MELHOR QUE OUTRORA
Uma peça teatral em dois atos
Primeiro Ato:
Bem Mais
Cena:
A sala de uma casa no subúrbio do Rio de Janeiro.
O ano é 1976.
No centro do palco, um telefone em cima da mesa.
Luzes focadas no aparelho.
A raiva de Nice dela própria vinha da promessa diária jamais cumprida: abaixar o volume do toque de seu telefone. Quando o aparelho resolvia abrir sua estridente cadência: trimmmm…. trimmmm….. trimmmm… ela tinha a impressão das vizinhas em casas coladas à dela, o que era comum nos subúrbios, amaldiçoando-a por interromper a prosa nas tardes de calor, naquele bairro esquecido dos que viviam a ver o Redentor de frente, na tal cidade que abusava de ser tão maravilhosa.
Os afazeres e talvez uma inconsciente espera pela chamada tão esperada, faziam com que ela se esquecesse da simplória tarefa de pegar o aparelho, virá-lo e reduzir o som naquele botão de três níveis, máximo, médio e mínimo. Mas o fato é que ela aguardava todos os dias pelo esganiçado toque, ao longo daqueles dois anos do solitário silêncio de sua casa.
Pois finalmente o dia chegou.
Trimmmm…. trimmmm… trimmmm…
O coração saltou pela boca e é provável que tenha chegado antes dela ao telefone, mas coração não tem braços nem mãos; para atendê-lo, só mesmo com as mãos, era preciso pegar a parte superior do gancho e levá-la ao ouvido, com a outra extremidade defronte à boca.
– Alô… foi praticamente um sussurrar dela por lábios trêmulos.
– Sou eu.
A fala, ela bem sabia, era típica da empáfia dele. Não anunciou educadamente um “alô”, muito menos “boa tarde”. Sou eu. Como se ela fosse obrigada a conhecer a voz após todo tempo de ausência, ou, pior, como se aquele telefone estivesse mudo nesse período, ninguém fizesse qualquer ligação para ela, o aparelho a serviço da boa vontade quando ele resolvesse dar notícia.
Por óbvio, ela responderia: “eu quem?”, isso foi ensaiado diversas vezes, pois de tanto conhecê-lo ela tinha a absoluta certeza do “sou eu” como início de conversa.
– Oi.
Foi o que pôde ser dito, ensaios de nada valeram.
– Tá tudo bem aí?
– Sim, sim.
– Surpresa com a ligação?
Ela sentiu o rosto corar, reagindo à altura aquele interrogatório que, ainda que iniciante, já a constrangia.
– Você ligou para que eu preencha um questionário de respostas?
– Calma, meu bem… – ela detestava quando ele a chamava de meu bem. Essas palavras nunca foram sopradas num momento de carinho, costumeiramente era a senha prévia para desculpas tolas e mentiras esfarrapadas.
– Estou calma. Estou na minha casa – o minha, nesse caso, foi dito com muita ênfase, pareceu até mais estridente do que o próprio toque do telefone.
– Tá bom, desculpa. Vamos começar do começo. Está tudo bem com você?
– Está – por ela ficaria nisso. Mas há certos sentimentos incontroláveis, que surgem do nada, e foi exatamente o que aconteceu naquele instante. Ela começou algo que, sabia, não conseguiria mais parar.
– Quando você largou tudo aqui, meu bem, ainda teve a audácia de dizer “seja feliz e passe bem”.
Ele não ouviu a frase por inteiro, a não ser o “meu bem”, a alimentar sua vaidade por constatar no possível deslize que ela ainda o amava. O “passe bem” ele nunca falou quando saiu de casa definitivamente, e achou que ali foi uma estratégia dela, ao se arrepender de chamá-lo de “meu bem”, de emendar outro “bem” no final, para confundir sua memória.
– Eu quase endoideci, você nem sabe. Até morrer eu quis, de verdade. “Coitada… morreu de ciúme”, era só isso que falariam no meu velório.
– Deixa de exagero…
– Você telefonou, agora vai ouvir. Com o tempo, resolvi fazer o que sempre fiz enquanto vivemos juntos: obedecer. Então te obedeci. Você não disse que era pra eu ser feliz? Então corri atrás da felicidade.
– Casou de novo?
– Pra quê casar? Estou livre e mais jovem, duvido até que você me reconhecesse na rua. Eu já me refiz do sofrimento, há bastante tempo. Se quiser me rever, já vai me encontrar assim, uma nova pessoa.
O silêncio chegou a incomodar pelo barulho do desconforto.
