BRINCANDO, GOSTANDO DE SER
Essa é daquelas lembranças cujo esquecimento desconhece. Alguns de nós estávamos lá boquiabertos, com nossos sentidos munidos de aplausos arrebatados, compondo o mais que respeitável público. Como o descortinar de um palco que revela grandioso elenco, surge em 1981, Almanaque; disco de Chico Buarque.
O deslumbramento começa ao observar aquela capa, em seu recado para muito além do estético, a pautar os anos 1980; estávamos saindo dos psicodélicos anos 1970 com suas luzes e discotecas, a roupa espalhafatosa, calça de barra alargada, cabelos longos, medalhões pendurados no peito. A colorida década de 70 refletia o momento da pós-euforia gerada pela libertação em movimentos políticos e culturais dos anos 1960, retratada pela simbologia dos hippies.
Por lá, final dos anos 1970 e início dos 1980, a plataforma veiculadora da música era o disco de vinil, sucedido nos anos 1990 pelo CD (compact disc), chegando por aqui com o streaming de agora. Assim, a pretensão de ouvir determinada música, antecedia uma prática ritualística, já que qualquer descuido afetaria a vida útil do disco.
Era preciso colocar com cuidado a agulha da vitrola por sobre os sulcos que formavam aquela prensa de acetato, a chamada bolacha ou LP. A sigla refere-se à expressão long play, para diferenciar do compacto simples – disco de vinil com somente uma ou duas músicas de cada lado –, geralmente vendido como prévia antes do lançamento do LP.
O gesto brusco perpetuaria ali uma ranhura, deixando o objeto marcado feito um dorso para sempre tatuado, uma linha, que assim como as linhas das mãos, traça um destino, neste caso, o da inutilidade do disco, tornando-o inaudível. A bolacha, de doce, passaria a amarga.
Um long play era, de certo modo, um artigo de luxo, sendo sua aquisição natural para poucos, deleite para alguns, e sonho para tantos. Quando se lançava um vinil no mercado, os que podiam comprar, após a aquisição na loja, caminhavam em direção à casa, antevendo a tarde que seria de descobertas de novas músicas.
Enquanto o disco tocava na vitrola, acompanhava-se tudo pelo encarte, tanto as letras das canções quanto elementos sobre a gravação: direção, produção, arranjos, músicos… O devoto do LP ficava ali enredado na música tocada no aparelho de som, mas também no manuseio do encarte e na leitura daquelas informações. O degustar da bolacha era enfim, uma experiência sensorial tripartida entre o tato, a visão e, claro, a audição; especialmente saborosa, mas bem abstraída do paladar.
De início, há aqui dois convites de embarque, o da saudade e outro da vontade. Ao leitor que experimentou essa época, concede-se uma viagem no tempo rumo à lembrança. Naquele que não a vivenciou, conceba-se um vagão que transita no espaço etéreo, o da imaginação. Em seguida iremos à trilha de uma música concomitantemente nostálgica e moderna, daí algo de seu magnetismo. Permita-se, e boa estada.
Chico Buarque, o mesmo que revelou seu universo de arte ao Brasil nos anos 1960 com o sucesso de A Banda (1966), fortalecido pelo teor de lucidez de suas músicas nos doídos anos 1970 da repressão política e social no período militar, chegava aos insondáveis anos 1980, sem se saber o que viria.
Porém, como artista sempre à frente de seu tempo, Chico já apontava, em seu disco Vida (1980), a primeira escavação nesse túnel da modernidade em ritmos de uma música brasileira que parecia clamar por uma sofisticação – até por homenagem a Tom Jobim – e ao mesmo tempo de uma sinceridade cotidiana quanto às letras. Tínhamos ali o preservar da felicidade em tempos difíceis (Vida), a diferença entre iguais no amor (Mar e Lua), a troça no salão de gafieira regado a suores e embebido em ciúmes (Deixe a Menina), dentre outras percepções de um Brasil autêntico naquele disco inaugurando a década de oitenta.
Eis que chega, logo após Vida (1980), o disco Almanaque (1981). Imaginemos essa cadência. Apreciar o trabalho da arte de capa feita por Elifas Andreato, colher o long play de sua zelosa capa, ler o encarte recheado de informações, ironias e preciosidades, tudo bem bolado pelo próprio Chico Buarque, juntamente com Elifas, além de desenhos do caricaturista Miercio Caffé.
