Sonhos…
Ao sonharmos dormindo transportamos nosso mundo, coisas e pessoas
àquele estranho e, quase sempre, inefável universo.
Transportamo-nos?
Voltamos e tentamos nos lembrar de nossa estada no espaço,
nem sempre noturno.
Transportam-nos?
Ao sonharmos, agora acordados,
acreditamos ser os donos dos sonhos dormidos,
duvidando que eles sejam mais lúcidos que nossa ilusão nefasta.
Sequer refletimos, mas pretendemos – em clássica ufania humana –
ter o controle daquele delírio, porque encaramos o sonho vendado
como o arregalado: meu!
Criações da (nossa) mente. Sim ou não? Talvez.
Ele, justo ele (e por que não ele?), ousou por ora acreditar nisso…
Aquele homem, ao sonhar, avistou uma moça contra a luz; ele só conseguia desvendar sob tal efeito a silhueta contornada por uma auréola luminosa e difusa. Diante do súbito encantamento, a deixá-lo numa espécie de bruma ofuscante, arriscou perguntar: “Quem és?”. Ela, nele, encontrava a luz que a alumiava.
Ele se arriscou, sem contar que o risco era do sonho e também daquela moça que o habitava. O homem que se arrisca tem coragem, mas também o medo: fraquejou a sua voz. A brusca interrogação pontuando sua curiosidade era de quem consumia tudo que naquele sonho se criava. Ele insistiu esperançoso, pegando as mãos da moça, ansioso como quem desata um nó. Ela não o respondera, e ele não ousou repetir a indagação. Mas a sua fé foi mais além, e sentindo-se a própria divindade a criar aquele universo do sonho e todo ser vivente nele, soprou o rosto da moça, imaginando que com o sopro a criatura não só ganharia vida, como o identificaria como seu criador.
Ele não a aceitava somente ali, deveria ser uma moça real com quem estivesse sonhando; ele despertaria daquele sono e diria ao encontrá-la: “Moça, hoje eu sonhei contigo!”. Mas nada disso acontecera. Esse homem de fato não pensou, e ao desferir-lhe o vento, depois da luz e da palavra, o rosto da moça se desfez em pó. E assim foi com ela, igual a toda criatura concebida por um deus, que vem do pó e ao pó retorna. Só que o inadvertido gesto do homem teve o efeito inverso ao da vida, pois dissipou o rosto dela, concedendo a ele a dor do pesar. Ele ainda não compreendera que ela pertencia àquele ambiente onírico; o sonho era seu casarão, aonde ele adentrara não se sabe se como intruso ou convidado.
Aquele homem já havia sonhado muitas outras vezes e com tantas outras pessoas, entre elas belas mulheres, mas agora não se tratava de uma moça qualquer em um sonho. Certa moça incógnita surgira solitária em um de seus sonhos, fazendo com que aquele deserto deixasse de ser um sonho qualquer; era ela A Moça do Sonho.
Ele acordou e suspirou, lembrando-se daquela cena; desejando no mínimo se tratar seu sonho de um presságio, talvez um déjà vu, quem sabe uma premonição ou espécie de mediunidade pendente no ar. Queria ser bem mais que o criador daquela habitante do sonho, e tentava materializá-la. Perambulou por aí, atravessando galerias como se transpusesse portais. Creio que esse homem, como todos os seres humanos viventes, desejava apenas encontrar a pessoa por ele idealizada. Ele então já se dava conta que não sonhara com a moça de seus sonhos. Não. Ele teve seu coração arrebatado por uma moça desconhecida e quem sabe até imperfeita, mas ele não soube sequer o seu nome. E em seu choro de lamento, restou-lhe a esperança num canto inconformado… “Há de haver algum lugar / Um confuso casarão / Onde os sonhos serão reais / E a vida não”. Ele não queria mais a vida onde não a encontrasse, ansiava apenas imprimir realidade aos devaneios. Cantava triste e docemente… “Por ali reinaria meu bem / Com seus risos, seus ais, sua tez”. Conjecturando a realidade de quimera, ele buscava o motivo pelo qual sonhara com aquela moça, e lhe veio a ideia de que, quem sabe por lá, deitada a noite em sua cama, ela também não sonhasse com ele.
Ele ficou ali consigo, com aquilo pairando sobre a sua cabeça abissal, receando ser um lunático perdidamente apaixonado por uma miragem. E foi justamente sofismando que aquela moça também sonhara com ele naquela terra do nunca, que se lembrou de Jorge Luis Borges ao falar do sonho recíproco da Alice, de Lewis Carroll.