– Que foi? Não gostou de ouvir isso? Eu queria era te dizer assim, olhos nos olhos. Por telefone não vale, não dá pra te ver. Quem sabe, um dia inventam um telefone com olhos, que façam nossos olhos olhar o do outro?!
– Não estou entendendo…
– Está, claro que está. Eu queria olhar bem na tua cara pra dizer como é minha vida hoje, você me abandonou, mais de dois anos sem dar notícia, meu bem…. Sabia que sem você eu passo bem até demais? – ele jamais alcançaria as ironias dela nessa fala, pois mal podia fazer um bem comum, que dirá entender três diferentes.
– …
– Passo o dia cantando, sem motivo, só mesmo de alegria… e quer saber mais? As águas rolaram debaixo dessa ponte, você é passado… depois que você foi embora, eu me tornei livre, nem sabia que tantos homens poderiam me amar… e olha… bem mais e melhor que você…
De repente, dotado do característico egocentrismo masculino, ele se muniu da absoluta certeza de que tudo era mentira. Ela estava se vingando, claro! Nada daquilo poderia ter acontecido, já que ele era o máximo. Sorriu abertamente, sem fazer barulho, certo de que lançaria uma isca infalível como ele.
– Será que a gente ainda pode se encontrar?
Ela não titubeou em encenar a adorável perfeita, mais uma vez, com reservas tais, que só lhe conferiam um realismo odioso e excitante.
– Olha… se você quiser me rever, vai encontrar outra pessoa. Mas, se tiver precisando de algo… claro… venha, pode vir! Esta casa será sempre sua.
Ele estufou o peito, o ego inflado. Acreditava que era tudo um teatro, de menos a parte que de fato fora. Ela certamente chorava noite e dia pensando nele, não como o homem que lhe deu a dignidade que apenas uma mulher casada poderia ter em tal contexto, mas como o grande e inesquecível amor da sua vida. Só que ele enfadou-se de toda a vida boa que uma mulher àqueles moldes proporcionava a um homem em troca da imagem de uma senhora, e acreditou poder viver a liberdade. Ele saiu mundo afora, mas se deu conta depois de muito tempo que a procura de outras mulheres era uma fuga de si mesmo, não foi feliz com nenhuma delas, por isso pensou em buscar novamente a dedicação de Nice, aquela que convenceu não só a ele, mas também a si mesma, que o amava verdadeiramente.
Aguentou até quando deu, foram mais de dois anos. Por isso telefonou animado, para sondar como ela estava, e depois de constatar, em sua perspicácia precária, que aquela mulher ainda era sua, esmoreceu, feito criança que guarda o brinquedo no fundo do armário, acreditando poder brincar com ele depois, sempre depois.
– Tá bem, bom saber que está tudo certo aí. E, sim, eu apareço qualquer dia, tá?
– Avisa antes.
Essas foram as palavras que ele jamais pensou em ouvir, mas atribuiu à cena final do teatro que ela debulhava no papel de mulher independente.
– Sim, aviso. Vou desligar, estou morando agora longe, numa cidade no norte, a ligação interurbana tá muito cara. Até breve, então.
– Até.
O que ele jamais viu ou sequer adivinharia, foi o gesto de Nice ao pousar o gancho do telefone e apanhar imediatamente a caderneta laranja tranquilamente descansando ao lado do aparelho. Começou a procurar no índice de letras do alfabeto alguns nomes ali registrados, escritos a lápis, que ela guardava com as melhores lembranças, além da possibilidade de fazer uma ligação quando quisesse, em qualquer instante. Apontou o dedo na letra “F”, era a letra que dava início ao sentimento dela naquele instante… Fábio, Fernando, François…
– François! – ela fala em voz alta, para si própria – Sim! Ele me trouxe flores e um cartão escrito à mão, já no segundo encontro! Faz tanto tempo isso…. “Pensas que não sou feliz? Estás enganada. Agora sou!” Nunca esqueci esses dizeres…
Ela tinha certeza que se apaixonou por causa do jeito elegante dele falar e escrever, usando corretamente a segunda pessoa do singular. François fez questão de dizer ao se encontrarem pela primeira vez: “meu nome se pronuncia frân-çú-á, é Francisco em francês, minha mãe era professora de língua francesa, além de me ensinar a falar corretamente os verbos em português, ela vivia a dizer palavras que usamos aqui, mas que vieram da língua francesa, foram as primeiras que aprendi… abajour, tailleur, souvenir… nem sabia o que significavam, mas eu amava aqueles sons, pareciam entonações de música. Talvez por isso eu acabei me apaixonado pela gafieira, um estilo de samba dançante. Minha mãe não ficou muito feliz, preferia que eu tocasse valsa, mas o sangue do meu pai, crioulo bom de samba, lá do morro, foi mais forte”. Essa confissão de parte da vida dele deixou-a também encantada, pois se abriram as portas da história pessoal de François sem que ela tenha pedido.
