LONGE DO MAR
Eu já fui menino, hoje sei. Quando criança, não sabia. Tempo não é o correr dos minutos, das horas, dos dias… e assim sucessivamente até onde ousamos contar. Não é isso. Tempo é dimensão exata daquele nosso passado que, quando vivido, era o próprio presente, sem reflexões. Ainda mais na meninice, onde tudo parecia se repetir saborosamente a cada crepúsculo da aurora ou do poente. Aquele tempo de criança… Acabaria? Nunca, nem pensávamos nisso. Era igualzinho ao litoral, dia seguido de dia, o mar de todo o sempre. Meu destino foi ser um menino de praia, que estava logo ali, a poucas quadras da casa onde cresci. Apostando corrida e catando cavaco, ia-se a pé; nas férias, então, era todo dia. Ah o tempo, aquele tempo… passou, e eu me mudei de lá.
Era eu ali, aquela criança fixada ao mar. Mas o tempo foi passando por mim, transpondo a alma infinita de um menino franzino, em mente aflita do homem robusto. Hoje eu sei que sou um passageiro do tempo, e também vou passando, porém, a entendê-lo. É como um meio de transporte que nos conduz do primeiro choro rebentado, ao último suspiro permitido. Ainda me lembro, embarquei no pequeno veleiro, sabiamente vagaroso em sua imensidão de mar e brisa: “bem vindo à vida!”. Quando me dei conta já estava misteriosamente a bordo de um jato, e lá fora não havia brisa, mas ventania. Sim, um dia todos fomos crianças, ansiosas em trocar a saliência da infantilidade pela decência da maturidade. É assim esse tal de tempo, finito por existir, bendito por haver.
A gente lá vai fazendo um caminho de ida, enquanto a nossa memória, sempre o caminho de volta, e assim como indo podemos nos sentir perdidos, ela também se perde voltando. Quanto maior a distância percorrida, mais a gente se confunde entre o que se deu de fato, e o que jamais marcará nossos passos, já que não caminha pela linha do tempo. É como numa brincadeira de esconde-esconde: “Agora é a minha vez de esconder, pode contar até 10”. Enquanto perdemos a conta, nossa infância fica em silêncio de pulmões encolhidos, sem saber se algum dia será encontrada. À noite quando me deito, fico esperando pelo sono, procurando os tempos idos, nas melhores lembranças, lembradas ou não. E quando fecho os olhos, é ele que eu escuto: o mar. Por vezes, a criança que fui visita meu sonho, ou talvez seja ela que me permita sonhar.
Sonhos… O mar, assim como os sonhos, acabou por nunca se acabar. Ele que não oferece caminhos, mas leva a todo e qualquer lugar, transcendeu a alma do menino e a mente do homem, indo se abrigar no tempo, sendo minha companhia perene de todo rebentar e suspirar. Foi assim que tudo se deu e se dá… Quando me volto para trás vejo meus olhos fechados degustando tanta sonoridade das ondas. Seguindo adiante escuto o que é de odor e sabor, a maresia habitante de Massarandupió (Chico Brown/Chico Buarque), a música onde o tempo mergulha no mar. Por lá, nas profundezas de todo oceano, ele termina por diluir-se tanto, que parece desaparecer.
A criança caminha na praia com o coração arregalado; a emoção que dele transborda na faixa de areia, vem da imensidão do mar. Tudo é desafiador com suas promessas no desconhecido. Na fileira branca onde as ondas se quebram, a fronteira de espuma impõe a força da natureza, no movimento cadente que traz, mas que também traga histórias. Ainda não se pode emprestar o ânimo graúdo do corpo miúdo aos caprichos da arrebentação, sob o risco de jamais reavê-los. É preciso ter a mão pequenina, contida justa, dentro da mão zelosa do pai, mesmo no ímpeto instintivo de soltá-la, mostrando a si mesmo que se carregou tanto de coragem que aquele obstáculo ondulatório não mais o impressiona. E finalmente chegará o dia em que o menino saberá do chão sob a arrebentação, bem ali dando-lhe pé, capacitando o menino a transpor aquela faixa, alcançando um outro lugar do mar, onde ele já será um homem.
É o tempo que metaforicamente se distribui pelo mar; a gente se sente sempre presente na arrebentação, é o estado de conflito natural do ser humano. E quando o homem do futuro, que enfrenta o mar aberto rumo ao mundo, olha para a praia, avista o menino que ficou no passado, bem ali onde a perna bambeia. Lá é quando tudo tem tanta graça, que se não for risaria, é risaiada, com breves intervalos para um choro, um resmungo, uma pirraça. Eis aí o bacuri que larga num pé-ante-pé desembestado, como se isso fosse possível. Vai colhendo as conchas que um dia há de contar, e quiçá devolver a Yemanjá. Titubeia, cambaleia, cai sentado, cavuca com os dedos, cava com as mãos, ergue castelos que ainda parecem montanhas, mas são mais reais que os de pedra.
