OLHA
Ela deu um salto de quinhentos e dez anos; ignorando quem acha ser impossível tal façanha, se rindo toda na cara de Cronos (Krónos), o deus do tempo, enquanto ele adverte sobre a submissão de todos os seres ao seu comando. Desaforada, sua resposta, invariavelmente, é a mesma: “Veja só, veja só, atravessei os ares da terra até chegar ao paraíso para mostrar ao poeta Dante tudo que se deveria mirar naquela dimensão, fui além de lugares imagináveis, ainda morei no sétimo céu. Como vou me quedar a esse seu tique-e-taque tão acanhado?”.
Beatriz, originalmente Beatrice, não desconfia que sequer exista de verdade, mas não adianta convencê-la; nem Cronos conseguiu mostrar para nós algo tão comum chamado tempo… Que ela não nos ouça, mas sim, Beatriz é uma ficção, criada ainda no século XIV por um poeta nascido em Florença no mais que distante ano de 1265, considerado o primeiro poeta da língua italiana: Dante Alighieri. Comentários e especulações, desde então, falam do amor infante de dois meninos que nem chegavam aos dez anos de idade, juraram amor eterno e não puderam concretizar a promessa por razões familiares. Esse elo os teria unido para sempre, em vida, além dela e em poesia. Pinturas foram traçadas a mostrar aquela Beatrice Portinari, menina, e o outro menino, o Dante, e até ele próprio, quando não mais criança, escreveu o poema Vita Nova narrando seu amor e sofrimento por ela.
Mas estamos a falar de outro poema e de outra Beatriz, mesmo sendo poeta o mesmo Dante, pois ainda que inspirada na Portinari, ao assumir a forma do poema majestoso por ele construído, nasceu ali uma Beatriz além do tempo e do espaço, viajante por toda a eternidade, ousada ao ponto de não se submeter ao Cronos.
Além do primeiro, Dante é considerado o maior dos poetas italianos, por causa de seus versos escritos em sua própria língua, um italiano vulgar fruto do dialeto toscano, quando na época o comum era escrever em latim, em razão disso sua Comedia alcançou popularidade e a fama que até hoje nos influencia. A própria igreja católica considera que as imagens do inferno, do purgatório e do paraíso, a funcionar como arquétipos de cenários no inconsciente coletivo de boa parte do mundo ocidental, sejam imagens criadas por Dante.
Embora escrita entre 1304 e 1321, a Comedia só foi publicada em 1472. Por isso Beatriz teve que saltar daquele ano até o de 1982, para encontrar outro poeta, dessa vez um brasileiro. Dizem que ela povoou os sonhos desse artista até ele a resgatar oniricamente, pois o compositor insistia em fazer para Agnes uma letra de canção de outro artista e seu parceiro, mas o destino apontava que deveria ser mesmo Beatriz. A culpa desse embaralhamento é de outro poeta, também brasileiro, das Alagoas, que viveu em tempo diferente daquele outro artista carioca, pois nasceu meio século antes do poeta da atualidade e pôs-se a criar um Grande Circo Místico, falando da dinastia da família Knieps, cuja matriarca foi Agnes, a equilibrista.
O porquê da escolha desse nome permanece tão incógnito quanto despretensioso, afinal, onde estaria Agnes, se não na Comedia de Dante como Beatriz? O poema do Circo tem sutil ligação com Dante, percebe-se isso na leitura dos versos finais quando as gêmeas Marie e Helene, trinetas de Agnes, atiram suas almas para a visão de Deus. Essa imagem consta na Comedia no Canto XXVIII do Paraíso, no qual, como explica o tradutor Italo Eugenio Mauro, da edição brasileira da Editora 34, “volta-se Dante, da contemplação dos olhos de Beatriz nos quais via espelhada a visão de Deus…”.
Espero ninguém fique em tonturas com tanto vai e vem no tempo, muitos nomes e histórias. Seguindo a ordem cronológica, creio que possamos entender. Ele sempre vence – só não derrota a teimosia de Beatriz, então sigamos na lógica de Cronos…
Dante escreveu a Comedia no século XIV e a publicou no século XV, sendo que a obra passou a ser conhecida por Divina Comedia a partir da renomeação dada pelo crítico Giovanni Boccaccio. Ali se tem uma história contada em versos sobre a viagem do próprio Dante percorrendo o inferno, o purgatório e o paraíso, juntamente com vários personagens que de fato existiram, como o poeta romano clássico Virgílio; esse viveu entre os anos 70 a.C a 19 a.C, tendo nascido perto de Mântua ou Mantova, região da Lombardia, na Itália. E como guia de uma dessas viagens, a de Dante ao paraíso, lá estava Beatriz.
