A sensibilidade aguda de Cecília Meireles levou-a a um desabafo lírico no sentido de que o Poeta está acima das euforias e depressões, pois não se pode exigir sentimentos bem definidos dos vocacionados a reunir tantos sorrisos e lágrimas surgidos nos instantes da arte (“Eu canto porque o instante existe / e a minha vida está completa. / Não sou alegre nem sou triste: / sou poeta”. Início do poema “Motivo”).
Seria possível, então, partindo dessa constatação, elaborar uma música triste e alegre ao mesmo tempo?
Jorge Helder e Chico Buarque nos mostram que sim, de maneira arrebatadora. Ao cumprir o desafio lançado por Jorge, Chico contempla sua letra prenhe de uma eufórica melancolia, como quando se tem saudade. Posteriormente Jorge Helder lhe confidenciaria que sua música era tão triste, mas tão triste, que estranhamente lhe fazia sorrir.
Eu vou me permitir examinar, sob minha ótica, “Bolero Blues” (CD Carioca, Biscoito Fino, 2006), pois ali vislumbrei essa dupla face de maneira absolutamente original, obviamente sabendo que se trata de uma interpretação pessoal; afinal, saboreia-se a arte pela leitura peculiar de cada um, e é isso que torna inesgotável um trabalho artístico. Dependerá sempre do olhar do outro – tal como um espelho – a perspectiva renovada dos múltiplos labirintos que o artista pode deixar para nosso curioso percurso nas instâncias do sentimento.
Ao longo de décadas muito se falou sobre a “Garota de Ipanema”, tanto a canção como a musa que a inspirou, Helô Pinheiro. Mas é preciso mergulhar em “Bolero Blues” para descobrir uma incrível história daquela garota antes da fama. Ali se tem a predestinação do que seria no futuro a menina cheia de graça, que vem e que passa, e de um Chico ainda moço antevendo aquele doce balanço a caminho do mar.
Para melhor compreender os detalhes de minha interpretação, utilizarei a expressão “Chico-hoje” para se referir ao momento em que o artista elabora a canção e nos conta a história ali apresentada. E ao falar em “Chico-garoto”, tem-se o protagonista da cantiga, em seu período de mocidade.
Chico-hoje começa então a narrar a história do Chico-garoto no Rio de Janeiro, a passear em Ipanema, no final dos anos 1950 e início dos anos 1960. “Quando eu ainda estava moço / Algum pressentimento / Me trazia volta e meia por aqui”. O local por ele referido é o cruzamento das ruas Barão da Torre e Vinicius de Moraes. Ele talvez ficasse ali a aguardar uma garota que, naquele tempo, “Andava longe, muito longe / De existir”. Como assim esperar por alguém que não existe? E porque ele fala em “estranhas ruas”, se ele andava por lá de vez em quando?
É o Chico-hoje quem fala isso, lembrando do Chico-garoto. Aquelas ruas se mostram estranhas se fizermos o confronto do tempo. Naquela época, Vinicius de Moraes era vivo, e por óbvio a rua não poderia ainda ter seu nome, era Rua Montenegro. E a Rua Barão da Torre não fazia muito tempo se chamava Rua 28 de agosto.
Então naquelas estranhas ruas ele ficava a esperar a garota ainda desconhecida, pois somente algum tempo depois ela partiria daquele cruzamento e, caminhando em direção ao mar, acabaria por passar em frente ao Bar Veloso e encantaria Tom Jobim e Vinicius de Moraes, ao ponto de em 1962 surgir das mãos deles uma das músicas-símbolo da Bossa Nova: Garota de Ipanema. Ela só passaria a existir, portanto, em termos musicais, depois do sucesso daquela canção, quando finalmente seria revelado seu nome: Helô Pinheiro.
Antes disso ocorrer, ela aparece diante do Chico-garoto, e mesmo não sendo ainda a Garota de Ipanema, é tão desejada que não cabe em si; ela não percebe que ele a acompanha com o olhar, ávido por receber um simples aceno visual de volta, ainda que seja para saber o quanto aquele Chico-garoto admira sua beleza naturalmente exposta em seu caminhar. Ela, porém, o ignora, e desaparece rapidamente, deixando o jovem a se lamentar ao vento: “– tarde demais”, e constatando o quanto as ruas ficaram nuas sem o seu vestido.
A partir dessa triste cena, a música nos induz ao pensamento do Chico-hoje, imaginando que, após muito tempo, a Garota de Ipanema, já mulher, ali retornaria e não mais o encontraria. “Quanto ela já não mais garota / Der a meia-volta / Claro que não vou estar mais nem aí”.
Nesse instante, o tempo mistura os Chicos e brinca com as situações pretéritas e possivelmente futuras, um Chico-garoto com o desejo de que ela olhe para trás e perceba seu olhar pedinte, pois quem sabe ela o acudiria, dando-lhe a atenção por ele suplicada, e o futuro retorno da Garota, e nessa meia-volta ele já sabendo a consequência: “Claro que não vou estar mais nem aí”. Mas não se pense nisso como uma grosseria, vingança ou desprezo à mulher outrora garota. “Não vou estar mais nem aí” quer dizer a ausência física do local, porque o Chico-hoje não mais se vê andando por uma rua com o nome de seu amigo e parceiro Vinicius de Moraes, doloroso demais reduzir o amor dedicado a Vinicius a uma via caminhante.