A praia é ilha deserta de marinheiros e piratas imaginários, navios desenhados pela ideia, que parecem cortar o azul das águas como facas amoladas, a invasão do litoral pelas embarcações com seus cascos pontiagudos imita o barulho das ondas… assim inventa o pequeno aventureiro. Naquele cenário de terra fina e infinita e água salgada e interminável, o menino não conhece a idade, a impressão é a de que há um acordo entre os grãos nos quais se pisa com ares infantis e a ampulheta que deixa por instantes de escoar a areia que marca o correr do tempo. O dia se estica, não acaba nunca, pronto para receber as brincadeiras do infante e o seu viver possível graças às voltas da massaranduba-mor.
Muitos dias vivi assim, num mundaréu de areia à beira-mar, no xuá das ondas a se repetir… nesses versos de Massarandupió embarco rumo a um passado, que nunca passou. Olhos fechados, sinto o chão molhado com a espuma leve do mar cansado, aquilo que foi onda e agora é breve suspiro de água e sal aos pés do caminhante. O sol queima as costas sem agressividade, uma quentura da manhã anuncia o longo dia a levar esse sol de um lado ao outro em curvatura. É como se fosse um rastro no céu guiado por ponteiro de relógio, cada posição a revelar o horário exato para quem tenta matematizar a natureza para além dos ângulos planos. Dez horas, onze horas, meio-dia… agora o arco vai para o outro lado, começa a tarde… uma hora, duas horas, três horas…
Massarandupió. O nome é curioso, à primeira vista é um enigma sem qualquer pista. Os “ss” sibilam no início, o “du” dá um sobressalto até chegar ao “pió”, como na arrebentação se dá. É uma onda que chega entrando pela porta da frente, logo no divino início instrumental da música, com seu formar, crescer, cair, esticar para enfim recuar deliciosamente ao mar… É uma praia! Chico Buarque compartilha com seu público o significado do nome e também do lugar antes de cantá-la em seu show Caravanas: “Massarandupió é o nome de uma praia na Bahia onde meus netos, quando bem pequenos, passavam o verão, e onde minha filha enterrou o cordão umbilical do meu neto Chiquinho. Chiquinho esse que cresceu, virou Chico Brown, compositor, e meu parceiro na música Massarandupió”.
É preciso escutar a música de olhos fechados e peito aberto, debulhando as palavras de mãos dadas a ela, feito antigamente em cantiga de roda, gira para um lado a sorridente criançada, agora roda para outro, a brincadeira que não para, é areia e mar, sólido e líquido, melodia e verso.
Quando ouvi Massarandupió me dei conta dessa viagem à infância, por isso quis ouvi-la novamente, tanto e sempre. Fui pontuando a cadência da música como se fosse um relógio, o tique-taque era marcado pelos instrumentos tocados no estúdio de gravação, violão, bandolim, piano, harpa, flauta, clarineta, alguns violinos, e de repente a guitarra sobressaltada, tal onda forte que vem do fundo do mar, presentemente autêntica, quase um choro de saudade da criança que já pertenceu àquele mar do qual também já foi dona.
Sim, é o Chico Brown quem dedilha a guitarra na gravação da música de sua autoria, letrada pelo avô Chico Buarque. É o menino do ouvido absoluto, agora profissional multitalentoso, músico parceiro de cordas, sopros e percussão. Aquele piá preparava um cenário a ser projetado em música sua, lá no futuro, da letra de quem o viu pequeno desenhando o roteiro da história a ser contada num tempo bem distante daquela Massarandupió, do cordão umbilical do bacuri guardado sob uma areia quieta.
Eu não sei da infância do então Chiquinho, mas em se tratando de praia, as infâncias se identificam, há uma espécie de comunhão entre as crianças no ato ou fantasia de sonhar quando se tem por contexto a areia, uma vez que o mar é um só. É sempre a liberdade, o caminhar sozinho criando mundos, absorvendo o cheiro do oceano em sua promessa de sal, a vontade do mergulho, o medo da arrebentação, o saber do chão onde se pisa enquanto segura a mão do pai, indagando à mãe quando ele vai soltá-la, porque ao chegar esse dia a meninice se foi.
É comum em todas as crianças o sentimento da perenidade, não se imagina que aquele tempo, um dia, findará. Pequenos acordam adultos, de repente, é algo que só se saberá depois. Crescemos! A praia de ontem passará a ser recordação e não mais cenário. Lembrar de uma época que não mais retorna, diz a música, é como perder um anel de pedra cor de areia naquela imensidão da praia, e ainda assim é preciso cavucar, sol a sol, rogando a São Longuinho… Com fé, hei de achar a infância perdida, hei de achá-la!