Antes mesmo de entregar o disco à vitrola, num silêncio preparatório do que viria, convém consumir um deleitoso tempo a fuçar tantos detalhes naquele trabalho valioso, nos deixando levar a um cenário de feitura dos almanaques, como ali mesmo consta, um “Magazine Annual Ilustrado” e suas informações, anedotas, ilustrações e charadas, além do calendário de 1982, encimado com os olhos cor de ardósia do artista.
Depois de percorrer esse caminho, seja com os pés no chão da memória, seja com a cabeça aérea da ilusão, é o momento de sacar a bolacha preta de seu armazenamento de proteção que faz um barulho bem característico, quase como quem abre um bombom e o plástico farfalha numa previsão de gula. Com cuidado se coloca o LP entre as mãos esticadas, comprimindo somente as laterais, para não manchar com os dedos os caminhos circulares do que se transformará em som. E… pronto! Disco pousado no centro do prato que começa a girar, o braço da agulha é movimentado, dando início à viagem pelo novo disco do Chico.
Se a surpresa fosse gente, aquilo seria a sua voz. Um susto sonoro, isso foi o que me marcou no início de As Vitrines, a primeira música do LADO A do LP. Eu não consegui identificar aquele estranho som. Foi como se estivesse diante o mar que lá vinha crescente e inevitável engolir minha base para recuar me chamando. Era o anúncio da gama de cadências musicais por vir. Algo rápido, como o rasante de um avião rompendo qualquer barreira de som a preparar os tímpanos. Não sei o que era aquilo, um misto de cortinas abrindo (essa foi a imagem que me veio), o anúncio de uma história como se faz num filme (o famoso rufar de tambores e sopros nas aberturas de filmes da 20th Century Fox também passeou pela minha cabeça).
Era especial demais para ser descrito como um som não identificado, rápido e certeiro. Mas poderia ser simplesmente como a onda, crescente e depois decrescente, que assim compõe a imensidão do oceano inteiro. O encarte me diz que o efeito sonoro veio de um sintetizador utilizado nos anos 1970, chamado de mini-moog, operado por Zé Roberto Bertrami. Curiosamente esse sintetizador foi produzido somente até o ano de 1981, justamente o do lançamento do disco.
Então essa introdução representa o fecho de uma época, a dos anos 1970. Era o anúncio dos anos 1980 que finalmente chegava, não somente com a novidade do estilo musical, mas com o formato totalmente inusitado, e assim era a nova década anunciada já na primeira música: As Vitrines.
Após essa introdução atípica, desse elemento sonoro do mini-moog, surge a voz do Chico, de uma evidente calma: “Eu te vejo sumir por aí”… adornada pelo baixo de Novelli e a bateria de Paulinho Braga, depois o marcante violão de Hélio Capucci, mais adiante a guitarra de Hélio Delmiro, tudo entremeado pela percussão de Sidinho Moreira, e ao fundo a maravilha de cordas de vários músicos (identificados abaixo na imagem); além do luxo do piano de Francis Hime, responsável pelos arranjos da música.
“Te avisei que a cidade era um vão”… é a continuação de um passeio imprevisível, pois logo após se desenha aparente diálogo ou advertência sem qualquer retorno. Os travessões na letra da música indicavam que de fato alguém estava a falar “-Dá tua mão / -Olha pra mim / -Não faz assim / -Não vai lá não”. Eu já não sabia se a súplica era de um ou de vários, àquela destinatária da letra… ou ainda daquela que inspirara tudo, ao seu vigia, na tentativa de desarmar seu ciúme. Era um início musical no mínimo desconcertante, de estética lírica surpreendente.
Considerando a realidade dos anos 1980 e de certas expressões utilizadas naquele contexto, me parecia que o homem dizia à mulher que não deveria ela ir ao centro da cidade, avisada das armadilhas e assédios. Tais versos com travessões indicariam outros homens dizendo a ela, quando de sua passagem pelo vão no qual seu homem a viu sumir… ele a acompanhando de longe sem ela saber, andando pelas calçadas, quando de repente a mulher ingressa num desses vãos: uma galeria.
