos alcançavam alguém cantarolando distante. Ele adormeceu ali mesmo junto a seus inseparáveis livros. Do outro lado, era ela! Ao abrir seus olhos para iluminar quem cantava naquele bendito lugar, a moça estava de costas para ele e, instintivamente, o impaciente homem quis, mais uma vez, saber quem ela era.

Ela o ignorou e pôs-se a levitar em seu sentido oposto. O homem não se conteve e tentou impedi-la de ir embora, segurando-a pelo vestido. Naquele momento, enquanto a moça se virou para ver o que a impedia, a singela cantiga que em seus lábios brincavam deram lugar a um gemido. Ele ficou olhando para aquela expressão de agonia em sua face, com um pedaço do vestido dela em sua mão. No seu rosto, a feição já não era mais daquela moça por quem ele se apaixonara, como num casamento castigado, que vai da lua de mel à separação. Ele se frustrou e, depois, sentindo-se viúvo, cantou: “Por encanto voltou / Cantando a meia voz / Súbito perguntei : quem és? / Mas oscilou a luz / Fugia devagar de mim / E quando a segurei, gemeu / O seu vestido se partiu / E o rosto já não era o seu”.

Quando despertou, todo desarranjado entre livros e dores, a luz estava acesa, e quem cantarolava evanescera. Acabou por achar o exemplar que tanto procurava quando pegara no sono. Ao folhear a edição argentina, aquele homem surpreendeu-se com seu próprio grifo a lápis, que destacava o trecho com o prólogo feito por Silvina Beatriz Marsimian: “Borges diz que à noite somos todos dramaturgos. Com efeito, a alma humana, quando sonha, desvinculada do corpo, é ao mesmo tempo o teatro, os atores, o público e também o autor da história. No sonho como um gênero literário, cujo roteirista é o homem, agruparia os sonhos inventados pelo sonho e os sonhos inventados pela vigília: sonho e vida são, para Borges, duas formas de fazer literatura”. No final do prólogo de Silvina Beatriz Marsimian havia mais um trecho grifado, só que este de um traço mais fino; intrigado, ele não o reconhecia como sendo seu… “Todos sonhamos: cada um sonha seu sonho e talvez seja sonhado por outro sonhador por sua vez sonhado”.

Sim, aquilo o alimentava e remetia a algo valioso que aprendera com Fernando Pessoa, num poema de 1913 cujo início era assim: “Eu não sei o que sou. / Não sei se sou o sonho / Que alguém do outro mundo esteja tendo…”. Ele vendou seus olhos curiosos e encontrou ali no breu da visão, alguma coisa que muito o confortava; era a afirmação ousada e marcante feita por Shakespeare, muitos séculos antes, na peça A Tempestade, de 1610, quando Próspero arrematou na Cena I do Ato IV: “Somos feitos da mesma matéria dos sonhos”.

Ele ficou ali silencioso, com os olhos inquietos por sobre as páginas, e o pensamento suspenso por entre os sonhos. Agora o homem compreendia que ali ele estava também vivendo, pois a vida é sonho, e somos todos feitos de sonhos, enquanto outros sonham o que somos. Tivesse aquele homem se lembrado de suas leituras quando encontrou a Moça do Sonho, atingiria ele a exata percepção de tudo? Não. Essa reflexão de tais trechos já lidos e relidos só ocorrera após essa magia de seus últimos sonhos, dando-lhe a sensação de que um bom livro nunca se acaba. Carroll, Calderón, Pessoa, Shakespeare e sabe-se lá quantos outros mestres, a ensinar: aqui é o lugar de aprender; e lá, o de viver. Mas se ele antevisse tudo, talvez não tivesse dissolvido seu sonho sólido, remexendo-o dentro de sua caneca cheia de curiosidades fluidas. Esse homem queria doravante viver seu sonho, e não mais sonhar a vida.

Ele lembrou-se das aulas de ciências, com explicações racionais do mundo que o deixavam pouco a vontade. Com ar sisudo, seu então professor o enfadava repetindo a lição preferida, sacada do químico francês Lavoisier: “na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma!”. Ele conteve seu riso nervoso, acreditando agora não serem os sonhos criados e muito menos perdidos. Ele sofismou que os sonhos já pairados ficassem vagando numa paragem, como as coisas de segunda mão, estocadas num bazar. Ficaria tudo ali, na esperança de que ainda cativasse alguém, a espera de quem fosse resgatá-los. Outrora a palavra “bazar”, de origem persa, significava “rua de lojas”. Entretanto, ele jamais recordaria em sua assoberbada memória, que em algum lugar do passado lera que “bazar” pode ser também um verbo; escapulir, evadir, era o seu significado. Então era um sonho sonhado, guardado, à deriva, fugido ou talvez subtraído, que ele não conseguia visitar nem avistar em estantes organizadas como num sebo. Ora, se na vida real tempo e espaço são relativos, que dirá nos sonhos!?