Nice acendeu um cigarro, aspirou a fumaça como quem chama a vida para abraçá-la, em seu prazer aberto, porque o marido detestava quando ela fumava. Costumava fazer escondida muitas coisas, além de fumar. “Bem mais e melhor que você”, ela pensou enquanto sorria. Os dedos se movimentavam para discar os números que davam acesso à felicidade. Antes de completar a ligação, invadiu-lhe a irresistível vontade de cantar. Sem mais nem porquê.
Enquanto disca o telefone, Nice começa a cantar:
Quando você me deixou, meu bem
Me disse pra ser feliz e passar bem
Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci
Mas depois, como era de costume, obedeci
Quando você me quiser rever
Já vai me encontrar refeita, pode crer
Olhos nos olhos, quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais
E que venho até remoçando
Me pego cantando
Sem mais nem porquê
E tantas águas rolaram
Quantos homens me amaram
Bem mais e melhor que você
Quando talvez precisar de mim
‘Cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim
Olhos nos olhos, quero ver o que você diz
Quero ver como suporta me ver tão feliz
As cortinas se fecham.
Tudo fica escuro.
Permanece somente uma luz direcionada ao
telefone, no centro da sala.
Fim do Primeiro Ato
Segundo Ato
Sentimentos de Outrora
Cena:
Um quarto do Grande Hotel, Rio de Janeiro.
François, ansioso, aguarda a chegada de Nice.
De repente ela abre a porta.
François, sorridente, começa a cantar.
Vens ao meu quarto de hotel
Sem te anunciares sequer
Com certeza esqueceste que és
Que és uma senhora
Vejo-te andar de tailleur
Atravessando a novela
Sentes prazer em falar
De sentimentos de outrora
Deito-me no canapé
Não sem antes abrir a janela
E ver tuas palavras ao léu
Jogas conversa fora
Sabes que estive a teus pés
Sei que serás sempre aquela
Pretendes me complicar
Mas passou a nossa hora
Não me incomodo que fumes
Podes mesmo te servir à vontade do meu frigobar
Ou levar um souvenir
Dispõe do meu telefone
Desejando, liga o interurbano pra qualquer lugar
E apaga a luz ao sair
Quando eu pensava em dormir
Tu chegas vestida de negro
Vens decidida a bulir
Com quem está posto em sossego
Entras com ares de atriz
Sabes que sou da platéia
Deves pensar que ando louco
Louco pra mudar de idéia, não?
Pensas que não sou feliz
Entras com roupa de estréia
Deves saber que ando louco
Louco pra mudar de idéia
As cortinas se fecham vagarosamente,
enquanto a luz vai sendo reduzida,
com o foco direcionado à cama na qual
está François, olhando Nice, que se aproxima
com gestos sensuais.
Fim do Segundo Ato
FIM DA PEÇA
A PONTE MUSICAL: OLHOS NOS OLHOS – GRANDE HOTEL
Quem passeia por este blog, provavelmente já se atentou que um dos traços nos textos aqui pousados é a exposição das amplas possibilidades de interpretação da obra buarqueana, procurando surpreender não só no conteúdo, como também na forma.
Desta vez, lanço uma perspectiva cênica envolvendo duas músicas que não guardam qualquer relação em termos de criação, mas que, para mim, apontam essa possibilidade de conexão, mesmo considerando o lapso temporal que as separam. Olhos nos Olhos é de 1976; Grande Hotel, de 1997.
Escolhi a arte da dramaturgia para cerzir essas duas canções, ao imaginar uma pequena peça teatral com somente dois atos, e que contasse a história de Nice em sua legítima busca da felicidade amorosa.
A narrativa da dramaturgia é desafiadora, pois não se tem o conforto descritivo da narrativa em prosa. Nessa hora se vê como faz a diferença o estilo que ancora todo um texto de conto, ensaio e até romance. A liberdade é ampla ao se escrever em prosa. Mas ao construir uma peça a ser encenada, o que se impõe é o diálogo. O palco mostrará a cena e as personagens com suas características. O diretor ou a diretora, as atrizes e os atores completarão a arte da dramaturgia como pensada pelo criador da história.