Beatriz é o olhar, sua marca mais relevante. O escritor romeno Horia-Roman Patapievici escreveu um livro, cuja tradução em espanhol é “Los ojos de Beatriz”, que ressalta Virgílio definindo Beatriz no poema de Dante como aquela que simboliza a luz da verdade e da inteligência, daí que só se poderia ver o paraíso pelos olhos dela, pois “nos olhos de Beatriz, como num espelho, Dante vê pela primeira vez uma realidade que não pode vislumbrar completamente com seus próprios olhos”, concretizando assim o pensamento do filósofo Platão, que dizia só ser possível ao homem encontrar a verdade invertendo suas faculdades espirituais, realizando um giro ou inversão mental. É o que ocorre ao se olhar o paraíso pelos olhos de Beatriz.
Por isso, muito tempo depois, certa canção assim começa: “Olha…”.
Continuemos, porém, na linha do tempo, para não insultarmos o zangado Cronos.
A Divina Comedia de Dante atravessa os séculos. Beatriz se consagra como uma grande personagem da literatura mundial. Eis que se chega ao século XX, e Jorge de Lima, poeta alagoano, publica em 1938 o poema “O Grande Circo Místico”, sobre a dinastia Knieps, fundada por Agnes, equilibrista de um circo, ao se casar com o filho do médico da imperatriz da Áustria, por isso a história dessa dinastia começa no século XVIII e se estende até depois da Segunda Guerra Mundial do século XX. Agnes, já sabemos, é Beatriz. E a viagem dela através do tempo continuaria quase cinquenta anos depois de sua passagem poética pelo Circo dos Knieps.
Em 1982 é lançado o álbum musical “O Grande Circo Místico”, de Edu Lobo e Chico Buarque, feito a partir da dança do Ballet Guaíra de Curitiba, inspirada no poema de Jorge de Lima, sendo que Naum Alves de Souza escreveu posteriormente a peça teatral. E nesse disco, após a abertura convidando a todos para o grande espetáculo do Circo, eis que surge Beatriz, trazida ao mundo moderno em forma de canto, na melodia envolvente de Edu Lobo, no poema musical arrebatador de Chico Buarque, e na voz indescritível de Milton Nascimento.
Beatriz esteve numa das maiores obras da literatura mundial, a de Dante. Beatriz, disfarçada de Agnes, atuou como personagem principal no poema O Grande Circo Místico de Jorge de Lima. Ela vem desses tempos distantes povoando a imaginação de tantos que se deparam até hoje com essas obras. Mas seu destino era mesmo dar esse salto de quinhentos e dez anos chegando a 1982, no desejo de assumir nova forma; afinal, ela virou música. Melhor ainda, virou musa, a influenciar tantos compositores a partir dos anos 1980 no encantamento mágico de um som que ganhou asas ao ser entoado por um anjo.
Beatriz carrega em suas entranhas nada menos do que a luminosidade de Dante, Jorge de Lima, Edu Lobo, Chico Buarque e Milton Nascimento. Não é pouca luz. Mas nem por isso ofusca nosso olhar. Ao contrário, seguimos com a musa em busca de sermos levados por ela para sempre em seu mundo de cenários, danças e aplausos. Devidamente oculto, mas partilhando dessa mesma busca, segue conosco seu deus devoto: Cronos! Ele nunca dirá a ninguém, para não perder sua majestade, mas não só admira, na verdade ama Beatriz. Ela surgiu do nada, nem ele foi capaz de perceber sua chegada a este mundo. Entrou no poema de Dante, deu um passeio escondida na ideia de Jorge de Lima, dedilhou no piano de Edu Lobo, surgiu em sonho se anunciando a Chico Buarque e, não satisfeita, soprou no ouvido de Milton Nascimento. Ela percorre o tempo, ninguém sabe quando nem onde, mas resurgirá enfim. É preciso estar atento. É como se ela dissesse a cada instante: olha!
