ODE AOS RATOS

ÓDIO AOS RATOS? NÃO! ODE AOS RATOS

Os adultos estragam tudo. A criança, desde cedo, sabe e sente que os animais não pertencem a uma classe ou espécie diferenciada. Somos todos animais, ou ainda, seres. Só isso. Até chegar o dia em que determinado professor de ciências nos impõe a separação dos entes em categorias, como se fôssemos livros à espera de organização em estantes divididas por assunto.

Criança adora mesmo é o trava-língua “o rato roeu a roupa do rei de Roma”, porque a letra “r” arranha na garganta, e é muito divertido imaginar o rei com sua roupa roída pela travessura do roedor. E assim, desde cedo, cria-se a intimidade com o bichinho que ousou até mesmo afrontar o rei. Aí vem o adulto e sua mania destruidora a lançar imagens do rato levando o terror com seu numeroso grupo, “aos magotes”, retratando-os como saqueadores da metrópole.

A questão é simples. Os ratos não nos incomodam. Na verdade, o homem invadiu florestas, mata adentro sem pudor, com numerosas construções urbanas, produzindo lixo orgânico em demasia, retirando os roedores de seu habitat natural e de seu instinto de caça – pois com tanto lixo por nós produzidos oferta-se o banquete sem menor esforço a determinados animais –, forçando os ratos a serem aborígenes do lodo, sobreviventes à lei do cão, proliferando-se freneticamente, transformando esses animais em bocas atrás do seu quinhão, de restos deixados por nós, civilizados.

É preciso voltar a ser criança para compreender a importância e a beleza do rato. E Chico Buarque faz isso com a contagiante “Ode aos Ratos”, em parceria com Edu Lobo, sendo que a primeira versão está no CD Cambaio, de 2001. Já a segunda versão, aparece no CD Carioca em 2006, brindando “Ode aos Ratos” com aquilo que seria tão singelo quanto rico, a embolada em tom de rap feita exclusivamente pelo Chico. Ali, de início, se tem a visão do adulto, com seu temor ante a irrequieta criatura e sua presença na cidade, que pode encontrá-lo desde o cano do esgoto até o topo do arranha-céu. Num rasgo de ironia, Chico acaba nos mostrando que muitas vezes essa aversão ao rato é possivelmente um receio de certas pessoas que, com suas ambições desmedidas em negociatas, acabem se identificando na sociedade como personagens que vão do esgoto ao topo do arranha-céu, tal como os ratos. À medida que a música se desenvolve com seu frenético ritmo, a sensação de asco parece ganhar ironicamente uma dimensão que só tende a piorar, afinal é uma criatura com fuça gelada, como tantas outras diferentemente amadas, e couraça de sabão. Eis que, em determinado momento, vem a reviravolta. Chico é mestre de tais surpresas; dado algum ponto de suas músicas, não acidentalmente elege um verso, imprimindo nele um giro poético, e nos transporta a outro lugar, com ares distintos daqueles respiráveis até então.

No caso de “Ode aos Ratos”, essa chave para a mudança de perspectiva começa quando ele nos lembra de que o animal é um tenaz roedor, a realizar os atos próprios de sua natureza, cumprindo sua essência. O problema, como diz o verso seguinte, é que o transformaram em “saqueador da metrópole”. Retirado o rato de seu ambiente natural, tenta o homem inverter a rota do rato: de roedor para saqueador.

E nesse instante, a pérola da canção aflora de maneira inesperada: entoa-se uma emboladaque é uma forma musical com textos declamados rapidamente sobre notas repetidas, um magnífico emaranhado de palavras com sílabas sonoras que propositalmente se repetem culminando na analogia ao trava-língua. Diz-se ali sutilmente, dos nossos tempos de criança, quando ratos eram inseridos nas inocentes brincadeiras, próprias do espírito infantil, sem a pretensão de mudar a natureza dos animais. “Rato que rói a roupa / Que rói a rapa do rei do morro / Que rói a roda do carro / Que rói o carro, que rói o ferro / Que rói o barro, rói o morro / Rato que rói o rato…” e então o que já se parecia um rap se torna mais inusitado no bololô, gaguejando único nome: “Ra-rato, ra-rato”. Em seguida lembra-nos, gostemos ou não: o rato há de seguir seu destino, cumprindo sua sina de roedor, ao dizer que o animal “ruma rua arriba / Em sua rota de rato”.

A viagem de volta ao tempo que o Chico nos proporciona nessa música – da insensibilidade adulta à leveza infantil – é a razão pela qual não devemos ter ódio aos ratos. Ao contrário, em mais uma sutil utilização de palavras, ele transforma o ódio em ode, daí o título deste texto, que acompanha o nome dado a música, sob minha interpretação. Porque uma ode é, desde os antigos gregos, uma ação de cantar, exaltando alguém em tom alegre, com entusiasmo.

Exatamente por isso, Chico tem a bendita ousadia de finalizar lembrando que o rato é, antes de tudo, nosso semelhante, filho de Deus, nosso irmão.

Ode aos ratos

Edu Lobo/Chico Buarque/2001

Rato de rua
Irrequieta criatura
Tribo em frenética proliferação
Lúbrico, libidinoso transeunte
Boca de estômago
Atrás do seu quinhão

Vão aos magotes
A dar com um pau
Levando o terror
Do parking ao living
Do shopping center ao léu
Do cano de esgoto
Pro topo do arranha-céu

Rato de rua
Aborígene do lodo
Fuça gelada
Couraça de sabão
Quase risonho
Profanador de tumba
Sobrevivente
À chacina e à lei do cão

Saqueador da metrópole
Tenaz roedor
De toda esperança
Estuporador da ilusão
Ó meu semelhante
Filho de Deus, meu irmão

EMBOLADA *
Rato
Rato que rói a roupa
Que rói a rapa do rei do morro
Que rói a roda do carro
Que rói o carro, que rói o ferro
Que rói o barro, rói o morro
Rato que rói o rato
Ra-rato, ra-rato
Roto que ri do roto
Que rói o farrapo
Do esfarra-rapado
Que mete a ripa, arranca rabo
Rato ruim
Rato que rói a rosa
Rói o riso da moça
E ruma rua arriba
Em sua rota de rato

* Cantada na versão gravada no disco Carioca

Autor: mantovanni

Mantovanni Colares - um dia inesquecível: o primeiro encontro com Chico Buarque, ao me receber gentilmente no Camarim, antes de um show em Fortaleza, Ceará, Brasil (15/5/1993).

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