FUTUROS AMANTES

Rio de Janeiro, 12 de junho de 1993

      Sou eu.

      Oi… olá… olha, você sabe que sempre começo assim essas cartas, sem saber por onde começar. Sinto-me tanto acesa cá neste início, já me vendo aplacada pelo fim. Talvez seja por aí. Então, faz isso por mim, vai me dizendo como estão as coisas contigo. Imagina se pudesse ser desse jeito!?

      Era assim quando me apaixonei por ti, lembra? Você adivinhava o que eu estava pensando, sentindo, querendo… e fazia tudo em meu nome, dizia a minha própria voz, pois ela também era sua. Eu não me sinto mais assim, mas tenho medo do que possa estar vindo ocupar o lugar disso. Essa não foi uma das minhas mentiras, infelizmente.

      Tem sido engraçado receber correspondências de “diferentes pessoas”. Por vezes tenho a impressão que você permite que o personagem salte, e participe também do interior da carta. Gostou do nome que escolhi desta vez? Aposto que não me reconheceria. Agora você tem conquistado cada vez mais fãs e amigos. Espero que um dia se lembre de que algumas dessas pessoas eram eu. Brincadeiras a parte, gosto de acreditar que esteja se divertindo com isso. Estou tentando, apesar de todos os nossos problemas. Uma brincadeira de bom gosto! Fico rindo escondida até o ano 2000, se o mundo não se acabar por lá, como preveem. Queria que antes a gente se acabasse por aqui, se não na bebedeira, no carnaval da quarta feira. Saudades do seu ombro amigo, onde eu ainda sonho, choro e rio… Por falar em Rio, os dias tem se arrastado aqui, não sei se pelo calor ou pela agonia, e fico pensando até quando conseguiremos ficar assim, cada vez mais distantes. Será como um fio que vai se esticando, até se romper? Creio que sejamos maduros demais para isso.

      Talvez esta carta fique longa, ou não. Tudo escrito à mão, como de costume. Sei que já te mandei tantas cartas, que mais pareciam bilhetes, mas caso esta não se estique nas palavras, assim será em seu pensamento; como tudo que em ti arrancha, sei que se arranja. Tantos anos e você nunca me perguntou por que só faço manuscritos. Agora deu vontade de contar, ainda que não queira saber. É só pular esta parte da carta, e será como se ela aqui nem estivesse.

      Quando eu era adolescente, adorava subir ao sótão da casa da minha avó, por lá eu encontrava coisas inimagináveis, pelo menos para uma garota. Fosse aquela casa uma pessoa, o sótão seria a sombra da sua alma. Certa vez adormeci por lá sobre uma poltrona velha enquanto investigava uns cacarecos. Não sei se por estar ali, mas naquela tarde sonhei ser um pássaro, voava, subia e sumia no céu, uma sensação única! Voltando para casa do sonho que não era a da minha avó, fui fazer um poema, e já sentada à escrivaninha do meu quarto com a cabeça cheia de luz, vi que minhas asas não me deixavam pegar o lápis ou coisa alguma. Aquilo me deu uma aflição medonha! Era o preço da liberdade do voo. Nunca mais eu poderia escrever. Eu lembro quando acordei, suada, o coração disparando. Esse pavor das asas não me deixarem escrever, uma sensação que nunca esqueci. Você vai me achar uma tola, e deve rir disso, mas desde aquele dia eu resolvi que não escreveria com máquinas ou coisas do tipo. É tudo muito curioso em nossa civilização, todo ano aparece algo mais moderno, mas fato é que minha mão se tornou a definitiva asa, onde alcanço meus voos.

      Me dá uma angústia pensar que provavelmente anteontem você estava a derramar essas palavras para mim, que acabei de ler ainda há pouco e me levam a te entregar estas, que estarão em breve a adentrar seu espectro, e talvez produzir sua resposta que me será endereçada. Estou para te dizer que até as suas cartas parecem letras de música, ou vice-versa.

      Meu querido, eu tenho medo do futuro, pois ele guarda um lugar onde nossas palavras são tão antigas, que talvez nem existam. Sempre tento omitir, negar aos demais esbanjando meu olhar pleno e sagaz que você tanto adora, mas você sabe o quanto sou ansiosa. São as coisas que fico imaginando… Qual será o destino das nossas cartas, depois que elas forem lidas (inclusive esta)? Da última vez você demorou a responder, e conheci um silêncio que protagonizou mil anos em poucas semanas. E se alguma de nossas cartas se restasse perdida aguardando a luz dos nossos olhos? Seria como a posta restante ou como a de algum pirata do velho mundo, lançada ao mar dentro de uma garrafa.