Por isso, optei também por algo diferenciado, numa proposta de interligar roteiro teatral e literatura. Embora se tenha aqui uma proposta cênica, utilizei os recursos da literatura, praticamente escrevendo um conto que seria vertido depois em obra teatral, como se a ideia da história se materializasse na linguagem literária, para que somente depois viesse a ser transformada na concretude da encenação, feita pela atriz e pelo ator das duas personagens que aparecem no palco – Nice e François –, porque o marido só adentra na história por meio da voz, ele está do outro lado da ligação telefônica, e o cenário é justamente a sala da Nice. Isso tem uma mensagem proposital: o marido é secundário, tanto que sequer se aponta seu nome no contexto. Ele não tem mais vez, a sua vez já passou, não tem presença nem identidade; só tem a voz inativa. Isso foi pensado por mim para sobressair a força da mulher colocada na vida real e no tempo da encenação (anos 1970) como pessoa discriminada, uma “desquitada” (esse era o termo da época para separada judicialmente), cujo rótulo a coloca previamente como derrotada. Mas Nice conhece seu valor e tem consciência de que se refaz na medida em que assume sua identidade na busca da felicidade e do prazer, sem qualquer receio.
A proposta, então, se bifurca em duas perspectivas. A primeira, a de mostrar a possibilidade de realizar uma conexão entre duas canções do Chico, uma delas em parceria com Wilson das Neves, cujo contexto necessariamente não induz a essa ligação, seja pela distância temporal entre elas, seja pela temática enfrentada nas músicas. Mas a arte permite essas costuras surpreendentes. A segunda perspectiva é a de que podemos verter a obra musical buarqueana numa linguagem teatral, porque me parece ser da essência do estilo de Chico Buarque que suas músicas carreguem nas entranhas uma forte carga de ação de uma história se desenvolvendo como se fosse trecho de uma peça ou de um filme. Elaborei então esse texto em forma de roteiro teatral, ainda que no primeiro ato se faça uma narrativa literária ao estilo de conto, e no segundo ato se tenha tão somente a música cantada, pois isso basta para descrever toda a situação ali imaginada.
Eis a riqueza incomparável das músicas do Chico, a permitir tantas possibilidades em conteúdo e em forma, nas releituras possíveis. Por isso costumo dizer, sem receio de estar exagerando, que não há em qualquer lugar ou tempo que se possa buscar, aqui ou lá fora, um artista como Chico Buarque.
Olhos nos Olhos / Chico Buarque / 1976
Quando você me deixou, meu bem
Me disse pra ser feliz e passar bem
Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci
Mas depois, como era de costume, obedeci
Quando você me quiser rever
Já vai me encontrar refeita, pode crer
Olhos nos olhos, quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais
E que venho até remoçando
Me pego cantando
Sem mais nem porquê
E tantas águas rolaram
Quantos homens me amaram
Bem mais e melhor que você
Quando talvez precisar de mim
‘Cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim
Olhos nos olhos, quero ver o que você diz
Quero ver como suporta me ver tão feliz
CLIQUE AQUI PARA OUVIR A GRAVAÇÃO DA MÚSICA COM O CHICO BUARQUE (1976)
OLHANDO A CANÇÃO
“Foi a primeira vez que eu entrei na parada de sucesso em rádio AM foi com a canção do Chico, Olhos nos Olhos”, diz Maria Bethânia, com visível ar de espanto, ao lado de um Chico pensativo após essa afirmação, que arremata: “é, tocava sim!”, no que ela complementa, “virou sucesso na AM! Você só tocava FM, e eu também, quer dizer, essa nossa geração, classe A, assim sofisticada…” (essa passagem consta no DVD Chico e as Cidades, de 2000).
Convém esclarecer às pessoas mais jovens que nos anos 1970 o rádio era o grande veículo divulgador das músicas, mais poderoso que a televisão. E o mundo se limitava a essas duas plataformas tecnológicas. O computador era algo em experimentação nas grandes empresas, não se tinha ainda o computador doméstico, pessoal, o PC (personal computer); a internet nem fazia parte do imaginário de escritor de ficção científica. E no caso do rádio, duas frequências possuíam público distinto. A mais antiga, AM (amplitude modulada) com baixa qualidade no som, era o canal mais popular, no qual as pessoas estavam acostumadas a ouvir não somente música, mas notícias, programas de entrevistas, e até mesmo antes da televisão existiam as rádio-novelas, com atrizes e atores conduzindo uma história somente com suas vozes. Depois chegou a FM (frequência modulada), com sua qualidade sonora bem mais evidente, e por isso rapidamente se tornou um nicho de canais somente com música, em estilo distanciado do popular, e por isso ficou conhecida como rádio de elite.
