EU NÃO SEI
Tão logo Anne se aproximou trajando um vestido preto, desferiu-lhe um beijo como se fosse um tiro. Seu alvo era Carso, mas ele não se dava conta disso; também… pudera! “O amor pode nascer de uma simples metáfora”, foi o que veio à mente dele, sentindo-se preso naquele instante. A imagem que, involuntariamente, lhe ocupara a cabeça foi a do próprio velório, onde a tudo enxergava e ouvia. Ali estava Anne, sua viúva, cobrindo-o com os olhos de carregar lágrimas, e aquela boca de escapar o pequeno sorriso no canto. Isso o angustiou.
Carso acabara de ler “A Insustentável Leveza do Ser”, de Milan Kundera. A parte que mais lhe impressionou no livro foi a cena na qual Tomas, que jamais se envolvia com alguém, passou a noite com Tereza, e após aquela madrugada de amor, ela teve um acesso de febre. A partir dali ele sentiu um amor inexplicável por ela… Carso guardou dois trechos do livro que lhe impactara: “Tinha a impressão de que se tratava de uma criança que fora deixada numa cesta e abandonada nas águas de um rio para que ele a recolhesse na margem de sua cama”… “Tomas não sabia então que as metáforas são uma coisa perigosa. Não se brinca com as metáforas. O amor pode nascer de uma simples metáfora”.
Afrontada pela beleza de Carso, Anne jamais esqueceria aqueles olhos de luz intensa. E foi a partir de tal despeito que ela concedeu a ele uma atitude de desdém, só para colher seu desconserto; tudo proposital. A performance teatral cresceu com ela e dentro dela. Nunca esqueceu quando chorou e ouviu pela primeira vez sua mãe gritar “vê se não faz fita!”, ao perceber que era fingimento da filha, pois havia um sorriso de canto na boca da menina. Naquela noite Anne não conseguiu dormir, imaginava-se presa na torre de um castelo, sendo obrigada a costurar intermináveis fitas de tecidos na cor vermelha, que se amontoavam no pequeno quarto de tear. Faz fita, mais fita! Era só o que lhe vinha à mente. Foi preciso a mãe, alguns dias depois, ao notar que seu apetite desaparecera, explicar que “fazer fita” era uma forma de dizer que alguém está fingindo, representando uma cena. A expressão decorre do formato redondo do rolo a guardar a película cinematográfica, e dali se puxa a ponta do filme para encaixar na máquina de projeção, então se tem a fita do filme. Fazer fita, fazer cinema, interpretar.
Depois do alívio de Anne, ao afastar o angustiante sonho de sua prisão no castelo a costurar, ela passou a caminhar mais esguia, descobrira seu talento de ser fingidora. As amigas notaram, e quem não se dava conta, pura e simplesmente, sentia seus ares da graça. Ela só não fazia propriamente a fita do cinema mesmo, mas sabe-se lá até quando, seguia chorando e um sorriso guiando. Apenas quem a conhecesse, feito sua mãe, notaria o leve dobrar do canto da boca a indicar isso. A mãe nunca revelou, mas se via participante, até certo ponto, do que aparentava uma “dupla personalidade” da filha, a constante alternância entre o riso e o choro, a comédia e a tragédia, como as máscaras do teatro. Tudo se deu porque o pai queria registrá-la como Ana, mas a mãe achou comum demais, e decidiu chamá-la de Ane. Não satisfeita, no momento do registro ainda achou por bem colocar dois “n”, Anne, o que para ela influenciou a filha a ter esse talento natural da representação na vida como se fosse um palco.
Todos querem saber a história do próprio nome. Até a adolescência Carso desconhecia a dele, quando o pai lhe disse, orgulhoso, que significava fazendeiro, sendo uma homenagem aos antepassados da família e suas vastas terras em Minas Gerais. Ele não se identificava e jamais conviveu com esses possíveis bisavós donos de latifúndios. Desde aquele dia, Carso não se conformou até encontrar a exata procedência de seu nome. Em momento particularmente feliz, descobriu que vinha dos primitivos povos germânicos, uma origem teutônica, e na verdade queria dizer lavrador. Desde então ele fez as pazes com o próprio nome, e se imaginava sendo um antigo lavrador da terra. Essa convivência com o nome, tão inerente à sua vida, passou a merecer a meditação se ele de fato soava estranho. Depois de perceber o sorriso no canto da boca de Anne, mesmo com o ar grave de seu beijo sem cortesia, imaginou que ela poderia ter achado seu nome engraçado, daí o discreto levantar do lábio, quase imperceptível.