      Quem há de saber que somos nós a tentar desatar nossos nós? A gente se distancia, nessa tentativa de desenrolar um fio emaranhado, cada um vai segurando de um lado. E se eu te digo que quanto mais se estica, mais justos ficam os nós, vem você me falar que é depois disso o momento em que o fio se parte, nos desatando um do outro. Eu me embaraço por estarmos tão perto para as pernas e tão longe para as ideias, ou talvez fosse o contrário.  Mas até que trocando cartas dentro de uma mesma cidade, ainda somos dois loucos, como um dia fomos. Essa ideia foi boa, pois as paredes têm ouvidos, e ainda que não tivessem.

      Será o futuro um quarto escuro como se diz por aí, onde hão de encontrar um dia meus poemas guardados, minhas coisas secretas? Conhecerão meus mistérios desconhecidos por mim… Alguém bem sabido de psicologia! Imagine!? Eu fico mesmo muito aflita…

      Ai, eu danei a escrever, pareço doida usando letras, pontos e vírgulas como se remédios fossem… e são. Sei que você é um degustador das palavras. É como uma palma da mão recheada de linhas e entrelinhas diante o olhar feiticeiro de um cigano. Você é meu amigo do peito, eu fico por vezes ali na sala a observar nossas fotografias e noto o jeito de candura com o qual você sempre me olhou… Confesso que algumas já estavam emborcadas, mas a espera me fez ergue-las de novo. Eu não quero que nenhuma das nossas palavras se perca, nem as ludibriosas.

      Sinto-me só, e de certo modo gosto. Me pego falando sozinha, cantando pela casa vazia, e até assoviando. Você se lembra de quando tentava me ensinar a assoviar? Agora todo som que não encontra colisão em teu corpo, ecoa por um espaço de tempo tão curto, que toma minha atenção pelo resto do dia.

      Nesta semana fui procurar por um vestido que já não uso há algum tempo, e me deparei com aquela sua bermuda preta num canto do guarda-roupa. Deu pra sentir seu cheiro. Eu digo que o que mais me preocupa é o tempo… é ele quem vai arrancando o cheiro e o gosto das coisas, assim como do corpo, todos os sentidos… Vagarosamente ele também vai levando as lembranças da mente e os sentimentos do peito, para que não possamos nos dar conta. E ainda permanecemos aqui na demora do sopro de uma vida inteira, pela urgência do “quem sabe”.

      Será que temos a mesma calmaria de uma praia sem ondas? A gente que é aqui do Rio, fica a olhar por demais o horizonte azul… Mas eu reparei que, de longe, todo mar é calmo… Você viu que a maré tem subido silenciosamente? Outro dia me lavou os pés já no calçadão. Eu li uma matéria no jornal que falava de algumas cidades litorâneas do mundo diminuindo de tamanho.

      Desta vez não esperarei por respostas. Se não puder me mandar uma carta, pode ser um retrato, um poema, o que você quiser, quando, e se sentir vontade. A expectativa é o mal do milênio. Há coisas que nem são coisas, não cabem em linhas ou entrelinhas, são de uma beleza tão leve e delicada, que viajam no tempo, ficando ali suspensas no ar, no aguardo de algum suspiro distraído… então, desculpe-me se não falei de amor, é que ele dispensa palavras.

      Um grande e apertado abraço, já que os beijos nunca são para sempre.

cartas envelopes

 

 

 

 

Futuros Amantes

Chico Buarque/1993

Não se afobe, não
Que nada é pra já
O amor não tem pressa
Ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário
Na posta-restante
Milênios, milênios No ar

E quem sabe, então
O Rio será
Alguma cidade submersa
Os escafandristas virão
Explorar sua casa
Seu quarto, suas coisas
Sua alma, desvãos

Sábios em vão
Tentarão decifrar
O eco de antigas palavras
Fragmentos de cartas, poemas
Mentiras, retratos
Vestígios de estranha civilização

Não se afobe, não
Que nada é pra já
Amores serão sempre amáveis
Futuros amantes, quiçá
Se amarão sem saber
Com o amor que eu um dia
Deixei pra você

FUNÇÃO DE AMOR

Tenho procurado aqui – rabiscando ensaios e arriscando contos – lançar meu olhar sobre a arte buarqueana. Desta vez, a liberdade que toda obra artística proporciona ao destinatário que dela se preenche, me fez imaginar que “Futuros Amantes” bem poderia ser uma carta, em resposta a outra que chegara às mãos do eu lírico que entoa a canção. Uma troca de correspondências de quem finalmente aguarda ser correspondido. É um salto um tanto quanto inusitado no desdobramento sensorial que a música proporciona.

“Futuros Amantes”, gravada em estúdio para o disco “Paratodos”, de 1993, também foi interpretada pelo Chico em shows devidamente registrados. “Chico ao vivo” (CD de 1999), “Carioca ao vivo” (CD e DVD de 2007), “Na Carreira” (CD e DVD de 2012) e “Caravanas” (CD e DVD de 2018).