“Os letreiros a te colorir / Embaraçam a minha visão”. Aparecem os letreiros a colorir aquela a quem se olha, e a partir daí tudo se desenvolve entre corredores, vãos, vitrines, elementos de uma típica galeria do Rio de Janeiro. A galeria era a antecessora do shopping center.
“Eu te vi suspirar de aflição / E sair da sessão, frouxa de rir”. A meu ver, a sessão da qual ela saía não era a de cinema, e sim de terapia. É pouco provável que a palavra sessão diga respeito a um filme; geralmente as galerias só têm lojas, e em cima delas, um prédio com salas comerciais e escritórios, cujo acesso se dá por escadas e elevadores, dentro da galeria. Nos anos 1980, época da feitura da canção, se falava muito em sessão, quando alguém se referia à sessão de terapia. Atualmente se fala só terapia, mas isso é hábito de pouco tempo para cá.
O fato de ela estar aflita, antes de falar com o psicólogo ou psicanalista, e depois sair aliviada, parece encaixar na cena do voyeur que a acompanha e a observa, ela agoniada se dirigindo para o setor de salas e escritórios, pelo elevador ou escadas, ele aguarda, e após a sessão, percebe quando ela retorna à galeria.
Aos olhos dele ela deveria parecer apenas tranquila e serena após sua “análise”, mas ela está um pouco mais do que isso, frouxa de rir… talvez pelo prazer que experimentasse ali, talvez pela sensação de ter corrido tudo como planejado, já que ela teoricamente desconhecia o maior deleite de seu vigia.
A música então dá uma guinada, não somente melódica, mas no estilo dos versos, e esses novos que se anunciavam, ficariam em mim, desde a primeira escuta, como os mais marcantes e representativos de algo diferente naquela canção: “Já te vejo brincando, gostando de ser / Tua sombra a se multiplicar”… nesse instante, a música assume outro tom, parte para outro caminho musical, diferente do pautado até então na canção. A sombra que se multiplica é decorrente das luzes vindas das vitrines, a parte mais iluminada da galeria, mas é possível identificar nesse verso a multiplicidade da personalidade da mulher, com suas diversas formas de agir, na oscilação do humor: suspirando de aflição – frouxa de rir. Aquele lado dela, que a princípio estava escondido dele, nas sombras, acabara de se desdobrar para mais uma vez satisfazê-la e cismá-lo.
“Nos teus olhos também posso ver / As vitrines te vendo passar”… como é possível ver nos olhos de alguém as vitrines vendo essa pessoa passar? Seria um flerte consigo, ou ainda entre aqueles que apelidaram seus olhos de vitrines, espaço por onde se expõe e oferta algo? Sim, nesse caso os sentimentos, já que os olhos não mentem. Estariam aqueles ali, efusivos, como vitrines abarrotadas, aguardando pela reciprocidade. Os olhos que saíram de casa opacos, agora brilhavam?
Fato é, que quando ouvi pela primeira vez esses versos musicados, com eles me identifiquei. Em meus anos de adolescência e timidez, descobri uma estratégia para admirar a beleza feminina. Posicionava-me em frente a uma vitrine, por fora da loja, porque ao lado estava a moça a investigar com os olhos o interior daquele ambiente, visualizando bolsas, sapatos, vestidos; assim eu podia, com calma, olhar o vidro e seu reflexo, deslumbrar-me sem precisar encará-la de frente. Muitas vezes, nessa minha inocente mirada para as vitrines – quando na verdade estava a enriquecer meu olhar com a moça ali tão próxima –, percebia em seu olhar que algo mais a olhava: as vitrines.
Sentia certo ciúme, porque o objeto inanimado e transparente podia encará-la de frente, eu não. Ainda assim, essa frustração não era suficiente para abandonar minha timidez e girar meu pescoço para captar seu perfil. As vitrines sempre ganhavam de mim, eu tinha que me conformar com isso. Aliás, essa é a finalidade das vitrines: vencer. Ao expor de maneira atrativa o que se pode comprar dentro do estabelecimento, surge ali uma espécie de chamada para levar o cliente em potencial ao interior do comércio.