The Broken Bridge and the Dream : “A Ponte Quebrada e o Sonho” - Salvador Dalí – 1945
The Broken Bridge and the Dream : “A Ponte Quebrada e o Sonho” – Salvador Dalí – 1945

Esse homem tinha tamanha fé, mas não a conhecia. Sabendo que escadas são estruturas adequadas para alçar ou pender nossos passos até aquilo que desejamos alcançar, assegurando-nos de um espaço a ser ocupado, ele tentou usá-las para recuperar seu sonho evadido. Aquele homem dava-se conta de que no mundo fantástico do presumido bazar, ao tentar usar as escadas, elas lhes fugiam dos pés, já que ele estaria levitando, solto no espaço. Esse homem se via correndo em vão atrás dos lépidos degraus, enquanto eles sempre escapuliam, tal como os sonhos. Enquanto a palavra “escada” se repetia em sua mente, ele cogitou ser a sua história com a moça mais uma quimera, esmorecendo sua crença. Numa vertigem confiou tê-la ouvido dizer que ia partir, mas que voltaria de novo a qualquer hora subindo uma escada até o seu lugar, que ele acreditava ser o seu sonho. Ela repetia sonora e veementemente aquela palavra como num mantra. O homem hesitou que não fosse usando atalhos por degraus místicos, a pendê-lo ou içá-lo, que ele encontraria a moça arrebanhada num possível espaço.

De posse da própria natureza humana, aquele homem acreditava ter enquadrado o etéreo tempo no restrito espaço de um relógio, com seus ponteiros a marchar numa só direção, à direita. Ele se viu tão vulnerável; o advento de seu sonho desmontara a lógica burlesca de um compasso único cronológico. Tudo que ele desejava era que os relógios rodassem pra trás o devolvendo ao sonho. Ele agora vivia a buscá-la, correndo contra o tempo e descartando os dias em que não a viu, não se sabe se na imaginação ou na lembrança do sonho. Inutilmente, ele rodava as horas pra trás acreditando tirar alguma vantagem do tempo, e sentia-se mais perto do seu sonho extraviado. O homem duvidou que não fosse se valendo de fendas em seus relógios mágicos, a adiá-lo ou recuá-lo, que ele descobriria a moça submergida num provável tempo.

La persistance de la mémoire : “A persistência da memória” - Salvador Dalí – 1931.
La persistance de la mémoire : “A persistência da memória” – Salvador Dalí – 1931.

Enfim, ele ponderava, que mesmo que a mulher com quem ele sonhou pela segunda vez o tenha confundido, ele ainda teria sempre consigo bem guardados o silêncio e o que ele arriscou ser o riso daquela primeira moça. Mesmo em sonho, ele esteve atento, a fim de lembrar-se sempre dela. Sempre. Ele largou-se dos livros, dirigiu-se até o vão de seu cômodo, abriu a janela respirando profundamente o sereno da adiantada noite. Olhando o firmamento, ele namorava as estrelas que já se foram noite afora para sempre, temendo ser a Moça do Sonho uma delas. O homem então cantou ao léu, como quem arrumasse em versos tudo com o que ele agora sonhava acordado: “Um lugar deve existir / Uma espécie de bazar / Onde os sonhos extraviados / Vão parar / Entre escadas que fogem dos pés / E relógios que rodam pra trás / Se eu pudesse encontrar meu amor / Não voltava / Jamais”.

Ele passara o pequeno restante daquela noite em claro. E desde o amanhecer, aquele homem nunca mais sonhou.

 

A Moça do Sonho

Edu Lobo/Chico Buarque/2001

Súbito me encantou
A moça em contraluz
Arrisquei perguntar: quem és?
Mas fraquejou a voz
Sem jeito eu lhe pegava as mãos
Como quem desatasse um nó
Soprei seu rosto sem pensar
E o rosto se desfez em pó

Há de haver algum lugar
Um confuso casarão
Onde os sonhos serão reais
E a vida não
Por ali reinaria meu bem
Com seus risos, seus ais, sua tez
E uma cama onde à noite
Sonhasse comigo
Talvez

Por encanto voltou
Cantando a meia voz
Súbito perguntei: quem és?
Mas oscilou a luz
Fugia devagar de mim
E quando a segurei, gemeu
O seu vestido se partiu
E o rosto já não era o seu

Um lugar deve existir
Uma espécie de bazar
Onde os sonhos extraviados
Vão parar
Entre escadas que fogem dos pés
E relógios que rodam pra trás
Se eu pudesse encontrar meu amor
Não voltava
Jamais

LEITURA FINAL, APÓS O DESPERTAR:

“A Moça do Sonho” é uma composição com música de Edu Lobo e letra de Chico Buarque, feita para o musical “Cambaio”, de Adriana e João Falcão, em 2001.

Gravada originalmente por Edu Lobo no CD homônimo da peça, a cantiga nos traz a sensação incrível de que ele transporta uma moça encantadora para dentro daquele sonho. E ao acordar nos conta, então, a belíssima história.