As músicas do Chico, desde o salto de sofisticação ocorrido com o disco Construção (1971) eram tocadas bastante em FM. Conhecidas como MPB (música popular brasileira), essas canções eram tidas como algo a interessar somente uma faixa estreita de pessoas, sem dúvida um preconceito, quebrado com Olhos nos Olhos, pois rapidamente a música atingiu todas as camadas da população, tocando nas rádios AM. Eu lembro demais, menino à época, com meus 12 anos, da voz no rádio daquela cantora diferenciada e marcante, “Quando você me deixou, meu bem…”; nessa época eu nem fazia ideia de quem eram Bethânia e Chico Buarque.
O fato é que a canção caiu no gosto popular; seja pelo tom de força empregado por Maria Bethânia, a mostrar uma nova imagem feminina nos preconceituosos anos 1970, aquela capaz de superar o abandono do marido; seja pelo ritmo de balada com o otimismo da canção a desfiar a história da separação sem a visão trágica – bem comum nos anos 1950, 1960, a chamada música de “fossa” –, simplesmente cada um vai viver sua vida após o casamento findo.
Impressionante, porém, é saber de que maneira a música surgiu, e isso quem fala é o próprio Chico, a nos mostrar os insondáveis caminhos da inspiração, nem sempre obedecendo a uma lógica entre o motivo e o resultado: “Eu me lembro muito bem de uma tarde em que fiquei conversando horas com o dramaturgo Paulo Pontes, meu parceiro em Gota d’Água. Ele tinha voltado de uma viagem ao Nordeste e estava doente. Eu sabia que a doença era terminal. Mas ele não sabia, ou fingia que não, e passou a tarde falando do que tinha visto no Nordeste. Era 1976, e Paulo Pontes cheio de dúvidas em relação ao Brasil, a questão social, enfim, uma conversa densa, e eu muito impressionado com aquilo tudo, na verdade mais impressionado com a doença do que com o Nordeste. Voltei para casa agoniado e louco para tocar violão. Naquela noite, eu escrevi Olhos nos Olhos, uma canção de amor que não tinha nada a ver com nada, vai ver que por isso mesmo…” (entrevista para a Revista Nossa América, 1989).
OS OLHOS NAS VOZES
A interpretação da Maria Bethânia se tornou histórica em Olhos nos Olhos. Chico, aliás, ao concluir a música, pensou nela e encaminhou a “fita” (nessa época, o compositor gravava sua primeira versão do que acabara de fazer numa fita K7, era a maneira mais fácil, com gravador portátil e microfone). Na interpretação, se percebe toda força feminina da mulher que, olhando nos olhos de seu ex-marido, diz que já superou tudo e está bem melhor agora.
CLIQUE AQUI PARA OUVIR A GRAVAÇÃO DA MÚSICA COM A MARIA BETHÂNIA (1976)
Chico também grava a canção, no disco Meu Caro Amigo (1976), e entoa uma interpretação mais intimista, a começar pelo arranjo de Francis Hime, que também toca piano, as flautas na introdução (Jorginho e Celso) acompanhadas do piano e de instrumentos nitidamente suaves, como o oboé (Bráz), o baixo (Luisão) e o violão (Luiz Cláudio Ramos), tendo ao fundo uma discreta bateria (Papão). A forma como Chico debulha as palavras dá a entender – ao menos na minha leitura – de que o eu lírico da canção, a mulher abandonada pelo marido, está convicta da felicidade com sua nova vida, mas ainda não diz isso diretamente para aquele homem que é passado, mas ela anseia por dizer assim que ocorrer a oportunidade; a expressão olhos nos olhos não é do instante da canção, como em primeira mirada pode parecer, e sim uma programação para quando houver o reencontro (Quando você me quiser rever / já vai me encontrar refeita, pode crer, são os versos-chave que indicam essa perspectiva).