! ? , .
Será que ela é moça? Será que ela é triste? Indagações feitas por quem, da plateia, vislumbra a atriz em seu mundo real: o palco. Para o espectador, o tablado visto naquele instante de apresentação, é a realidade; enquanto a vida da atriz, uma incógnita.
Quando alguém diz ou pensa “Olha!”, parece querer que todos ao seu redor reparem e também imaginem se aquela que dança é afinal, uma pintura feita por um artista inspirado na beleza, ou se é real.
A música Beatriz parte dessa ambiência, o eu lírico é o admirador. A atriz, a admirada. Mas porquê não se tem ponto de exclamação no primeiro verso e os de interrogação nos demais? Deveria assim ser pontuada a cantiga. Chico, de maneira espantosa, não coloca qualquer sinal de pontuação no final de cada um dos 35 versos. Isso me leva a crer que o platônico espectador não está a cantar ou nem mesmo a falar, mas a pensar! Sim, pois no reino dos pensamentos não há pontuações, esses sinais só surgem quando as frases pensadas são vertidas em texto escrito.
Então a paixão eclode dessa fórmula interrogativa – sem o símbolo correspondente – e pensamentos repetitivos de especulações, curiosidades a se transformar em desejo… “Sim, me leva para sempre Beatriz”…
As referências à Beatriz de Dante são evidentes ao longo da letra. O sétimo céu retratado na Divina Comédia, o arcanjo, a possibilidade de Beatriz carregar Dante ao paraíso, ascendendo aos planos altíssimos (Me ensina a não andar com os pés no chão), a própria brincadeira de mostrar o título do poema, de modo inverso, em sequência versada: Será que é COMÉDIA / Será que é DIVINA.
Quando Chico começou a vestir com as palavras as músicas de Edu Lobo para o musical “O Grande Circo Místico”, a partir do poema de Jorge de Lima, ele próprio falou da dificuldade de versar a história de Agnes, a que deu início à dinastia dos Knieps, porque Agnes não se encaixava em versos, até ele concluir que outro nome poderia ser dado à personagem, não havia essa obrigatoriedade de repetir o mesmo nome. Tudo indica que Chico tenha percebido na história poética de Jorge de Lima uma pitada de influência de Dante, por conta dos versos finais, das gêmeas Marie e Helene, trinetas de Agnes, atirando suas almas para a visão de Deus. Talvez daí tenha surgido a ideia de Beatriz substituir Agnes. Claro que não se pode descartar também que o nome se mostrou ideal por sua grafia, beATRIZ, a indicar o ofício da personagem. E não é que Agnes estaria escondida, aninhada em um dos versos da canção? “Diz se é perigoso a gente ser feliz” – diz se é perigoso A GeNtE Ser feliz… coisas do Chico.
Essa letra contém tanta simbologia e alegoria! Debulhemos verso a verso a fim de alcançar toda a beleza do apaixonado a idealizar o caminho tangenciando seu sonho: a companhia de Beatriz. Dentro da liberdade literária deste texto, depois de embrenhar na letra da música, permito-me exprimir o que observo transpondo inserções junto ao poema original, tudo em itálico para a compreensão da narrativa.
Imagine o palco do circo, só uma luz vinda de cima, límpida e direta, sobressaltada naquele breu. Na plateia, também escura, com o olhar fixo naquele ser iluminado, lá está ele quieto e pensativo…
Olha! Será que ela é moça? Será que ela é triste? Será que é feliz? E seu rosto, tão lindo, será real ou pintura feita por um deus da arte? Será que ela é tão divina que dançaria até no céu? Será que ela acredita de verdade que é um mundo diferente dos outros? Ou será que ela só interpreta, decorando seu papel da apresentação? Ah… se eu pudesse entrar na sua vida!
Como ela é de verdade? Será de carne e osso como todos nós ou de uma louça fina, intocável? Um ser etéreo, feito só de sonhos? Ela é normal como nós, ou tem a bendita loucura da artista que sonha além das estrelas? E a casa dela, é de verdade, ou mero cenário como o desse palco?
Talvez ela queira morar tão perto do céu, que seja num prédio alto, um arranha-céu… será? As paredes de lá, são de verdade, ou feitas de um desenho de giz? Quem sabe ela fique muito mais num quarto de hotel, e lá chore porque se sente só… será? Ah… se eu pudesse entrar na sua vida!