Alguns anos depois, essa moça, com ares de bela adormecida, desperta na voz de Chico Buarque. Só que agora é ele quem se transporta até o sonho, lugar onde ela está, espelhando-a magicamente no CD “Caravanas”, de 2017.

Nós, já envolvidos naquela aura enigmática na qual Edu nos colocara em “Cambaio”, fomos divinamente surpreendidos com o aromático sopro da nova interpretação. Um Chico Buarque arteiro que, ao puxar nosso tapete, nos arremessa gentilmente em nuvens de algodão.

Ao gravar essa pérola, Chico recupera a sequência das estrofes mirando atribuir mais dramaticidade à narrativa do sonho, pois na gravação em “Cambaio” a segunda e a terceira estrofes foram alternadas entre si. Em sua incrível generosidade como cantor, Chico se doa à música, nos confiando àquela moça do sonho, com o efeito de quem, mesmo acordado, permanece sonhando.

 

A HISTÓRIA DE LILY BRAUN

AS MUITAS HISTÓRIAS DE LILY BRAUN

Adentrarão este texto somente os leitores curiosos, e permanecerão apenas aqueles que assim forem se descobrindo ser. Ao leitor menos abelhudo, rogo alguma paciência. Eis aqui um dos mágicos portais de entrada ao Místico daquele Circo de fato Grande, bem maior que no tamanho.

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Desenho de Naum Alves de Souza

Jorge de Lima publicou em 1938 o poema “O Grande Circo Místico”, sobre a dinastia da família Knieps, com artistas que atravessaram gerações a encantar a imprensa e o público, graças a seus poderes e habilidades.

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Jorge de Lima, poeta, romancista, biógrafo,ensaísta, tradutor, político e médico. (União dos Palmares, Alagoas, 23/4/1893- Rio de Janeiro, 15/11/1953)

Nos anos 1980, um espetáculo do Ballet Guaíra, de Curitiba, pensado a partir desse poema, foi musicado por Edu Lobo e Chico Buarque.

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Propaganda do Ballet Guaíra na temporada em São Paulo (1983)

Em seguida, Naum Alves de Souza escreveu a peça teatral de grande sucesso. Daí surgiu o disco “O Grande Circo Místico”, até hoje considerado um dos trabalhos mais marcantes de nossa música.

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Naum Alves de Souza, artista plástico, cenógrafo, figurinista e diretor.(Pirajuí, São Paulo, 1º/6/1942 – São Paulo, 9/4/2016)

O poema curto e denso de Jorge de Lima representa um marco na poesia brasileira; com única estrofe de 45 versos foi considerado muito avançado para a época. Todavia, para mim, uma das coisas mais espantosas na obra poética, é o fato de sua publicação ter ocorrido em 1938, um ano antes de eclodir a segunda guerra mundial. Observem que o Poeta mostra uma sociedade que já não se encanta mais com o improvável, o sobrenatural, um circo que possuía, além dos dons artísticos apurados, pessoas com poderes imateriais elevados. Ele diz que a imprensa (que exercia na época a mesma força das atuais redes sociais) passou a desdenhar as coisas extraordinárias do Circo, numa espécie de caixa de ressonância da indiferença da opinião pública quanto ao belo. Essa é, na minha visão, uma impressionante alegoria do cenário que se avizinhava no mundo, o da implantação dos terrores do nazismo, em sua tentativa de uniformizar o pensamento.

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O circo é plural, seus integrantes são diferenciados, cada um à sua maneira, e é aí onde reside a beleza do humano. Mas isso não chama mais a atenção daquela sociedade de 1938, que se mostrava apática, em busca de outros mitos. Eis o perigo.

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E por falar em passado, presente e futuro, dentre as personagens do poema de Jorge de Lima, uma particularmente desperta o olhar de Chico Buarque, a Lily Braun; e mesmo sendo figura aparentemente secundária, foi merecedora de uma música estonteante, feita em parceria com Edu Lobo (A História de Lily Braun). O Poeta Jorge de Lima atribuiu a Lily Braun uma característica muito especial, a de “deslocadora”: a mulher que consegue viajar no tempo, projetar-se no futuro, bem como devolver-se ao passado. Foi quando me veio à mente: E se, na verdade, a Lily estava a cantar, não o que ela viveu, e sim o que ela haveria de viver no futuro?

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Desenho de Lily Braun, de Naum Alves de Souza, feito para o Grande Circo Místico

Surge daí o meu conto, “O Destino de Lily Braun”, inspirado na inspiração de Chico sobre a inspiração de Jorge sobre Amalie; onde a arte não imita a vida, mas a interpreta e recria. Não bastasse ser Amalie Von Kretschmann tão a frente de seu tempo, viajou 22 anos póstumos para ser definitivamente rebatizada e, claro, se apresentar ao palco do Grande Circo Místico! Posteriormente viajaria mais 45 anos até os olhos cor de ardósia, a ilustrar sua apresentação naquele circo. Teria Chico explicado em sua letra porque Lily se casara pela terceira vez, adotando novamente, a contragosto, o título de esposa?