A galeria é uma emboscada a desacelerar o passo apertado do transeunte, e dentro dela outras arapucas surgirão: as vitrines. Elas enxergam quem passa e capturam qualquer um para seu mundo. Chico coloca o artefato como referência maior da canção, não é à toa que o título da música é exatamente o nome do espelhado ser. As vitrines representam um salto em termos de narcisismo.
O Mito de Narciso, por demais conhecido, vem do personagem da mitologia grega que representa o símbolo da vaidade. A lenda fala do belo grego, orientado pelos oráculos a não admirar a própria beleza, sob pena de se ver amaldiçoado, mas isso não evitou que ele se apaixonasse pela própria imagem, ao vê-la refletida no lago. Com a invenção do espelho, esse narcisismo surge na humanidade como segundo salto, pois todos nós passamos a desenvolver nossas vaidades sem limites, a partir da facilidade de nos ver em acessíveis reflexos.
Além disso, observou Fernando Pessoa pela voz de Bernardo Soares no Livro do Desassossego, deixamo-nos de nos curvar para olhar nossa imagem no lago (tal Narciso) e a soberba nos apoderou de vez. Diz o poeta: “O homem não deve poder ver a sua própria cara. Isso é o que há de mais terrível. A Natureza deu-lhe o dom de não a poder ver, assim como de não poder fitar os seus próprios olhos. Só na água dos rios e dos lagos ele podia fitar seu rosto. E a postura, mesmo, que tinha de tomar, era simbólica. Tinha de se curvar, de se baixar para cometer a ignomínia de se ver. O criador do espelho envenenou a alma humana”.
O terceiro salto do narcisismo se dá com as vitrines, pois elas de fato captam o narcisista ao interior do local que serviu de atração (a loja comercial), e refletem a possibilidade de decompor o instinto meramente vaidoso em algo perigoso, por induzir ao consumo desnecessário, transformando a admiração em autoconsumação do inútil.
Primeiro foi a lição de humildade dada pela natureza (para se ver no lago, se curve), depois veio a invenção do espelho a espalhar no dia-a-dia a empáfia da vaidade.
As vitrines nos deslocam da realidade, tornamo-nos presas fácil de sensações exteriores (o clarão do interior da loja, os letreiros coloridos, as mercadorias dentro do estabelecimento), deixamos de observar o outro e a nós mesmos, elegendo como valor maior os objetos, as coisas.
“Na galeria / Cada clarão / É como um dia depois de outro dia / Abrindo um salão”. Eu logo entendi a referência à galeria na canção, como sendo o cenário no qual tudo se desenvolve, porque na minha cidade, Fortaleza, também havia essa espécie de corredor ou passagem que une uma rua a outra, por dentro de prédios e lojas comerciais. As pessoas escolhiam o atalho para chegar mais rápido ao seu destino; todavia, pelo desenho desse verdadeiro passeio público coberto, estreito, pouco iluminado, restavam as luzes das lojas que se enfileiravam por todo seu trajeto, com as vitrines coloridas e letreiros de neon.
Era justamente por isso que muitos esqueciam a pressa, entravam nas lojas e faziam compras. Cada clarão da loja funcionava como um dia depois de outro dia. A armadilha era certeira. Uma teia enredando o andarilho que, de repente, se torna um consumidor de coisas que talvez nem precise. Abria-se o salão da loja, para receber quem pelos corredores passasse.
“Passas em exposição / Passas sem ver teu vigia / Catando a poesia / Que entornas no chão”. Especificamente essa história, gosto de imaginá-la na Galeria Menescal, em Copacabana, por sua simetria e imponência, corredores e vãos a mostrar um tempo que ficou parado no tempo, com elegância e beleza, tal aquela que passa em exposição, a caminhar e roubar a atenção de todos que ali também passeiam.
Ela brinca com os reflexos da própria imagem ao passar pelas lojas, se olhando e adorando o que vê. Enquanto as vitrines a veem passar, ela se dá conta daquele momento despretensioso e feliz. Se antes ela se angustiava com os olhares de quem a acompanhava, agora ela brinca, exalando toda a poesia de sua liberdade e autenticidade. Ela imagina a cena, mas está leve, não se importando com quem venha a colher sua poesia. Aos olhos dele, ela agora carrega um viço curioso, além dos olhos brilhando, a pele radiante; admirá-la é inevitável.