Aquele homem jeitoso, ainda um sonhador, exalava ares travessos e em sua adolescência, entre leituras e aventuras, descobriu o escritor argentino. A menina do país das maravilhas sempre o cativou, e só agora ele se dava conta de como ganhava sentido a passagem escrita por Borges, que ele sabia de cor e salteado: “Alice sonha com o Rei Vermelho, que a está sonhando, e alguém lhe avisa que, se o Rei acordar, ela irá apagar-se como uma vela, porque não passa de um sonho do Rei que ela está sonhando”. Naqueles tempos idos ele sempre repetia esse trecho em frente ao espelho, brindando à inquieta, sonhadora e também solitária personagem de Carroll.
Foi assim, rememorando o tempo da delicadeza, que ele se sentiu o próprio Rei Vermelho sonhando com Alice que o está sonhando. E bem como tal, não poderia ele ter despertado de seu sono, o que colocaria um fim à vida da moça. Vida esta que ele sentia de fato ter lhe entregado, agora não mais como um deus, mas como um rei. O homem passou a suspeitar que a luz, contra a moça que o encantara, era a mesma luz que ela encontrara nele. Seus olhos que por aqui se fechavam, lá se abriam dando a luz àquela mulher. Então enquanto ele se encanta com a imagem dela em contraluz, a moça encontra a luz naquele homem? Sim, ele a pariu pelos olhos, por ambos! Ela era a vela de seu sonho que ele acendera com a centelha do seu olhar, tal como Alice no sonho do Rei. O deus que passou a ser rei era agora um homem, que não a possuía. Mesmo admitindo a si que a qualquer momento a vela seria inevitavelmente apagada pelo despertar, ele não concedeu-se nenhum alívio. Tivesse guardado o sopro em sua boca capaz do beijo, permaneceria com ela por mais tempo.
Ainda iludido, antevendo a sina de que o tempo se confundia entre o que se deu de fato no sonho e o que viria a ocorrer com a chegada da aurora que desperta os sonhadores, ele seguiu adiante em sua vida, convicto de que em mais alguns dias esqueceria esse devaneio noturno. Ele caia em si à medida que se perdia entre idas e vindas de casas, incluindo a sua, sempre com a fixação de que haveria de encontrar novamente a moça, se não por aqui, ao menos noutro sonho. Ele agora era capaz de inventar qualquer mundo por aquela moça, bastou tê-la um dia sonhado. Ele se sentia um tanto fraco, mas também tão forte que podia juntar o suco dos sonhos, ao ponto de encher um açude, desde que fosse por ela!
Certa tarde, quando acabara de chegar a esmo, com os olhos marejados, este homem correu para a estante em busca do livro “A Vida é Sonho”, de Calderón de La Barca, poeta e dramaturgo espanhol do século XVII. Ele sabia que aquele livro continha o trecho da Cena XIX do final da Segunda Jornada da comédia, quando o personagem Segismundo pronuncia a marcante sentença, até hoje repetida por muitos literatos: “Que é a vida? Um frenesi. / Que é a vida? Uma ilusão, / uma sombra, uma ficção; / o maior bem é tristonho, / porque toda vida é sonho, / e os sonhos, sonhos são”.
Seus olhares já não encontravam mais nada que buscavam, nem as letras. Arregalados de tanto tentar enxergar o rosto da tal moça por aqui, os olhos daquele homem agora colhiam o sono exauridos, enquanto seus ouvidos alcançavam alguém cantarolando distante. Ele adormeceu ali mesmo junto a seus inseparáveis livros. Do outro lado, era ela! Ao abrir seus olhos para iluminar quem cantava naquele bendito lugar, a moça estava de costas para ele e, instintivamente, o impaciente homem quis, mais uma vez, saber quem ela era.
Ela o ignorou e pôs-se a levitar em seu sentido oposto. O homem não se conteve e tentou impedi-la de ir embora, segurando-a pelo vestido. Naquele momento, enquanto a moça se virou para ver o que a impedia, a singela cantiga que em seus lábios brincavam deram lugar a um gemido. Ele ficou olhando para aquela expressão de agonia em sua face, com um pedaço do vestido dela em sua mão. No seu rosto, a feição já não era mais daquela moça por quem ele se apaixonara, como num casamento castigado, que vai da lua de mel à separação. Ele se frustrou e, depois, sentindo-se viúvo, cantou: “Por encanto voltou / Cantando a meia voz / Súbito perguntei : quem és? / Mas oscilou a luz / Fugia devagar de mim / E quando a segurei, gemeu / O seu vestido se partiu / E o rosto já não era o seu”.