O modo como Chico entoa a canção sempre me levou a esse cenário. A mulher está pensativa, falando consigo própria, é um verdadeiro discurso interno de convicção da sua nova vida, para no momento certo olhar para aquele que um dia foi tão importante, e dizer: você não é mais. Daí me veio a ideia da cena teatral, na qual embora ela fale com o ex-marido, não o faz diretamente, e sim por telefone, num diálogo no qual ela pode lançar todas essas assertivas sem o risco de ser agredida ou até morta (basta imaginar o risco de uma mulher dizer diretamente a um homem naquela época – e até na atualidade – Quantos homens me amaram / Bem mais e melhor que você). Desse modo indireto, falando pelo telefone, ela consegue externar com toda convicção sua nova fase da vida, cantando sem mais nem porquê e se vendo mais jovem.
Mais recentemente, Ivete Sangalo fez sua interpretação da música, emprestando uma narrativa contundente, ao mesclar sentimentos de uma alegria evidente por estar na nova situação de liberdade, contando sua história sem qualquer penar. Dá a impressão de uma mulher efetivamente liberta do passado, ao ponto de externar algo tão denso com a alegria contagiante típica da forma que Ivete tem de cantar (Álbum Ivete, Gil e Caetano, de 2012).
CLIQUE AQUI PARA OUVIR A GRAVAÇÃO DA MÚSICA COM A IVETE SANGALO (2012)
Ouvindo qualquer uma dessas versões de Olhos nos Olhos, a conclusão a que se chega é de que a arte, por ser indubitavelmente inesgotável, adquire um caráter personalíssimo ao encontrar cada apreciador, comportando sempre muitas interpretações, isso é o que a torna indispensável.
Grande Hotel / Wilson das Neves / Chico Buarque / 1997
Vens ao meu quarto de hotel
Sem te anunciares sequer
Com certeza esqueceste que és
Que és uma senhora
Vejo-te andar de tailleur
Atravessando a novela
Sentes prazer em falar
De sentimentos de outrora
Deito-me no canapé
Não sem antes abrir a janela
E ver tuas palavras ao léu
Jogas conversa fora
Sabes que estive a teus pés
Sei que serás sempre aquela
Pretendes me complicar
Mas passou a nossa hora
Não me incomodo que fumes
Podes mesmo te servir à vontade do meu frigobar
Ou levar um souvenir
Dispõe do meu telefone
Desejando, liga o interurbano pra qualquer lugar
E apaga a luz ao sair
Quando eu pensava em dormir
Tu chegas vestida de negro
Vens decidida a bulir
Com quem está posto em sossego
Entras com ares de atriz
Sabes que sou da platéia
Deves pensar que ando louco
Louco pra mudar de idéia, não?
Pensas que não sou feliz
Entras com roupa de estréia
Deves saber que ando louco
Louco pra mudar de idéia
WILSON DAS NEVES E CHICO BUARQUE CANTAM “GRANDE HOTEL” NO SHOW CARIOCA (2007)
SOU DA PLATEIA
A dança resultante de um samba-de-gafieira, ou gafieira, como muitos abreviam, é um bailado de um casal em passos surpreendentes e ágeis, num vai-e-vem repleto de coreografias, nas quais ambos desenvolvem movimentos próprios, isolados, e depois atuam de modo sincronizado, em conjunto; essa linguagem corporal é muito ligada a um Rio de Janeiro com sua típica malandragem na expressão da dança alegre e com toques de sensualidade.
Sim, Grande Hotel é um samba sincopado – certamente nem utilizam mais essa expressão, muito em voga até os anos 1970, por meio de sambistas como Donga –, porque ele tem um ritmo mais apoiado na percussão, com melodia bem elaborada, enfatizando a riqueza musical da cadência. Mais especificamente, Grande Hotel é um samba-de-gafieira, subgênero do samba sincopado, com estímulo à dança.
Essa música sempre me induziu a uma cena de samba-de-gafieira, em cenário dos anos 1970, até pelo reforço da linguagem poética contida na narrativa da música, o encontro entre dois antigos amantes num quarto de hotel a desfrutar dos pequenos luxos que ele proporciona, além da possibilidade de se ter a intimidade fora de um ambiente com outras pessoas. Ali eles poderiam bailar à vontade, sem receio de nada, espalhando pelo quarto toda a coreografia sensual do aguardado encontro.
Por conta dessa imagem que a canção me remete, imaginei a possibilidade de uma costura com Olhos nos Olhos, considerando a história por mim imaginada da mulher que está em busca dos amores antigos para revivê-los, em face de sua nova condição de separada (na época, falava-se desquitada), tudo girando nos anos 1970.
Essa parceria de Chico Buarque com Wilson das Neves é o resultado de muito tempo de convivência, por atuarem juntos em gravações de discos e também nos palcos.