A poesia ela entorna, tão plena em si, que seu pote interno da líquida felicidade transborda, está tudo ali a ficar no caminho, como matéria da qual se fará poema e canção. Ela sequer olha o vigia, mas adora que ele procure de toda maneira captar o momento, já que é um vedor incansável. Nesse instante ela percebe o sentido de tudo. As vitrines, na sua verticalidade de espelho, fazem escorrer as imagens, mas o chão é horizontal, e ali fica a poça da poesia que transbordou.
Saber que o vigia cata a poesia é um aceno para a provável vitória do lirismo por sobre o narcisismo, nesse seu terceiro estágio da prevalência das coisas em relação aos sentimentos. A vitrine a vê passar, chama-a para o interior da loja, confia em seu poder de sedução para que ela se renda aos atrativos materiais. Todavia, ainda que ela assim o faça, o mais importante ocorrerá na galeria. O vigia a vê, recolhe a poesia, que toma nova feição, a de cantiga, cujo título será a advertência para tomarmos cuidado com o tal objeto envidraçado por detrás do qual se expõem mercadorias.
A melhor maneira de interagir com as vitrines é brincando e vendo nossa sombra a se multiplicar; gostando de ser, enfim, nada além de nós mesmos.
As Vitrines
Chico Buarque/1981
Eu te vejo sair por aí
Te avisei que a cidade era um vão
-Dá tua mão
-Olha pra mim
-Não faz assim
-Não vai lá não
Os letreiros a te colorir
Embaraçam a minha visão
Eu te vi suspirar de aflição
E sair da sessão, frouxa de rir
Já te vejo brincando, gostando de ser
Tua sombra a se multiplicar
Nos teus olhos também posso ver
As vitrines te vendo passar
Na galeria
Cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão
SAIR? SUMIR…
“Eu te vejo sair por aí”. Esse é o verso inicial, que consta não somente nos encartes do vinil e do CD, mas no próprio site oficial do Chico (chicobuarque.com.br). Entretanto, em todas as gravações, seja a original em estúdio (1981, no disco Almanaque), seja em show – e foram várias com a inserção de As Vitrines –, Chico jamais falou sair, e sim sumir.
Confesso não ter conseguido, em pesquisas, saber o porquê dessa divergência entre a letra original (sair) e o que Chico resolveu cantar (sumir).
Mas acredito que, se Chico decidiu entoar sumir, essa é a palavra que revela seu sentimento ao cantar. Eu só penso em Fernando Pessoa, pronto para ir à gráfica com seus poemas datilografados (o antecessor de “digitados”) e, de repente o Poeta resolve dar outro nome, ou mudar palavras em versos, que assim ficaram ali, registrados os ajustes à mão, em tinta de caneta, gerando até discrepâncias em publicações ao longo do tempo. Entretanto, algumas mudanças foram decisivas para termos o que conhecemos hoje de sua obra. Por exemplo, o famoso poema Tabacaria, se chamava Marcha para a Derrota, ajustado a caneta quando já pronto. Da mesma forma foi com seu único livro publicado em vida, Mensagem, cujo título datilografado era Portugal.
No caso de As Vitrines, ao falar em “Eu te vejo sumir por aí”, a ação que se desenvolve na música já nos leva para um cenário no qual ela está caminhando na rua, o vedor, o vigia, acompanhando à distância, abruptamente ela dá uma guinada na galeria (quem vem andando pela calçada não consegue ver de longe a entrada da galeria), e, portanto, ela “some”.
Caso o verso fosse “Eu te vejo sair por aí”, isso nos remeteria a um cenário no qual ela estaria saindo de casa, o início da música seria nesse contexto; quando, na verdade, tudo indica que ele já estaria seguindo a mulher, que saiu de casa e está a caminhar pelas ruas, quando inesperadamente adentra o vão da galeria.
AS MUITAS VITRINES
Lembro demais daquele dia em que ouvi, atônito, pela primeira vez, As Vitrines. É uma sensação perene, repetitiva. Desde o mini-moog na introdução fiquei atento, para entender toda a história.