Quando se encontraram noutra situação, Carso perguntou diretamente, sem rodeios: Você achou meu nome engraçado? Ela, exalando a indiferença, respondeu com outra pergunta: Como você se chama mesmo? O que o assustou não foi a tática de desinteresse, mas a maneira como ela disse aquilo… aérea, como se estivesse fora de si. Ele explicou pausadamente, aguardando a reação dela, que continuava distante: Significa lavrador, o homem que conhece os desejos da terra e a fecunda com muitas sementes em seu ventre. Ela lançou um olhar enigmático, ele podia jurar que um arrepio brotou de seu corpo, diante daquelas palavras, soltas num impulso. Ele não premeditava, e sua voz grave encantava as mulheres. Rapidamente, porém, Anne se recompôs na indiferença.
Foi nesse pensar do quão difícil era decifrar os sentimentos daquela mulher, que a metáfora retornou à sua mente, aquela do primeiro encontro, o beijo sem ternura e o próprio velório. Carso sabia, naquele instante em que a reencontrou, que a amava de tal maneira que nunca conseguiria se desvencilhar de alguém, cuja eterna dúvida era de quem ela seria, tanto no sentido de ser, quanto no de ter. Começo e fim. As duas palavras lhe foram praticamente lançadas em forma de sentimento. Começo de um romance e fim de mim mesmo se não estiver com ela; ele formulou rapidamente esses pensamentos. Ao lado dela sempre haverá ambiguidade, a oscilação de certezas antagônicas, quando não a do desejo latente, a de total apatia. Ele mergulhou nesse indescritível sentimento de plenitude e vazio, já que partir daquele dia, ele não mais saberia viver sem ela.
A alternância, a partir dali, seria a companheira fiel de Carso, porque a convivência com Anne obedeceria a um roteiro como se fosse algum filme, a bordo duma gangorra de emoções, brincando de pendular entre certezas e dúvidas. Mas por mais imprecisa que ela fosse, ele estava certo de que a precisava, e conhecendo o quanto bem ela fazia ao seu coração, jamais a deixaria ir embora. A confusão era leve, mas constante, dizia que ela jamais seria de alguém; mas pensava se nem mesmo dele. A liberdade parecia-lhe nata, como se nela entranhada, de corpo e alma. Nem em silêncio, escondido sozinho, ele ousaria afirmar que ela de fato o amava, porque ela saia de si assim, de repente, quando menos se esperava. Anne fazia parecer que se preparava para ele, ora soltando os cabelos, ora se atirando lânguida na cama. E Carso? Se via flutuando rumo a um desconhecido, porém, desejado céu.
Ele ficava ali petrificado, diante o olhar fulminante de Anne, temendo repreensão, desejando submissão, mas acreditando estar acidentalmente no rumo de um transe. Ela merecia os aplausos de Carso, e tantos pedidos de desculpas por parte dele ela insinuasse, ele a pediria, só para não ir embora.
O que Carso não sabia – aliás, ninguém sequer adivinharia – é que Anne o amava de maneira absolutamente completa. Ela suspeitava do olhar de dúvida a saltar dos olhos luminosos dele, e não refletia nenhuma certeza. Quando se jogava na cama, Anne mergulhava como se profundamente, numa entrega ao abismo da paixão, tudo de maneira tão teatral, que aquele lance era exatamente para que ele percebesse que ela, a ele pertencia.
Com o tempo ela foi compreendendo que seus gestos causavam um olhar de espanto nele, a insegurança era evidente. E de fato, para ele, tanto o choro quanto o riso dela, eram brincadeiras especialmente excitantes, poupando algo que se abriga entre as sensações e as expressões. Em determinado momento, após ele sugerir timidamente a suspeita de que Anne carregava uma pedra dentro do peito, a ocupar o lugar sagrado de seu órgão vital, ela deu-se à indignação, jurando o contrário. Mas se depois de presenciar a reação dela, o olhar dele permanecia a boiar, no instante seguinte era daqueles olhares que agitam, denotando para além da presença de um coração; era latência, como se diz de um coração inflamado pelo desejo.
Anne, naquele momento, ficou a imaginar se Carso também não fazia fita, incorporando algum cavalheiro no grande estilo masculino, de não deixar transparecer as emoções mais íntimas.
Foi nesse cenário que ela se deu conta do quanto estava ligada para sempre a ele. Anne jamais leu Milan Kundera, não sabia que o amor pode surgir de uma metáfora, mas naquele dia viajou de volta à infância, ao castelo no qual fazia intermináveis fitas coloridas, a se espalhar pelo chão, e viu a imagem de um príncipe de exuberantes olhos chegar até ela, de modo repentino, a envolver os dois com aquelas fitas, de tal modo que passaram a ser um só, embrulhados num tecido cujo suor embebeu e descoloriu as metragens coladas em seus corpos. E foi naquela mescla das peles retintas, que ela entendeu da fita de ambos, um para o outro, mas também consigo, num espetáculo cotidiano de certeza e dúvida. E o que é o amor senão o talvez acompanhado do sim?