Me leva, Beatriz, me tira daqui deste mundo, deste tempo, me leva para sempre! Me ensina a voar! O instante é agora, não quero saber se será para sempre, já que a eternidade está por um triz! Você vê o futuro, Beatriz? Sua magia também é a de ler os destinos nas mãos de quem as estende a você? Lê minha mão! Diz se teremos futuro, ou é perigoso pensar em felicidade estando contigo…
Olha! Será que ela é uma estrela? Ela existe ou é de mentira? Sua vida é feita de risos, uma comédia, ou ela vive feito uma deusa? Mas se ela é divina, que seja sempre, eu não queria que ela deixasse de ser essa estrela lá no alto, e a decadência que às vezes alcança os artistas chegasse em sua vida, porque se ela despencar do auge do seu sucesso, pode ser triste demais, e o sádico público pode até querer ver isso novamente: bis! bis! Apresentando-se numa calçada, artista de rua, sempre terá um alguém que a protege, passando o chapéu para recolher moedas dos espectadores… seria tão triste! Eu jamais permitiria que isso acontecesse… se eu pudesse entrar na sua vida…
Convido a todos para que façam também suas leituras. A arte renasce na interpretação do olhar de cada um, a música se retroalimenta cada vez que a ouvimos com atenção, pensamos na história, fazemos o cenário em nossa mente… o trecho despencar do céu e os pagantes exigirem bis, por exemplo, pode ser interpretado numa triste imagem da atriz que morre em cena e os espectadores, exaltados com algo tão real, querem novamente contemplar tal cena. As atrizes e os atores sempre falam que no teatro é possível um dia morrer em plena atuação, isso gera um medo e ao mesmo tempo a emoção da singularidade daquele momento único.
Beatriz, a do Chico, é uma das personagens mais fascinantes de seu mundo, mesmo sendo apresentada por quem a vê e se apaixona. Conhecemos Beatriz pelo olhar do outro. Então, como seria de fato a atriz? Convém não esquecer que existe outro olhar além do eu lírico que entoa a música. O olhar do Chico, que a criou; portanto, ele bem sabe quem é Beatriz. Restam-nos os pontos de interrogação, mesmo não aparecendo nos versos da canção.
Beatriz
Edu Lobo/Chico Buarque/1982/com alteração em 2023
Olha
Será que ela é moça
Será que ela é triste
Será que é o contrário
Será que é pintura
O rosto da atriz
Se ela dança no sétimo céu
Se ela acredita que é outro país
E se ela só decora o seu papel
E se eu pudesse entrar na sua vida
Olha
Será que é de louça
Será que é de éter
Será que é loucura
Será que é cenário
A casa da atriz
Se ela mora num arranha-céu
E se as paredes são feitas de giz
E se ela chora num quarto de hotel
E se eu pudesse entrar na sua vida
Sim, me leva pra sempre, Beatriz
Me ensina a não andar com os pés no chão
Para sempre é sempre por um triz
Ai, diz quantos desastres tem na minha mão
Diz se é perigoso a gente ser feliz
Olha
Será que é uma estrela
Será que é mentira
Será que é comédia
Será que é divina
A sina da atriz*
Se ela um dia despencar do céu
E se os pagantes exigirem bis
E se o arcanjo passar o chapéu
E se eu pudesse entrar na sua vida
* Ao que se sabe, durante os ensaios da turnê “Que tal um Samba?”, iniciada em 6/9/2022 (João Pessoa) e encerrada em 30/4/2023 (Salvador), Chico resolveu mudar a letra de “Beatriz”, substituindo a palavra “vida” por “sina”, no sexto verso da penúltima estrofe da canção, que passou a ser assim (juntamente com o quinto verso): “Será que é divina / A sina da atriz”.
A mudança foi entoada por Mônica Salmaso na passagem da turnê no Rio de Janeiro, no início de 2023. E foi justamente em conversa com Mônica, que Chico falou da história do pintor francês Pierre Bonnard e seus pincéis e tintas escondidos no bolso, a retocar seus próprios quadros em visitas a museus que expunham suas obras. Esse retoque em “Beatriz”, 40 anos após, veio como um “gesto de Bonnard”, poderíamos dizer.