Eu testemunhava naquele instante algo de novo na música brasileira, nos estreantes anos 1980, e nem imaginava, nos meus 17 anos de idade, que estava diante de uma das músicas mais enigmáticas e perenes, em termos atemporais, da obra do Chico.
Não é à toa que As Vitrines foi por ele interpretada em diversos shows, com o registro em CD e/ou DVD (Ao vivo em Paris – Le Zenith, 1990; As Cidades ao vivo, 1999; Carioca ao vivo, 2007; e Caravanas ao vivo, 2018).
O ANAGRAMA
Ao observarmos o encarte do vinil – e também do CD – do álbum Almanaque, veremos o belo trabalho de arte a mostrar a letra de As Vitrines, contendo um espelhamento, com a colocação de todo o poema musicado em quatro ângulos de visão, como se houvesse ali uma vitrine que refletisse as palavras, a constar em seu sentido inverso. O curioso, porém, é que numa dessas projeções, Chico não se limita ao espelhamento.
“Vi tuas fúrias e predileção”. Você não encontrará esse verso na música. Na verdade, ele está em “Eu te vi suspirar de aflição”, só que de maneira transposta. É um anagrama feito pelo Chico, a partir da segunda estrofe, como se fosse outra música.
Anagrama, segundo o Dicionário Houaiss, é a transposição de letras de palavra ou frase para formar outra palavra ou frase diferente. Então com as letras do verso Eu te vi suspirar de aflição, Chico forma outro, utilizando cada letra dali, montando o verso Ler os letreiros aí troco.
Algum significado se pode extrair dessa transposição? Bem, o próprio Chico, em entrevista, ao ser indagado sobre esse anagrama, disse que tudo não passou de uma brincadeira; na verdade os novos versos não teriam qualquer sentido aparente.
OUTRAS VITRINES
A revisora dos textos deste blog, Laura dos Santos Teixeira Dias, tão logo encerrou o trabalho de revisão de AS VITRINES, falou-me de ter escrito há algum tempo um texto sobre o anagrama da música, pois aquele jogo de letras e palavras construído pelo Chico sempre lhe chamou a atenção.
Pedi para ver o material. Fiquei absolutamente surpreso. Eu jamais imaginaria interpretação inusitadamente complexa e certeira como aquela.
E mesmo sendo surpreendente, a narrativa faz todo o sentido em relação ao enredo da canção e seu anagrama, por isso solicitei autorização para publicar neste espaço.
Agradeço à Laura Dias por ceder seu texto para publicação, riquíssimo em estilo e no domínio da língua portuguesa, além de extraordinário em seu conteúdo, a reafirmar as inesgotáveis possibilidades de interpretação quanto à obra musical de Chico Buarque, cuja preciosidade se comprova em ofícios literários como esse.
É um presente para as leitoras e os leitores do blog; as buarqueanas e os buarqueanos certamente merecem.
VITRINE ADENTRO
Laura dos Santos Teixeira Dias
Eu vi o sorriso do artista nos olhos do homem, e ouvi um menino fazendo arte. Chico cantou!
Elas estavam ali esparrodadas, como se fossem eu numa rede, todas as letras numa teia, tão bem dispostas. A leitura do anagrama era um caminho que dava gosto de percorrer, por vezes amargo pela amargura do ciúme… um labirinto apenas. Suas palavras em idiomas diversos eram os quadros, sem os quais não se têm as paredes, cujas traduções comungavam concomitantemente do pulso cardíaco e do cerebral. De fato! Algo da psicologia…
Por vezes, o que as vitrines nos ofertam, é um pouco de nós. Sim, só um pouco; do lado de cá nos espelhando, e do lado de dentro nos revelando, mas também nos escondendo. E essa é a graça do que se passa, ainda do que nem sempre se sabe.
O anagrama de As Vitrines é tão leal à própria forma, que parece transportar e transbordar a palavra, a fim de manter seu conteúdo fiel à mente do catador de poesia, que na letra, canta o que sente, enquanto no espelhamento, evade do que pensa. Se o eu lírico de As Vitrines com seu anagrama é poliglota, eu não sei, mas quem dá voz a ele, bem como quem possa ter inspirado a personagem, acredito que seja.