Venha comigo conhecer Lily, a deslocadora.

lily
Amalie von Kretschmann escritora feminista alemã (Halberstadt, 2/7/1865 – Berlim, 12/8/1916)
“Neste crucial momento”, faço ao leitor a sugestão desse roteiro:

 

– Conheça Amalie Von Kretschmann.

– Leia o poema de Jorge de Lima.

– Ouça a magnífica música “A História de Lily Braun”, de Edu e Chico (observe os detalhes poéticos sobre o ambiente, o clima entre Lily e seu admirador, a angústia da dançarina, a forma como Lily conta sua história, numa cadência musical que oscila entre a batida de jazz como se fosse o próprio coração da dançarina e o êxtase por saber seu destino).

– Por fim, leia meu conto, “O Destino de Lily Braun”, aonde a deslocadora viaja agora mais 35 anos no tempo chegando a 2018: um outro sopro em direção à rica figura histórica Amalie e a personagem Lily.

Aproveito aqui as informações sobre Amalie – que adotou em vida o codinome de Lily Braun não por acaso – fazendo alusão à personagem criada pelo poeta Jorge de Lima e a construção feita por Chico em sua letra. Utilizo o recurso literário do diálogo e da narrativa para criar uma versão na qual Lily não conta seu passado, mas mira o futuro de uma maneira como se tudo já tivesse ocorrido. É a deslocadora, senhora do tempo, que nos faz questionar sua descontinuidade, bem com viajar na incrível dimensão de uma soma entre passado, presente e futuro.

Ao término de tudo, reflitamos. Sempre que em determinada época uma sociedade mostra certa apatia ao que deveria chamar a atenção – tal como a imprensa, que já não se ocupava em dar notícias do Circo Knieps – corre-se o risco de não perceber a tirania prestes a esticar seus terríveis e desavergonhados braços.

Desejo um ótimo passeio lírico a todos, como tem sido o meu…

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Edu Lobo e Chico Buarque, durante a gravação de O Grande Circo Místico, 1983 (foto do encarte do CD)

AMALIE:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Lily_Braun

O POEMA:

O Grande Circo Místico

Jorge de Lima

O médico de câmara da imperatriz Teresa – Frederico Knieps –

resolveu que seu filho também fosse médico,

mas o rapaz fazendo relações com a equilibrista Agnes,

com ela se casou, fundando a dinastia de circo Knieps

de que tanto se tem ocupado a imprensa.

Charlote, filha de Frederico, se casou com o clown,

de que nasceram Marie e Oto.

E Oto se casou com Lily Braun a grande deslocadora

que tinha no ventre um santo tatuado.

A filha de Lily Braun – a tatuada no ventre

quis entrar para um convento,

mas Oto Frederico Knieps não atendeu,

e Margarete continuou a dinastia do circo

de que tanto se tem ocupado a imprensa.

Então, Margarete tatuou o corpo

sofrendo muito por amor de Deus,

pois gravou em sua pele rósea

a Via-Sacra do Senhor dos Passos.

E nenhum tigre a ofendeu jamais;

e o leão Nero que já havia comido dois ventríloquos,

quando ela entrava nua pela jaula adentro,

chorava como um recém-nascido.

Seu esposo – o trapezista Ludwig – nunca mais a pôde amar,

pois as gravuras sagradas afastavam

a pele dela o desejo dele.

Então, o boxeur Rudolf que era ateu

e era homem fera derrubou Margarete e a violou.

Quando acabou, o ateu se converteu, morreu.

Margarete pariu duas meninas que são o prodígio do Grande Circo Knieps.

Mas o maior milagre são as suas virgindades

em que os banqueiros e os homens de monóculo têm esbarrado;

são as suas levitações que a platéia pensa ser truque;

é a sua pureza em que ninguém acredita;

são as suas mágicas que os simples dizem que há o diabo;

mas as crianças crêem nelas, são seus fiéis, seus amigos, seus devotos.

Marie e Helene se apresentam nuas,

dançam no arame e deslocam de tal forma os membros

que parece que os membros não são delas.

A platéia bisa coxas, bisa seios, bisa sovacos.

Marie e Helene se repartem todas,

se distribuem pelos homens cínicos,

mas ninguém vê as almas que elas conservam puras.

E quando atiram os membros para a visão dos homens,

atiram a alma para a visão de Deus.

Com a verdadeira história do grande circo Knieps

muito pouco se tem ocupado a imprensa.