GRAVAÇÃO ORIGINAL EM ESTÚDIO DE BEATRIZ – CLIQUE AQUI
DO CHÃO AO CÉU
Somos conduzidos ao mundo de Beatriz tão logo o piano de Cristóvão Bastos começa a gerar notas musicais como se fossem discretas pisadas do espectador, entrando na escura plateia do teatro, sentando-se e dirigindo sua atenção à artista no centro do palco, também escuro, só uma luz direta que cai por sobre a atriz como se fosse um recado dos céus. Daí emana a voz de Milton Nascimento e tudo se ilumina.
Beatriz foi gravada no estúdio da Som Livre em 1983, ao que se sabe ficaram na sala de gravação somente Milton e Cristóvão; ele, ao piano, deu o tom da condução musical, numa introdução marcante e que ficou tão conhecida quanto a interpretação daquele a quem Elis Regina disse certa vez que cantava pela boca de um anjo. A orquestra de cordas teria sido acrescentada depois, com arranjos e sob a regência do maestro Chiquinho de Moraes. Nos violinos, Giancarlo Pareschi, Aizik Geller, Alfredo Vidal, Carlos Hack, Francisco Perrota, João Daltro de Almeida, Jorge Faini, José Alves, Luiz Carlos Marques, Marcelo Pompeu, Michel Bessler, Walter Hack, Paschoal Perrota e André Chales Guetta.
Lamenta-se o não registro em vídeo dessa gravação, afinal, quem não gostaria de ver Milton entoando-a pela primeira vez naquele estúdio somente com dois artistas, cada um exuberante em sua arte? As mãos de Cristóvão fazendo levitar as notas, e a voz de Milton elevando o canto ao sétimo céu no qual Beatriz poderia morar. Imagina-se o semblante de todos que se encontravam fora do estúdio, acompanhando aquele momento. A canção já era pronta e acabada, de Edu com a música e Chico vestindo-a com a palavra. Mas ali certamente se percebeu – e são raros esses momentos – um intérprete moldando de tal maneira a cantiga que acabaria sendo uma espécie de terceiro parceiro da música.
Beatriz é minha, teria dito Milton após a gravação; é o que registram Zuza Homem de Mello e Jairo Severiano no livro A canção no Tempo: 85 anos de Música Brasileira. A frase mostra exatamente essa percepção do canto como um desdobramento da criação musical. Entendemos o que Bituca quis dizer, exteriorizando sua sublime percepção de que seu canto contribuiu para a firmação de Beatriz como uma das mais belas músicas brasileiras.
Quando Milton eleva a voz docemente no verso Se ela dança no sétimo céu, compreendemos que ele ali também inseria de alguma forma a sua assinatura na obra musical. O mais interessante, como nos mostra Wagner Homem de Mello no indispensável livro Histórias de Canções: Chico Buarque, é que, “[a]nos depois, Edu se surpreendeu ao perceber que a palavra ‘chão’ correspondia à nota mais grave e ‘céu’ à mais aguda”.
O piano estava no chão e dali, naquele estúdio, Cristóvão Bastos, Milton Nascimento, os demais músicos, conduziram a canção de Edu e Chico ao céu. A faixa número 2 do Disco “O Grande Circo Místico”, um dos mais prestigiados álbuns musicais da história da música de nosso país, nos faz ouvir constantemente a história daquele que só queria saber como seria de fato Beatriz fora do palco. E desse modo chegamos até a acreditar que Beatriz existiu. Assim como Beatriz de Dante, Agnes de Jorge de Lima, Beatriz de Chico… e quem disse que nós somos reais e as personagens criadas pelos artistas são ficção? Fernando Pessoa nos alertou certa vez: talvez nós mesmos sejamos um sonho que alguém em outro mundo esteja tendo… ou mesmo um perfil casual de uma história que um deus está relendo. Desta forma, pode ser que nossa matéria seja a mesma de Beatriz. E não é isso que torna o mundo fascinante?
“Eu não sei o que sou.
Não sei se sou o sonho
Que alguém do outro mundo esteja tendo…
Creio talvez que estou
Sendo um perfil casual de rei tristonho
Numa história que um deus está relendo…”
(Segunda estrofe do poema de 19/10/1913,
cujos versos iniciais são:
Sou o fantasma de um rei,
de Fernando Pessoa)