Ele que a vê sair e sumir… suspirar, rir e brincar. Ele que acredita deduzir do que ela está gostando. Ele da visão por vezes embaraçada. Ele que enxerga quem a vê, através dos olhos dela. Ele, pobre de si, antes de perder-se dela, perdeu-se de amor.
Eu fico cá a pensar que, aos olhos dele, assim feito ela, é a letra da música. Ambas brincando de encontrar, esconder e revelar, não muito (claro que não), mas algo de si, em seus reflexos, sombras e afins, sendo o anagrama as entrelinhas da letra; o primeiro aquilo que se pensa, a segunda aquilo que se diz. Expondo tanta conjectura, realmente não sei se:
Ao tentar decifrá-la
ele se confundia
e se punha a chorar copiosamente.
Ele a viu ceder de cabeça quente,
àquilo que preferia
desajustada, mas
certa do que fazia.
Ela ditava o próximo passo
daquele que a seguia
acreditando que o frescor da noite
a devolveria.
Ele com sua venda
sempre a postos a lhe dizer:
Não foi nada!
Protegendo-o, não do clarão,
mas da clareza,
remontando sua família.
Ele se pergunta com quem
se parecem as suas crias.
Eu me pergunto se a poesia derramada
catada pelo vigia,
era a que o doutor doido, a ela
ainda a pouco cedia.
Então aquele que não usurpou
mas ocupou o seu lugar
agora estaria saciado.
Era o prazer dos adultos
feito o brinquedo é para as crianças,
voando até as estrelas.
Ele a via levitando lasciva
dissimulada, dirigia-se a guerra
vestida de saias.
Enquanto isso fico aqui acordada
com quem estaria sonhando.
Haja, mas…
viva a fantasia
refletida nas vitrines
duma galeria.
Enfim, vasculhando minhas memórias, imaginei que se Machado de Assis viajasse no tempo, ele me diria que ela é Capitu, e seu analista é Escobar. Sendo então o eu lírico de As Vitrines, Bentinho! Ele, aquele que ao tentar conter a mulher, teria sido alertado por ela em suas falas carinhosas e compreensivas diante o ciúme do marido, o Dom Casmurro. Um Bento envelhecido, recluso e introspectivo, mas acima de tudo, teimoso:
-Dá tua mão
-Olha pra mim
-Não faz assim
-Não vai lá não
Por vezes me pergunto se foi exatamente como se deu: primeiro ela saiu, mas depois sumiu, e permanece assim, como ainda se canta.
A TÍTULO DE CURIOSIDADE, APÓS A LEITURA DO TEXTO
DE LAURA DOS SANTOS TEIXEIRA DIAS
O anagrama:
Ler os letreiros aí troco
Embaçam a visão marinha
Vi tuas fúrias e predileção
Errar sisuda, sã fora de eixos
Doce vento, grandes beijos do jantar
Um militar saber tuas polcas
Bem postos meus veros antolhos
Patavinas, sorvetes, diners
Na alegria
A cara do clã
Um doutor doido me cedia poesia
Um absalão rindo
Pião, sexo, asa, espaço
És súpita virgem avessa
A asteca do piano
Quão sonha no center
Eis os versos da letra da canção, com seus respectivos anagramas, destacados em itálico.
Os letreiros a te colorir
Ler os letreiros aí troco
Embaraçam a minha visão
Embaçam a visão marinha
Eu te vi suspirar de aflição
Vi tuas fúrias e predileção
E sair da sessão, frouxa de rir
Errar sisuda, sã fora de eixos
Já te vejo brincando, gostando de ser
Doce vento, grandes beijos do jantar
Tua sombra a se multiplicar
Um militar saber tuas polcas
Nos teus olhos também posso ver
Bem postos meus veros antolhos
As vitrines te vendo passar
Patavinas, sorvetes, diners
Na galeria
Na alegria
Cada clarão
A cara do clã
É como um dia depois de outro dia
Um doutor doido me cedia poesia
Abrindo um salão
Um absalão rindo
Passas em exposição
Pião, sexo, asa, espaço
Passas sem ver teu vigia
És súpita virgem avessa
Catando a poesia
A asteca do piano
Que entornas no chão
Quão sonha no center