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Capa do livro A Túnica Inconsútil, no qual está o poema “O Grande Circo Místico”

A MÚSICA:

A LETRA DA MÚSICA:

 A História de Lily Braun

Edu Lobo/Chico Buarque/1982

Como num romance
O homem dos meus sonhos
Me apareceu no dancing
Era mais um
Só que num relance
Os seus olhos me chuparam
Feito um zoom

Ele me comia
Com aqueles olhos
De comer fotografia
Eu disse cheese
E de close em close
Fui perdendo a pose
E até sorri, feliz

E voltou
Me ofereceu um drinque
Me chamou de anjo azul
Minha visão
Foi desde então ficando flou

Como no cinema
Me mandava às vezes
Uma rosa e um poema
Foco de luz
Eu, feito uma gema
Me desmilinguindo toda
Ao som do blues

Abusou do scotch
Disse que meu corpo
Era só dele aquela noite
Eu disse please
Xale no decote
Disparei com as faces
Rubras e febris

E voltou
No derradeiro show
Com dez poemas e um buquê
Eu disse adeus
Já vou com os meus
Numa turnê

Como amar esposa
Disse ele que agora
Só me amava como esposa
Não como star
Me amassou as fotos
Me queimou as fotos
Me beijou no altar

Nunca mais romance
Nunca mais cinema
Nunca mais drinque no dancing
Nunca mais cheese
Nunca uma espelunca
Uma rosa nunca
Nunca mais feliz

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MEU TEXTO:

O DESTINO DE LILY BRAUN

Lily Braun murmura para si mesma – “nunca, nunca mais…” –, e seu olhar mirando o infinito sequer traz lágrima ou brilho. “Nunca, nunca mais…”. As dançarinas não entendem Lily. Nem parece aquela estrela que, de tão luminosa em noite de véspera, ofuscava as luzes do pequeno e improvisado palco, no trailer situado a certa distância do Circo Knieps, mas dele fazendo parte. Nem tão apegado está o trailer das bailarinas, evitando o repúdio das famílias que se dirigem ao espetáculo circense; e nem tão afastado, para correr o risco de após a apresentação dos artistas no Circo, os solitários homens até lá se moverem em romaria.

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“Circo de Beira de Estrada” Nanquim de André Mangabeira

O dia amanhece pintando o céu com a triste palheta da aurora, é o momento mais silencioso para as dançadoras que atravessaram a barulhenta madrugada expondo seus talentos. Sim, é uma característica das esfuziantes mulheres a de transformar o espaço em ambiente musical, com suas cantorias acompanhadas da esforçada e minúscula banda. O contrabaixo quase a tocar o teto com seu inadequado tamanho, um resistente piano, e um trompete meio amassado, mas de som tão límpido que as dançarinas juram ter notado por vezes discretas lágrimas nos homens mais rentes ao palco.

A companheira de quarto mais próxima de Lily pega sua mão e busca entender aquele sussurro, “nunca, nunca mais…”.

– O que você está sentindo agora?

Lily move repetida e rapidamente a cabeça num sinal negativo, sua voz parece travada na garganta.

– Isso não me diz muito, Lily. Pois cante, querida, cante como só você sabe!

Os olhos de Lily são invadidos pelo mesmo brilho dominante no palco, e ela se dá conta de que é possível contar seu drama naquele momento, valendo-se do blues instrumental que a pequena banda arrematava entre o intervalo de uma apresentação dançante e outra. Era um quase-jazz contagiante, jamais recebera uma letra, e agora Lily se arriscaria a adorná-lo com sua história.

– Como num romance, o homem dos meus sonhos me apareceu no dancing. Era mais um…

A amiga procura conter o riso, só mesmo Lily para chamar aquela espelunca de dancing, mas ela era assim mesmo, usava palavras estrangeiras no meio das frases, porque dizia ter viajado o mundo. Sabia inglês e francês, e embora todas duvidassem disso pelas improváveis circunstâncias, era evidente sua formação erudita. A amiga conteve seu ímpeto de riso, afinal, ninguém ali falava “me apareceu”, só mesmo a Lily com sua arrojada, mas sempre sofisticada delicadeza.

– Só que num relance, os seus olhos me chuparam feito um zoom…

E Lily começou a debulhar musicalmente tudo que ela predestinara com o olhar do homem que a “comia com aqueles olhos de comer fotografia”. Ela simplesmente anteviu o que aconteceria a partir do primeiro encontro, já sabia o meio e o fim de toda a história, e isso não espantava a todos. Muitos ali sabiam que Lily era conhecida como “a deslocadora”, por conseguir viajar no tempo; e quem ainda tinha dúvidas ficava com um pé-atrás pela forma como ela chegara ao circo Knieps. Afinal, Lily tornara o circo místico ou o escolhera por já sê-lo? O fecho da história era muito triste. Ela deixaria o palco e se transformaria em esposa: sua eterna sina. E nunca mais seria feliz depois disso.

– Ora, fuja dele! – gritou a amiga – só viu esse homem uma única vez!

– Ele retornará hoje. – disse Lily. E foi a primeira vez que ela falou, sem cantar, de modo muito grave.

– Pois não vá! Fique doente, finja assim estar. Não vá e pronto.

A amiga não entendia que Lily e seu dom de deslocadora a tornava uma trapezista em constante salto no futuro, sem rede de proteção. O que ela viu passar diante de seus olhos aconteceria mesmo contra sua vontade.

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Trapezista (2008): Fernando Botero

A deslocadora não contava a ninguém, mas sempre se sentia deslocada, não por conseguir projetar-se ao que está por vir, mas por sentir vir de muito, muito longe. Talvez ela fosse tratada apenas como uma estrangeira. Seu nome trazia ares de codinome, já seu misterioso sobrenome alemão Braun, tinha o mesmo significado que no inglês brown; dizia-se da tez um tanto quanto parda, de aspecto bronzeado.