De certo modo, Grande Hotel é um retrato da figura sempre sorridente de Das Neves, como era carinhosamente chamado por seus companheiros de estrada musical. Nessa canção se tem de modo muito nítido as raízes do samba da melhor expressão de um Rio de Janeiro de outrora.
Esse tempo de outrora, claro, diz respeito aos anos 1950, certamente o auge do encantamento de uma cidade repleta de luz e som, mas se estendeu esse período, a meu ver, até os anos 1970, depois disso se teve o corte abrupto de um país que se tornou tenebroso e triste em face da ditadura, violentamente instalada no país.
O samba Grande Hotel faz um corte e nos leva a uma cena particularmente restrita, mas que é um microcosmo dessa ampla felicidade que se anunciava com data marcada para findar. Um quarto de hotel com seus elementos de conforto, por se ter ali coisas que certamente não se encontravam nos quartos das casas daquele tempo. Um frigobar, pequena geladeira própria para ser utilizada em ambiente pequeno, como um quarto, para se ter fácil acesso a pequenos luxos gustativos, como simplesmente uma água gelada. Um telefone, artigo requintado nos anos 1970, pois havia um elevadíssimo preço para se ter uma “linha telefônica”, porque o consumidor era obrigado a comprar ações da companhia telefônica para o uso do serviço, isso demandava até financiamento por longos meses a fim de se instalar um telefone em casa.
E até uma televisão adornava aquele quarto de hotel com seu diferencial em termos de atrativos. Embora na letra da música não se tenha explicitamente a referência a uma televisão, Chico inseriu sutilmente a percepção desse objeto, quando o eu lírico da canção diz que a mulher andando de tailleur, atravessou a novela, ou seja, a cena é justamente ela com um conjunto composto de casaco e saia, passando em frente à televisão ligada, que transmitia naquela ocasião uma novela, por ser na década de 1970 a expressão maior do divertimento televisivo no Brasil.
A sensação de riqueza daquele que está ali para oferecer o melhor ao seu amor, é justamente a possibilidade de ofertar à ela todos esses pequenos luxos que um quarto de hotel proporcionava naquela época: o frigobar, podendo até levar um souvenir, garrafinhas de bebidas, salgadinhos, coisas típicas que preenchem aquele serviço; deitar no canapé, espécie de pequeno sofá, de dois lugares, ideal para namoros; usar o telefone, inclusive realizar uma ligação para outros estados, o interurbano, de elevado custo à época.
Além desse ambiente de pequenos prazeres materiais, o eu lírico se sente muito elegante por estar ali, e não só utiliza a segunda pessoa do singular no modo de tratamento (vens, te anunciares, esqueceste…) como também passa a falar palavras em francês, que na época se incorporavam ao linguajar da classe mais favorecida, num estrangeirismo que indicava sofisticação, não só nas palavras propriamente em francês, como tailleur e souvenir, e aquelas que se adaptaram à nossa língua e de origem da língua francesa, como hotel (hôtel) e telefone (téléphone).
Enfim, a canção nos relata esse momento sublime de alguém que quer receber o seu amor da melhor forma possível, num quarto de hotel com seu ambiente de pequenos luxos, e ali realizarem uma dança não só no sentido induzido pelo ritmo da música (um samba-de-gafieira), mas a música da sedução, dando a entender que é um reencontro, de muitos que já ocorreram entre eles, inclusive na situação pretérita à separação da mulher, mostrando que ambos se enamoravam ainda quando ela carregava a condição de casada (Com certeza esqueceste que és / Que és uma senhora).
Exatamente por isso achei possível a conexão entre essa música e Olhos nos Olhos, dentro do contexto da narrativa na qual me propus a expor em linguagem teatral. Ela seria a continuidade da nova fase anunciada pela mulher que se mostrava refeita após a separação – na verdade ela vinha se refazendo muito antes disso –, e o encontro após ela telefonar para François (a personagem por mim criada) a fim de que pudessem reviver, mais uma vez, aqueles encontros em tardes de outrora no Grande Hotel.
O toque de vigor da canção está no jogo de sedução do casal, notadamente por parte dela, agindo com ares de atriz, ao ensaiar a retirada após ficarem juntos ali naquele quarto (E apaga a luz ao sair), realizando um retorno triunfal e proposital após curto intervalo (Quando eu pensava em dormir / Tu chegas vestida de negro / Vens decidida a bulir / Com quem está posto em sossego). Daí a possibilidade, nessa minha tentativa de costurar as duas canções (Olhos nos Olhos e Grande Hotel) numa linguagem de dramaturgia, de o segundo ato dessa imaginada peça teatral se resumir à própria música, entoada por François, pois ali se tem toda a cena apta a mostrar que ele sempre foi “da plateia”, aquele que admira toda a atuação de sua amada, sempre disposto a mudar de ideia: de espectador para atuante na cena da dança do amor em ritmo de gafieira.