O reencontro do Chico-hoje com a Garota de Ipanema, naquele local, jamais se repetiria, e nesse ponto se percebe um viés divertido na história, na medida em que naquele momento ela não acudiu ao seu olhar mendigo, mas certamente ela o conheceu noutras circunstâncias, sem saber do quase-encontro do passado.
Sim, essa é uma história triste (blues) e engraçada (bolero) ao mesmo tempo, e esse é um aspecto inusitado e extraordinário da canção. É uma história triste, diante da cena do Chico-garoto esperançoso por um olhar, mas tendo que aceitar o desdém até de certo modo involuntário de sua musa. E também é divertida, pois é impossível o ouvinte da música não sorrir ao imaginar uma garota não dar importância àquele moço tímido e que logo depois seria desejado por tantas mulheres.
São cenas cheias de vida, inclusive por se ter o feliz desfecho da aceitação do fim de uma paixão não correspondida, porque a garota jamais se deu conta dessa admiração, carregada que foi com seu vestido pelo vento.
E daí vem o nome “Bolero Blues”, porque é o Chico-hoje quem narra com leveza a inusitada história, e portanto ele faz questão de mostrar a felicidade de hoje (bolero) no que já fora triste antes (blues), e na junção da memória com o momento atual a cantiga se apresenta alegre e triste ao mesmo tempo. É o encontro bolero blues.
O melhor dos encontros, porém, é o da sofisticada melodia de Jorge Helder, vestida pela impactante poesia que só mesmo o Chico conseguiria encaixar em sinuosas modulações, dando-lhe sentido. A música é arredia, quase impossível enquadrá-la com letra, mas o Chico-hoje não a deixaria escapar, já bastou o Chico-garoto ter perdido a garota e seu vestido ao vento.
Sem perceber, aquela “Garota antes de ser a de Ipanema”, ao não olhar para trás naquele cruzamento e protagonizar um crucial momento com o moço antes de ser o Chico Buarque, deixou a lição de que nada nos escapa quando se tem memória e talento. Com esses dois elementos, muito tempo depois, ele preencheu de lirismo poético uma música prestes a fugir do mundo das palavras.
Ouçam com atenção a música, ela é assim mesmo, diferente, não nos atrai de imediato, mas aos poucos nos cativa. Não a deixem escapar, tal como a garota. Nunca é tarde demais para encontramos o crucial momento da beleza.
Bolero Blues |
Jorge Helder/Chico Buarque/2006
Quando eu ainda estava moço
Algum pressentimento
Me trazia volta e meia
Por aqui
Talvez à espera da garota
Que naquele tempo
Andava longe, muito longe
De existir
Tantos tristes fados eu compus
Quanto choro em vão, bolero, blues
Eis que do nada ela aparece
Com o vestido ao vento
Já tão desejada
Que não cabe em si
Neste crucial momento
Neste cruzamento
Se ela olhar para trás
É bem capaz de num lamento
Acudir ao meu olhar mendigo
Mas aquela ingrata corre
E a Barão da Torre e a Vinicius de Moraes
São de repente estranhas ruas
Sem o seu vestido ficam nuas
E ao vento eu digo
– tarde demais
Quando ela já não mais garota
Der a meia-volta
Claro que não vou estar mais nem aí
Que sublime sensação de poder ter acesso às histórias que estão por trás de canções tão belas e que marcam tanto a nossa vida. Só uma pessoa com tanta riqueza cultural, com tanto apreço pelo conhecimento e com tanta sensibilidade, poderia colocar luzes nesses acontecimentos e de uma forma tão poética. Gratidão!
Muito obrigado por suas belas palavras, elas muito me emocionam. Fico feliz por acompanhar e gostar.
Mantovani que capacidade de análise da obra do Chico você tem.A cada vez que ouço vc ou que leio sobre fico ainda mais e mais curioso com as demais.
Dia 21 e 22 ele virá e já estou providenciando meus convites através de meu filho Maneco que iluminou também estas belas curvas
Do Rio.aplaudiremos em uníssono
Beijo e obrigada pelo despertar desta obra.>
Obrigado, muito obrigado. Todos nos emocionamos com o show CARAVANAS, e seu filho, o talentoso mago das luzes Maneco, lá estava a encher de brilhos o palco.
Como vc escreve e analisa bem a obra do nosso maior.
Escrevi com o coracao agora decepcionado pq não cheguei aqui ali ou acolá. A luminosidade das linhas é do meu bem conhecido Maneco a quem Deus o fez assim..
Especial como as palavras do Chico.
Fico muito orgulhoso por ter uma leitora como você, que ama as palavras.
Sempre admirável.
Muito feliz por tê-la por aqui, neste espaço lírico.