Como num lampejo, sempre lhe despertava na memória o brasão da família Braun. Era uma pintura já desgastada que ornava a parede da morada de onde ela acredita ter vindo. Lily às vezes sonhava com aquele lugar, e ficava intrigada, mas não tanto quanto seus amigos do circo com quem dividia seus sonhos. Eles acreditavam que Lily havia perdido a memória, já que quando por lá chegou o que sabia dizer sobre si era tão somente o nome. A deslocadora não acreditava piamente estar desmemoriada, mas também não duvidava. Em um de seus lampejos contou histórias sobre seus ancestrais, os Mossmann, vindos da Normandia. Os artistas do circo não duvidaram, mas também não acreditaram.

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Brasão da família Braun

Certa vez, conversando com outras bailarinas sobre seu nome, Lily afirmou significar flor-de-lis em inglês. Disse ser tal flor também conhecida por íris germânica, o símbolo de força e formosura. Depois completou afirmando conter no escudo dos Braun a figura do leão a segurar com a pata uma flor-de-lis dourada. Ela não compreendia seus sonhos nem remotas lembranças, achava-os engraçados. Outra dançarina com ar zombeteiro oferece-lhe uma espécie de cola, dizendo que aos poucos esses sonhos pregariam à memória tal como num emplastro, unindo em seus miolos suas lembranças de fato ao que era inventado. Elas sorriram e divertiam-se por não saber se essa história do nome era lapso, invenção ou profundo mistério.

O certo é que Lily se pegava com os olhos brilhando ao resgatar essa espécie de memória apontada ao brasão, colorindo um pouco de seu desbotado passado. De uma coisa ela sabia: sua vida agora seria definida num circo.

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Tal como no brasão dos Braun, o Grande Circo Místico tem o destaque de um cavalo branco

 

 

 

De passado nem tão latente, ela previa o futuro ao fechar os olhos e fitar em sua mente o brasão dos Braun, composto também de um escudo azul com o cavalo branco por sobre um pequeno monte verde. Era inevitável, bastava flertar aquele desenho e sua ideia girava em certa tontura, transportando-a para um picadeiro a observar aquele cavalo a trotar, soltando estrelas azuis pelos olhos. Foi a partir daí que ela suspeitou poder viajar no tempo.

Essa característica se mostrava tão espantosa que Lily anteviu esse mesmo cavalo do brasão da família estampado na coberta de alguma caixa que guardava algo muito precioso. Possivelmente seria essa caixa um “disco”, artefato construído num futuro longínquo, no país chamado Brasil, onde dois artistas, Edu Lobo e Chico Buarque, acabariam por imortalizar a história do Circo Místico em musical arrebatador.

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Disco “O Grande Circo Místico” (1983), em formato de LP (long play, o pai do CD e avô do streaming)

Compreendendo sua essência, Lily passou a se permitir viajar, ou lembrar, ela não sabia com precisão. Certa vez viu o azul e o verde do brasão que chamava de seu colorirem tudo, para além do céu e do campo, onde muitos homens exalavam uma alegria esfuziante, eufóricos e alguns exaltados. Mas era dia, aquilo definitivamente não era um dancing. Hoje o letrista da música que ela cantara naquela noite, Chico Buarque, salpica o verde-anil no uniforme do seu time de futebol, inusitada combinação que pintava ao fundo o brasão dos Braun, para nele pousarem seus elementos. Aquilo que Lily vira era uma partida do Politheama.

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Chico Buarque com o uniforme do time de futebol por ele criado, o Politheama. As cores verde-anil são as mesmas do escudo do brasão dos Braun

 

 

Lily passou a fazer breves viagens ao futuro, o medo era de ficar presa ao tempo do amanhã. Sentia-se já venturosa em seus deslocamentos vindouros, quando foi surpreendida por um sonho onde aparentemente fazia uma viagem pretérita. Viu-se ali frente a uma senhora de ar concentrado e olhar triste, tal como o dela, isso a espantou.

Seu nome era Amalie von Kretschmann, e sem que lhe fosse dirigida qualquer pergunta, contou sua história. Disse ser desde cedo inconformada com a submissão da mulher na Prússia de sua época, no final do século XIX. Casou muito cedo com o professor Georg von Gizycki, trabalhou como jornalista no jornal feminista Die Frauenbewegung (Movimento das Mulheres), e após a morte desse primeiro marido, casou-se com o político Heinrich Braun.

Quando Amalie falou o nome do segundo marido, Lily sentiu o mundo rodar à sua volta, uma vertigem por não saber mais quem era. Ecoava em seu ouvido a palavra Braun. Amalie então tocou Lily no ombro, ali naquele plano onírico, dizendo ser o momento de ela entender que sua força de deslocadora não se restringia a viajar no tempo com suas divagações. Ela, Lily, surgira e haveria de ressurgir em diversos tempos, passageira daquilo que crédulos de algumas religiões poderiam chamar de reencarnação, mas Amalie descreveu como a mística e eterna luta da mulher por seu espaço, revivendo a cada geração.