Ô SORTE!
(Uma homenagem a Wilson das Neves)
O carioca Wilson das Neves inaugurou a vida em 14 de junho de 1936, mas para nossa tristeza, saiu de cena em 26 de agosto de 2017, com 81 anos de vida recém-completados. O disco Caravanas, do Chico, acabava de ser lançado, anunciando uma provável turnê desse trabalho, que de fato ocorreu a partir de dezembro daquele ano.
No show, antes de cantar Grande Hotel, Chico lança essas palavras: “ele nos acompanhou por mais de trinta anos, em tantas viagens, tantos camarins, tantos palcos, tantos momentos felizes… este show é dedicado a Wilson das Neves. A benção, Das Neves!”
A turnê Caravanas teve início em 13 de dezembro de 2017, no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, e findou em 22 de setembro de 2018, no Centro de Eventos do Ceará, em Fortaleza.
Wilson das Neves integrava a equipe musical do Chico desde 1982, quando começou a acompanhá-lo. O primeiro registro como músico da banda consta no disco de 1984 (Chico Buarque é o nome do álbum, embora seja mais conhecido como Vai Passar, por ser uma das faixas mais festejadas do disco). Cantaram juntos Tereza da Praia (Tom Jobim – Billy Blanco) e Sou Eu (Ivan Lins – Chico Buarque) na turnê do show Chico (novembro de 2011 a maio de 2012, e registro feito em CD e DVD com o nome Na Carreira, Biscoito Fino, 2012).
Músico respeitadíssimo, estreou como cantor em 1996, com o disco O som sagrado de Wilson das Neves, e ali consta exatamente a música Grande Hotel, primeira parceria com Chico Buarque.
Outra parceria de Das Neves com o Chico é Samba para o João, que integra o álbum Se me chamar, ô sorte (2013). Aliás, esse “ô sorte!” era o mais conhecido de seus bordões, embora por ele não tenha sido talhado; na verdade, o sambista Roberto Ribeiro assim falou ao descobrir que Wilson das Neves também era torcedor da Escola de Samba Império Serrano. Mas o fato é que “ô sorte!” virou marca registrada de Das Neves, mesmo com outras frases engraçadas que construiu ao longo da vida e que foram fundamentais para alegrar os amigos.
Wilson das Neves era esse baterista, cantor e compositor que emprestou o brilho de sua batida certeira nos instrumentos não só a gigantes da música brasileira como Tom Jobim, Caetano Veloso, João Bosco, Gilberto Gil, Carlos Lyra, Ney Matogrosso, mas também a estrelas internacionais como Sarah Vaughan, Michel Legrand e Sean Lennon.
Quando Wilson das Neves entrou no estúdio de gravação do álbum Chico, de 2011, a fim de integrar um dueto para a interpretação de Sou Eu (Ivan Lins – Chico Buarque), mereceu a observação do atento produtor musical Vinicius França: “voz limpinha, tá um rouxinol, hem!”. A cena consta no documentário Dia Voa, reveladora dos bastidores desse álbum. Ali também se vê o depoimento do próprio Chico, sobre o registro em disco dessa música: “eu poderia gravar sozinho, mas quando eu falei – não, vamos chamar o Wilson das Neves! – parece que deu um colorido novo para a música… eu não queria deixar esse samba de fora, eu adoro esse samba… adorei o Das Neves lá, e ele entrou naturalmente no samba com a maneira dele de cantar, a divisão dele, variação melódica também, tomou as liberdades dele…”.
Pois é… Wilson das Neves, que criou o bordão “eu tenho tudo, porque não quero nada”, teve de fato tudo; o reconhecimento de sua arte, a possibilidade de se expressar em sua mais legítima morada lírica – o samba – ao lado de tantos talentos, fazendo parte da trajetória do Chico, como músico e parceiro, em gravações em estúdios e nos shows ao vivo. O mesmo Chico que não somente percorreu toda a turnê Caravanas em sua homenagem, como também colocou seu chapéu durante a interpretação de Grande Hotel. O recado foi evidente. Chico não só tirou o chapéu para o Das Neves; ele incorporou na alma a grandeza desse espetacular artista. Ô sorte!