Quando despertou, todo desarranjado entre livros e dores, a luz estava acesa, e quem cantarolava evanescera. Acabou por achar o exemplar que tanto procurava quando pegara no sono. Ao folhear a edição argentina, aquele homem surpreendeu-se com seu próprio grifo a lápis, que destacava o trecho com o prólogo feito por Silvina Beatriz Marsimian: “Borges diz que à noite somos todos dramaturgos. Com efeito, a alma humana, quando sonha, desvinculada do corpo, é ao mesmo tempo o teatro, os atores, o público e também o autor da história. No sonho como um gênero literário, cujo roteirista é o homem, agruparia os sonhos inventados pelo sonho e os sonhos inventados pela vigília: sonho e vida são, para Borges, duas formas de fazer literatura”. No final do prólogo de Silvina Beatriz Marsimian havia mais um trecho grifado, só que este de um traço mais fino; intrigado, ele não o reconhecia como sendo seu… “Todos sonhamos: cada um sonha seu sonho e talvez seja sonhado por outro sonhador por sua vez sonhado”.
Sim, aquilo o alimentava e remetia a algo valioso que aprendera com Fernando Pessoa, num poema de 1913 cujo início era assim: “Eu não sei o que sou. / Não sei se sou o sonho / Que alguém do outro mundo esteja tendo…”. Ele vendou seus olhos curiosos e encontrou ali no breu da visão, alguma coisa que muito o confortava; era a afirmação ousada e marcante feita por Shakespeare, muitos séculos antes, na peça A Tempestade, de 1610, quando Próspero arrematou na Cena I do Ato IV: “Somos feitos da mesma matéria dos sonhos”.
Ele ficou ali silencioso, com os olhos inquietos por sobre as páginas, e o pensamento suspenso por entre os sonhos. Agora o homem compreendia que ali ele estava também vivendo, pois a vida é sonho, e somos todos feitos de sonhos, enquanto outros sonham o que somos. Tivesse aquele homem se lembrado de suas leituras quando encontrou a Moça do Sonho, atingiria ele a exata percepção de tudo? Não. Essa reflexão de tais trechos já lidos e relidos só ocorrera após essa magia de seus últimos sonhos, dando-lhe a sensação de que um bom livro nunca se acaba. Carroll, Calderón, Pessoa, Shakespeare e sabe-se lá quantos outros mestres, a ensinar: aqui é o lugar de aprender; e lá, o de viver. Mas se ele antevisse tudo, talvez não tivesse dissolvido seu sonho sólido, remexendo-o dentro de sua caneca cheia de curiosidades fluidas. Esse homem queria doravante viver seu sonho, e não mais sonhar a vida.
Ele lembrou-se das aulas de ciências, com explicações racionais do mundo que o deixavam pouco a vontade. Com ar sisudo, seu então professor o enfadava repetindo a lição preferida, sacada do químico francês Lavoisier: “na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma!”. Ele conteve seu riso nervoso, acreditando agora não serem os sonhos criados e muito menos perdidos. Ele sofismou que os sonhos já pairados ficassem vagando numa paragem, como as coisas de segunda mão, estocadas num bazar. Ficaria tudo ali, na esperança de que ainda cativasse alguém, a espera de quem fosse resgatá-los. Outrora a palavra “bazar”, de origem persa, significava “rua de lojas”. Entretanto, ele jamais recordaria em sua assoberbada memória, que em algum lugar do passado lera que “bazar” pode ser também um verbo; escapulir, evadir, era o seu significado. Então era um sonho sonhado, guardado, à deriva, fugido ou talvez subtraído, que ele não conseguia visitar nem avistar em estantes organizadas como num sebo. Ora, se na vida real tempo e espaço são relativos, que dirá nos sonhos!?
Esse homem tinha tamanha fé, mas não a conhecia. Sabendo que escadas são estruturas adequadas para alçar ou pender nossos passos até aquilo que desejamos alcançar, assegurando-nos de um espaço a ser ocupado, ele tentou usá-las para recuperar seu sonho evadido. Aquele homem dava-se conta de que no mundo fantástico do presumido bazar, ao tentar usar as escadas, elas lhes fugiam dos pés, já que ele estaria levitando, solto no espaço. Esse homem se via correndo em vão atrás dos lépidos degraus, enquanto eles sempre escapuliam, tal como os sonhos. Enquanto a palavra “escada” se repetia em sua mente, ele cogitou ser a sua história com a moça mais uma quimera, esmorecendo sua crença. Numa vertigem confiou tê-la ouvido dizer que ia partir, mas que voltaria de novo a qualquer hora subindo uma escada até o seu lugar, que ele acreditava ser o seu sonho. Ela repetia sonora e veementemente aquela palavra como num mantra. O homem hesitou que não fosse usando atalhos por degraus místicos, a pendê-lo ou içá-lo, que ele encontraria a moça arrebanhada num possível espaço.