Amalie disse ter adotado o nome Lily após observar o escudo da família Braun, de seu segundo marido, e percebido nesse escudo o desenho de um leão a segurar com a pata uma flor-de-lis dourada, então ela seria Lily… Lily Braun! Isso levou Lily, a recém chegada ao circo, a suspeitar que ela era na verdade a própria Amalie, de seu passado esquecido ou renascida noutra geração. Ela se remexia em sua cama e, numa suadeira, despertou do sonho.

Nunca poderia esquecer-se do olhar densamente triste de Amalie ao perceber como era difícil encontrar consigo mesma em diferentes tempos. Captando os olhos da outra Lily, ela alcançava algo impossível mesmo diante o espelho: olhar-se nos olhos. Ela entendeu quão triste e constante é a luta pela igualdade entre homens e mulheres, sabendo que muitos séculos do que chamaram feminismo, seriam necessários para por um fim ao machismo. Depois dessa viagem, Lily Braun não mais voltou ao passado.

Ela prometera então a si mesma, desde o inusitado encontro consigo, que jamais se subjugaria a um homem, sendo dona de sua vida e respeitando a própria vontade. Não poderia seu fantástico talento artístico sucumbir à predestinação da esposa sempre títere do marido; para sua época, uma mulher “honesta”. Sua voz e figura… de fato encantadoras! Ela sabia que alguns circos possuíam lugares próprios para artistas assim, bem como que o destino não dependia de seu anseio. O marido surgiria, estava escrito nas linhas de sua delicada mão, mas procurava não pensar muito nisso, pois refletindo seu deslocamento ao passado através do sonho, este já seria o terceiro.

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Heinrich Braun, segundo marido de Amelie, e que a inspirou a adotar o codinome Lily Braun (Budapest, 23/11/1854 – Berlin, 9/2/1927)

 

 

 

 

 

 

Lily Braun, chegada há pouco ao Circo Knieps, ainda não se apresentara ao proprietário, o Oto, a terceira geração do que se pode considerar o início da dinastia do Circo. O avô de Oto, Frederico Knieps, foi quem começou tudo.

Frederico era filho do médico da Imperatriz Teresa da Áustria. Por isso mesmo, seu pai, também chamado Frederico, decidiu que o filho teria o mesmo nome e a mesma profissão, médico.

Ocorre que o destino fez surgir em sua vida a equilibrista Agnes, com quem se casou. Assim começou a dinastia do Circo Knieps. Eles tiveram uma filha, Charlote, que não tardou a se encantar com o palhaço, e deste encantamento nasceriam Marie e Oto.

Esse Oto, o atual proprietário do Circo, teria seu coração arrebatado por Lily Braun, e após conquistá-la, a enredaria na trama do casamento.

Foi também nessa terceira geração do Circo Knieps que se instalou o trailer das dançarinas, e embora algumas fossem fixas, de vez em quando surgiam mulheres à procura de um palco para a dança e o canto. Assim ocorreu com Lily Braun. Ela chegara tão discretamente quanto seu modo de se vestir. Embora sua recatada roupa demonstrasse um mistério excitante, era nada mais que a melhor forma de esconder o santo tatuado em sua barriga, imagem nada compatível com o ambiente.

Oto, que não a conhecia, ao entrar no trailer na noite passada, foi cooptado pela beleza daquela mulher, de uma candura quase angelical. A roupa brilhante de Lily, da cor do céu, o fez suspirar proferindo: “Um anjo azul!”.

Naquele instante, Lily se virou buscando quem a chamava de anjo azul. Ela sabia que uma atriz muito jovem, Marlene Dietrich, atuara num filme como a dançarina Lola do cabaré “Anjo Azul”, falava-se que as longas e torneadas pernas de Dietrich impediam os homens de prestar atenção na triste música por ela entoada, “Falling in Love Again” (algo como “apaixonando-se novamente”). Mas Lily não só ouviu detidamente essa música, como sentiu uma espécie de calafrio, por temer de certo modo aquela sina de ser “da cabeça aos pés feita para o amor”. Tal como os homens, que diante sua luz se aproximavam para se aquecer, mas acabavam por se queimar, do mesmo modo que as mariposas.

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Marlene Dietrich, na famosa cena em que canta Falling in Love Again, no filme Der Blaue Engel (O Anjo Azul), de 1930

Oto a admirava estupefato, enquanto ela sentia-se cooptada, se vendo dentro de um túnel intransponível que culminava dentro dele. Mesmo distante e paralisado, aquele homem a sugara feito um zoom. Oto estranhou o olhar vago do seu anjo azul, como se ela estivesse se transportando para algum lugar. De fato, Lily viajava no tempo, percorrendo tudo que ocorreria a partir daquela noite.

– Você tem que evitar esse homem! – insistia a amiga.