“Devia o tempo de criança ir se arrastando até escoar, pó a pó / Num relógio de areia”, ouço os versos musicados novamente, quero meu tempo de volta, o tempo de criança, e que ele não se acabe assim de supetão. O certo seria vê-lo escoar vagarosamente, naquela ampulheta feita de areia da praia, por onde as crianças, ludibriadas, passam a acreditar na invenção do tempo. Percebendo a cada dia que a meninice está prestes a se findar, ao menos eu saberia o dia em que não estaria ao lado de marinheiros e piratas na imaginária ilha. Parece que preferiria assim; melhor a acordar adulto sem aviso prévio. Oh, São Longuinho, santo das coisas perdidas, encontra minha infância por aí!
Engraçado, desde criança eu ficava a imaginar como seria a praia durante a noite, sem ninguém, o sol escondido, o breu dando suas ordens. Mas isso não me dava medo. Porque quando dormimos perto do mar – e já experimentei cotidianamente essa felicidade – sabemos que o vento fica a varrer a praia a noite toda, arrasta tudo, até vestido caído de algum varal, e o ergue num redemoinho como se fosse um prêmio.
Ouvir o barulho do mar por toda a noite é sensação única, a cadência das ondas acaricia a silenciosa escuridão. E quando estamos próximos a dormir, naquele estado de semiconsciência, essa cantiga do mar nos remete ao útero materno, o berço líquido no qual nos deixamos embalar no início de nossa existência, como se levitássemos dentro do oceano de nosso planeta mãe.
Dormir por alguns dias perto do mar, ouvir as ondas em seu balançar noturno, isso nos torna reféns de um sentimento permanente. Quando nos distanciamos do mar, sentimos falta daquele ritmo, passamos a entender que a praia não é somente o sol, o caminho durante o dia, as aventuras. Compreendemos que a noite é senhora soberana na praia, com seu berço musical a nos acalentar, até nos chegar a reflexão em forma de angústia: “Como é que eu vou saber dormir longe do mar?”
Massarandupió tem essa indagação poética. O verso nos chama a atenção, é o pensamento da criança, desconectada das expressões superficiais dos adultos, que assim diriam: “Como é que eu vou conseguir dormir longe do mar?”. “Conseguir”, ou mesmo “aguentar”, “suportar”, esses verbos sem sal. A criança traz a autêntica palavra ligada ao mar, “saber”.
Saber dormir ou não saber dormir, eis a questão. Na meninice não se fala “conseguir”, “aguentar” ou “suportar”, essas permanentes palavras do mundo adulto. Dormir longe do mar, para a criança, indica a origem da palavra “saber”, que vem do latim sapĭo, no sentido de “ter sabor”, “sentir por meio do gosto”. Ao cessar a infância, aquele sabor acompanhará o adulto das noites insones, só de vez em quando chegará o sono, ainda assim de um descanso inquieto, falta-lhe algo e não se sabe precisamente o quê. Ninguém há de lhe dizer o óbvio: ele pensa ser adulto, mas no íntimo, em suas recordações, na ânsia de experimentar novamente a meninice perdida, chegará o dia em que se mostrará urgente desafiar o tempo, mergulhar na ampulheta esquecida, até emergir das areias de Massarandupió. E a criança que renascerá depois do adulto nunca mais vai saber dormir longe do mar.
Massarandupió
Chico Brown/Chico Buarque/2017
No mundaréu de areia à beira-mar
de Massarandupió
Em volta da massaranduba-mor
de Massarandupió
Aquele piá
Aquele neguinho
Aquele psiu
Um bacuri ali sozinho
Caminha
Ali onde ninguém espia
Ali onde a perna bambeia
Ali onde não há caminho
Lembrar a meninice é como ir
cavucando de sol a sol
Atrás do anel de pedra cor de areia
em Massarandupió
Cavuca daqui
Cavuca de lá
Cavuca com fé
Oh, São Longuinho
Oh, São Longuinho
Quem sabe
De noite o vento varre a praia
Arrasta a saia pela areia
E sobe num redemoinho
É o xuá
Das ondas a se repetir
Como é que eu vou saber dormir
Longe do mar
Ó mãe, pergunte ao pai
Quando ele vai soltar a minha mão
Onde é que o chão acaba
E principia toda a arrebentação
Devia o tempo de criança ir se
arrastando até escoar, pó a pó
Num relógio de areia o areal de
Massarandupió
Em julho de 2018, Chico Brown veio a Fortaleza fazer um show no Cineteatro São Luiz; fui com meu filho, e lá presenciamos o artista cantar e tocar violão, piano e bongô, senhor absoluto do palco com sua jovialidade e talento. Ao final, Brown nos recebeu calorosamente em seu camarim, o Mantovanni Filho pôde dizer a ele o quanto gostava de música, apaixonado por violão desde quando era um piá.