A canção de ritmo inebriante, tal sopro de primavera a beira-mar, apresenta diversas e sutis camadas de linguagem no poema musicado, remetendo a muitas imagens que saltam da música para a realidade. A ânsia, o silêncio, os guardados, e os tão bem guardados que passaram de escondidos a esquecidos, a posta restante (hábito desconhecido nos tempos de hoje), a cidade maravilhosa, ainda que submersa, os escafandristas, os sábios, retratos, poemas, vestígios, as cartas, mentiras… lá está tudo, se não submetendo o amor, a ele submetido.

Quando aí mergulho, nem tão bem paramentado quanto o sujeito a bordo do escafandro, vislumbro a cena deste explorando um Rio, que agora é inteiro do mar. Ávido por possíveis estranhezas de um povo que se restou antigo, ele vaga pela casa, vai rumando o quarto, conquistando coisas que desnudam almas. Não satisfeito ele flutua até o sótão, um vão de memória e sentimento, de onde só se pode fugir escorrendo através da escadaria, ele se dá conta de que, se nos desvãos era onde se sonhava, a casa seria onde se vivia, e o porão onde se morava. É uma metáfora inconsciente que surge, a tentativa de o mergulhador adentrar na história e nas emoções daqueles, que, no passado, viveram suas vidas com a expectativa do amor. Munido de liberdade me arrisco também num rabisco da cena: o escafandrista avista a descida e se lança para o que sugere o caminho de volta, agora, porém, com tamanha bagagem, que jamais lhe permitiria voltar ileso ao seu estado sonhador.

escafandrista na escada

Imagino também cenários de um trabalho da ciência com seu pragmatismo, visando conseguir dados reais (os vestígios buscados pelos exploradores), sendo depois submetidos à análise dos sábios (pesquisadores, professores, filósofos), em suas tarefas subjetivas de atribuir sentido aos objetos encontrados. Sentido este, sobre tais coisas, extraído de estudo tão aprofundado, que correlacionado a outros dessa mesma civilização, sofreria equivocada mutação, transformando cartas, poemas, retratos… em mentiras. Então ali, toda essa certeza que gravita o estudo e a ciência, é estranhamente submetida ao que levita. Paira suspenso no ar, vai enganando todo saber, sublima despercebidamente, transpondo cada camada atmosférica, chegando então a ser aduzido pelo suspiro, tomando qualquer par de pulmões recheado com um coração apertado – o amor! Assim como os sonhos, essa matéria, de nós mesmos é tão própria, que de nós se apropria. Tal como Shakespeare entendia, feitos da mesma argamassa que compõe tanta realidade (“Nós somos do mesmo tecido de que são feitos os sonhos”, minha tradução livre de “We are such stuff as dreams are made on”Próspero, na Cena I do Ato IV de “A Tempestade”).

Chico ainda nos traz a dubiedade ao utilizar o termo “quiçá”, e incuráveis que somos, cremos que seja fato certo – e não provável – que os futuros amantes se valerão daquele amor pairando no ar, numa espécie de ampliação da lei da conservação da matéria, pensada no século XVIII pelo pai da Química, Antoine Lavoisier, tão conhecida por todos: na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Estaria então a mais nobre das substâncias do ser, emoldurada na metafísica dessa fórmula. E foi assim, fazendo arte, especificamente esta, que Chico vestiu suas asas, catou seu arco e fincou em todo peito uma flecha, tal como um homem fez certa vez com sua bandeira na lua. Nesta música, a tão sonhada imortalidade do amor é reafirmada, só que desta vez, sob uma perspectiva jamais pensada, e por sinal bem mais digna de credulidade.

Com a palavra o próprio Chico, no registro feito no DVD “Chico Buarque Romance” (2006), o sétimo DVD da série com a retrospectiva do trabalho do artista:

“Essa música eu tava mexendo no violão, comecei a fazer a melodia, e aí a primeira coisa que apareceu foi exatamente ‘cidade submersa’, isolada de tudo, porque cantarolando parecia … cidade submersa… parecia que a música queria dizer isso, e eu tinha que ir atrás depois, tinha que explicar essa cidade submersa, tinha que criar uma história. Apareceu exatamente a cidade submersa antes de qualquer outra coisa. Aí eu coloquei esses escafandristas e esse amor adiado, esse amor que fica pra sempre, essa ideia do amor que existe, assim como algo que pode ser aproveitado mais tarde, que não se desperdiça, passa-se o tempo, passam-se milênios, e aquele amor vai ficar até debaixo d’água, e vai ser usado por outras pessoas, o amor que não foi utilizado, porque não foi correspondido, então ele fica ímpar, e fica ímpar pairando ali, esperando que alguém apanhe e complete a sua função de amor”.

CHICO FALA COMO SURGIU “FUTUROS AMANTES”