De posse da própria natureza humana, aquele homem acreditava ter enquadrado o etéreo tempo no restrito espaço de um relógio, com seus ponteiros a marchar numa só direção, à direita. Ele se viu tão vulnerável; o advento de seu sonho desmontara a lógica burlesca de um compasso único cronológico. Tudo que ele desejava era que os relógios rodassem pra trás o devolvendo ao sonho. Ele agora vivia a buscá-la, correndo contra o tempo e descartando os dias em que não a viu, não se sabe se na imaginação ou na lembrança do sonho. Inutilmente, ele rodava as horas pra trás acreditando tirar alguma vantagem do tempo, e sentia-se mais perto do seu sonho extraviado. O homem duvidou que não fosse se valendo de fendas em seus relógios mágicos, a adiá-lo ou recuá-lo, que ele descobriria a moça submergida num provável tempo.
Enfim, ele ponderava, que mesmo que a mulher com quem ele sonhou pela segunda vez o tenha confundido, ele ainda teria sempre consigo bem guardados o silêncio e o que ele arriscou ser o riso daquela primeira moça. Mesmo em sonho, ele esteve atento, a fim de lembrar-se sempre dela. Sempre. Ele largou-se dos livros, dirigiu-se até o vão de seu cômodo, abriu a janela respirando profundamente o sereno da adiantada noite. Olhando o firmamento, ele namorava as estrelas que já se foram noite afora para sempre, temendo ser a Moça do Sonho uma delas. O homem então cantou ao léu, como quem arrumasse em versos tudo com o que ele agora sonhava acordado: “Um lugar deve existir / Uma espécie de bazar / Onde os sonhos extraviados / Vão parar / Entre escadas que fogem dos pés / E relógios que rodam pra trás / Se eu pudesse encontrar meu amor / Não voltava / Jamais”.
Ele passara o pequeno restante daquela noite em claro. E desde o amanhecer, aquele homem nunca mais sonhou.
A Moça do Sonho
Edu Lobo/Chico Buarque/2001
Súbito me encantou
A moça em contraluz
Arrisquei perguntar: quem és?
Mas fraquejou a voz
Sem jeito eu lhe pegava as mãos
Como quem desatasse um nó
Soprei seu rosto sem pensar
E o rosto se desfez em pó
Há de haver algum lugar
Um confuso casarão
Onde os sonhos serão reais
E a vida não
Por ali reinaria meu bem
Com seus risos, seus ais, sua tez
E uma cama onde à noite
Sonhasse comigo
Talvez
Por encanto voltou
Cantando a meia voz
Súbito perguntei: quem és?
Mas oscilou a luz
Fugia devagar de mim
E quando a segurei, gemeu
O seu vestido se partiu
E o rosto já não era o seu
Um lugar deve existir
Uma espécie de bazar
Onde os sonhos extraviados
Vão parar
Entre escadas que fogem dos pés
E relógios que rodam pra trás
Se eu pudesse encontrar meu amor
Não voltava
Jamais
LEITURA FINAL, APÓS O DESPERTAR:
“A Moça do Sonho” é uma composição com música de Edu Lobo e letra de Chico Buarque, feita para o musical “Cambaio”, de Adriana e João Falcão, em 2001.
Gravada originalmente por Edu Lobo no CD homônimo da peça, a cantiga nos traz a sensação incrível de que ele transporta uma moça encantadora para dentro daquele sonho. E ao acordar nos conta, então, a belíssima história.
Alguns anos depois, essa moça, com ares de bela adormecida, desperta na voz de Chico Buarque. Só que agora é ele quem se transporta até o sonho, lugar onde ela está, espelhando-a magicamente no CD “Caravanas”, de 2017.
Nós, já envolvidos naquela aura enigmática na qual Edu nos colocara em “Cambaio”, fomos divinamente surpreendidos com o aromático sopro da nova interpretação. Um Chico Buarque arteiro que, ao puxar nosso tapete, nos arremessa gentilmente em nuvens de algodão.
Ao gravar essa pérola, Chico recupera a sequência das estrofes mirando atribuir mais dramaticidade à narrativa do sonho, pois na gravação em “Cambaio” a segunda e a terceira estrofes foram alternadas entre si. Em sua incrível generosidade como cantor, Chico se doa à música, nos confiando àquela moça do sonho, com o efeito de quem, mesmo acordado, permanece sonhando.