– Não posso! É o meu destino. – arrematou Lily, quase fazendo levitar as cambiantes palavras.

Para Lily Braun, o destino era como o picadeiro do Circo, no qual o artista já sabe seu roteiro, e ainda assim se encanta ao transformar o ensaio num espetáculo. Um desolador, porém instigante espetáculo.

A tristeza de Lily, contudo, não era só por saber que o casamento com Oto a afastaria do palco sepultando a star, e que as poesias e rosas teriam a mesma duração do período da conquista.

Havia algo além. O resultado de sua capacidade de se lançar no futuro era por vezes um sofrimento lacerante em seu peito, como quando ela anteviu a dor da futura filha que teria com Oto. Lily vislumbra que sua filha se chamará Margarete e será violada pelo boxer Rudolf, levando-a a gerar as gêmeas Marie e Helena. Mas desse padecimento surgirá a beleza, e isso de certo modo a confortava. As gêmeas bailarinas, netas de Lily, no futuro, se apresentarão nuas em inacreditável dança no arame, levitando e atirando suas almas para a visão de Deus.

O mais pesaroso, porém, é que nem mesmo esse belo espetáculo das gêmeas bailarinas chamará a atenção do público, e muito menos da imprensa. Estarão todos anestesiados por uma apatia, incapazes de admirar a arte e a beleza. Essa dor maior de Lily é por ela saber, no íntimo, que esse é o mais retumbante sinal de que a tirania está à soleira da porta da história.

Por uma aflitiva e trágica coincidência, o percurso que Lily fez quando era Amalie, de esposa a feminista que entraria para a história como escritora, agora se invertia. Ela faria o caminho de volta;  passando de artista a esposa. Isso doía em sua alma porque juntamente com sua infelicidade particular se somaria a desventura do próprio mundo diante dos terrores da iminente tirania.

Todos esses pensamentos surgiram como um flash na cabeça da deslocadora, que não mais precisava sonhar para viajar no tempo. Ela então retorna ao presente em segundos.

– Está na hora de me preparar para esta noite. – disse Lily abruptamente à amiga.

Ela retocou a maquiagem, mesmo com o sol ainda alto. Principiaria em breve os detalhes para seu espetáculo. Não convinha erguer ao palco mais tarde uma cara borrada, no amálgama de cores da pintura com o choro na face.

Naquela noite que se aproximava, Oto haveria de retornar. O destino, inevitável, se consumaria.

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NOTA FINAL:

Todo artista é um deslocador; além de ser atemporal em sua arte, o artista nos faz viajar ao passado e ao futuro, levitando-nos graças ao talento expresso na música, na literatura, no teatro, no cinema e em tantas outras manifestações artísticas. O artista está a frente do tempo no qual ele vive, com a coragem e a predestinação cívica da liberdade, por antever os perigos da opressão ou lembrar-se desses momentos pretéritos, para que eles não se repitam.

Dedico meu texto à deslocadora Amalie Von Kreschmann, a Lily Braun, lamentando que sua vida destinada ao feminismo, embora seja exemplo até hoje, não tenha sido suficiente para impregnar nas sociedades modernas a percepção de que mulheres e homens devem ser iguais não somente em direitos, mas principalmente no respeito mútuo.

Dedico também aos deslocadores que agora empreendem outras viagens em dimensões diversas, Jorge de Lima e Naum Alves de Souza.

E, com forte emoção, aos deslocadores que nos dão o privilégio por vivermos o mesmo tempo material no qual eles vivem, Edu Lobo e Chico Buarque; com eles, o “Grande Circo Místico” saltou das letras pousadas em papel para a eternidade na constelação do universo musical.

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E por uma surpreendente coincidência, no dia 15 de novembro de 2018, data que marca os 65 anos da despedida do poeta Jorge de Lima, estreia nos cinemas o filme de Cacá Diegues “O Grande Circo Místico”, uma produção de Renata Almeida Magalhães e Luís Galvão Teles (Brasil/Portugal), com roteiro de Cacá Diegues e George Moura, inspirado no poema de Jorge de Lima e na obra de Edu Lobo e Chico Buarque, com grande elenco: Jesuíta Barbosa, Bruna Linzmeyer, Mariana Ximenes, Vicente Cassel, Juliano Cazarré, Dawid Ogrodinik, Catherine Mouchet, Rafael Lozano, Amanda Britto, Louise Britto, Tiago Delfino, João Santos Silva, Antonio Fagundes, Albano Jerónimo, Nuno Lopes, Miguel Monteiro, Luísa Cruz, Marina Provenzzano, and… last but not least… Luíza Mariani, como Lily Braun.

Ao mais novo deslocador da saga do Grande Circo Místico, Cacá Diegues – nascido em Alagoas, tal como o Poeta que deu origem a tudo – , a expectativa de sucesso ao transpor para as telas a história que saltou do poema para o ballet, do ballet para o musical, e do musical para o cinema. Uma trajetória que teve início há exatos 80 anos, quando foi publicado o poema de Jorge de Lima.