Ela Faz Cinema
Chico Buarque/2006
Quando ela chora
Não sei se é dos olhos para fora
Não sei do que ri
Eu não sei se ela agora
Está fora de si
Ou se é o estilo de uma grande dama
Quando me encara e desata os cabelos
Não sei se ela está mesmo aqui
Quando se joga na minha cama
Ela faz cinema
Ela faz cinema
Ela é a tal
Sei que ela pode ser mil
Mas não existe outra igual
Quando ela mente
Não sei se ela deveras sente
O que mente para mim
Serei eu meramente
Mais um personagem efêmero
Da sua trama
Quando vestida de preto
Dá-me um beijo seco
Prevejo meu fim
E a cada vez que o perdão
Me clama
Ela faz cinema
Ela faz cinema
Ela é demais
Talvez nem me queira bem
Porém faz um bem que ninguém
Me faz
Eu não sei
Se ela sabe o que fez
Quando fez o meu peito
Cantar outra vez
Quando ela jura
Não sei por que Deus ela jura
Que tem coração
E quando o meu coração
Se inflama
Ela faz cinema
Ela faz cinema
Ela é assim
Nunca será de ninguém
Porém eu não sei viver sem
E fim.
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CINEMA
O conto “Eu Não Sei”, de minha autoria, inspirado na canção “Ela Faz Cinema”, é mais um exemplo das amplas possibilidades da arte buarqueana, considerando as intermináveis camadas de linguagem discretamente pontuadas nos versos das letras musicais, tanto os mais acessíveis quanto os subterrâneos.
Há versos que geram de imediato uma imagem do contexto da canção, como os que falam da desconfiança do eu lírico quanto ao bem querer de sua amada. Todavia, constam também ali versos enigmáticos, a sugerir outros subtextos; basta lembrar os que dizem que ela nunca será de ninguém, e ainda assim faz ao eu lírico um bem que ninguém faz. Outras sutilezas escondidas são colhidas ao se descobrir que em determinado ponto, revelam referências à passagem inicial do conhecido poema Autopsicografia (O poeta é um fingidor / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente), de Fernando Pessoa. É quando o eu lírico da canção diz que ela mente, mas não sabe se ela deveras sente o que mente para ele.
Além disso, a música é repleta de metáforas. Ela vestida de preto a dar um beijo seco no eu lírico, como se o findar daquele relacionamento, fosse para ele o fim da própria vida. Noutras passagens, há indicações envolvendo a sensualidade, como na figura do coração dele que inflama, uma sutil referência à excitação masculina.
Outro aspecto de destaque na música é o uso das palavras, em interessante gangorra de emoções – tal o sentimento do eu lírico em suas certezas e dúvidas – pois há uma alternância nos versos entre afirmações (quando / ela faz / sei / não existe / prevejo / nunca) e incertezas (não sei / ou / talvez / porém).
A estrutura narrativa também se iguala a um filme, já que o pano de fundo da história é a possível interpretação de sentimentos de alguém que parece agir como uma atriz, a “fazer fita” (expressão explicada no conto). O início é dramático, com um choro, passando por diversas “cenas” ao longo da canção de momentos entre o casal, como se fossem tomadas cinematográficas nas quais podemos visualizar esses instantes (ela soltando os cabelos, saltando na cama, mentindo, dando um beijo seco, pedindo perdão). No final, a música termina exatamente como se encerra uma película cinematográfica, com a palavra FIM.
Em estilo bossa nova, o samba “Ela Faz Cinema”, logo de início, se mostra contagiante na introdução musical, e somos levados assim por todo o percurso da canção com sua estrutura de iluminada cadência, nos induzindo a ouvir de novo e sempre. A produção musical é do maestro Luiz Cláudio Ramos, responsável por todo o disco “Carioca” (2006), e que também toca violão nessa faixa, juntamente com os músicos Jorge Helder, no Baixo Acústico; João Rebouças, no piano Fender Rhodes e teclados; Wilson das Neves, na Bateria; e Marcos Suzano, na programação e percussões.
Aliás, o disco “Carioca” se fez acompanhar de um relevante registro das gravações e conversas sobre as músicas que o compõem, um documentário em DVD, denominado “Desconstrução”, dirigido por Bruno Natal. Ali sabemos que Chico elaborou uma música sobre as atrizes, falando de seus olhos infantis, quando morava em Paris e pela primeira vez viu mulheres nuas na tela do cinema, pois essa música faria parte de um dos programas elaborado por Roberto de Oliveira, filmado em Paris, da série de documentários a respeito da obra de Chico Buarque. Todavia, o próprio Roberto de Oliveira queria mais uma música sobre atrizes, dessa vez para inserir em outro programa que ele preparava, sobre cinema. Chico argumentou que já fizera a música sobre as atrizes, mas ele insistiu muito, daí ele compôs “Ela Faz Cinema”, cujo nome da canção se firmou no estúdio de gravação, após ele perguntar ao Roberto: “Faz Cinema ou Ela Faz Cinema? O que você prefere?”, ao que ele disse: “Eu acho Ela Faz Cinema mais bacana”. “Então está batizada! Ela Faz Cinema”, sentenciou Chico.
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